Cioran: exercício de admiração

por Daniel Carvalho (01/11/2011)

É uma “sabedoria desiludida” a que aparece nas obras do filósofo romeno

-- "Silogismos da amargura", de Emil Cioran --

-- "Exercícios de admiração", de Emil Cioran --

Ainda admirava, sem dúvida, mas como mestre.
Cioran

Filósofo de origem romena, Emil Cioran (1911-1995) nasceu no pequeno vilarejo de Rasinari, na Transilvânia. Avesso ao sistema e às abstrações lógicas, aos “estojos vazios”, o pensamento cioraniano se desenvolveu à margem das “modas” filosóficas: é dotado de um caráter orgânico, fisiológico e existencial. Desde muito cedo, ainda na infância, Cioran foi marcado pela experiência do ennui, uma espécie de tédio fundamental que faz o indivíduo se sentir deslocado do tempo, um sentimento de vazio e de solidão. Por volta dos dezessetes anos, a esta época matriculado na Faculdade de Filosofia e Literatura de Bucareste, é acometido por terríveis crises de insônia. Cioran passava noites inteiras acordado, andarilhando pelas ruas como um espírito maldito, entre bêbados e prostitutas, dominado por pensamentos suicidas. Em 1934 escreve seu primeiro livro, ainda em romeno, intitulado Nos cumes do desespero. Em 1937 muda-se para Paris, e a partir de 1947 passa a escrever em francês, estreando na língua de Baudelaire com a obra Breviário de decomposição, publicada em 1949.

Dentre os vários componentes que se entrecruzam e devem ser considerados para que possamos compreender a singularidade de sua filosofia, é a experiência da insônia, como relata o filósofo em suas entrevistas, que marcará mais profundamente sua visão de mundo. Isso apenas reitera o que dissemos acima acerca do caráter orgânico do seu pensamento: “Toda experiência profunda se formula em termos de fisiologia”, escreverá em Silogismos da amargura. A experiência da insônia, dizíamos, tem como resultante uma consciência hipertrofiada, abonada pela lucidez. É que aquele que dorme, afirma Cioran, tem a ilusão da descontinuidade do tempo, da renovação da esperança, pois ao acordar renasce para um novo dia. O insone, por sua vez, vê a existência se desenrolar em uma continuidade dolorosa e de asfixiante monotonia, sem o privilégio da ilusão daquele que dorme. O vazio, a gratuidade, o sentimento de solidão e o sem-sentido de todas as coisas serão, por fim, o resultado dessa consciência hipertrofiada.

É uma “sabedoria desiludida” a que aparece nas obras de Cioran. Silogismos da amargura, conjunto de aforismos publicado originalmente em 1952, dá uma boa mostra das preocupações do pensador, do tom, do estilo cioraniano. O livro é marcado pelo mais profundo pessimismo, seja em relação ao “bicho” homem (criatura enferma, que segrega desastre, que tende à idolatria, possuidora de impulsos tirânicos), seja em relação à história (verdadeiro desfile de falsos absolutos, de além mundos, de incondicionados elevados à condição de pretexto – Deus, Progresso, Liberdade – por meio dos quais o homem dá vazão ao seu instinto de idolatria). O homem, na visão de Cioran, é um animal ávido de crenças, de consolos, de paliativos para o seu sofrimento, de muletas espirituais, de ilusões que o protejam do aspecto doloroso proveniente de sua condição finita. Já a nossa civilização, para o filósofo romeno, apresenta os sintomas do ocaso, é marcada pela obsessão dos remédios, pelo espetáculo da farmácia: “Uma civilização que começou com as catedrais tinha que acabar no hermetismo da esquizofrenia”. O que Cioran apresenta, neste livro, é uma visão oposta, desenganada, marcada pelo desconsolo, pela desilusão, por uma lucidez que serve como antídoto para nos despertar do nosso “sono dogmático”, dessa vontade de transformar em incondicionado nossas próprias perspectivas e interesses: “O instante em que acreditamos haver finalmente compreendido tudo nos dá uma aparência de assassinos”, escreve Cioran em Silogismos da amargura.

É a este tom desiludido, aliás, que Cioran atribui a atração e o fascínio que a obra exerceu sobre toda uma geração de jovens: “Só uma geração desiludida poderia se entusiasmar por uma visão tão negativa da história”. O tom pessimista em relação à vida, “esse mau gosto da matéria”, à própria Criação, “o primeiro ato de sabotagem”, atrela-se a um pensamento que não descansa enquanto não tiver destroçado todos os ídolos, posto abaixo todas as ilusões valorativas que habitualmente atribuímos às nossas ideias e à nossa própria condição no mundo.

Considerado por muitos como um dos maiores prosadores da língua francesa e maior aforista depois de Nietzsche, seu estilo é elíptico, lacônico e de sofisticada ironia. Sua escrita, por sinal, está intimamente ligada ao corpo, aos seus estados afetivos, e possui um caráter terapêutico, uma função vital: “um livro é um suicídio adiado”, escreve em Do inconveniente de ter nascido. A cura de Cioran se dá por meio da palavra: “Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!”, escreve em “Confissão resumida”, texto que compõe a obra Exercícios de admiração.

-- Cioran e sua companheira Simone Boué --

Estes Exercícios… foram publicados em 1986, quando Cioran começava a ser conhecido, obtendo um bom desempenho de vendas e uma boa recepção da crítica. A obra é constituída por artigos, cartas, ensaios e prefácios que o filósofo escreveu em diversos momentos de sua vida, nos quais traça retratos e perfis de filósofos e escritores. São 16 textos no total. Cioran se entrega “a uma espécie de autorrevelação através dos outros”, “um autorretrato camuflado”, como nos ensina o prof. José Thomaz Brum, responsável pela tradução e que assina também o prefácio. Bastante oportuno, aliás, este fio de Ariadne que o prof. Brum desenrola para aqueles que desejam penetrar nesta obra do pensador romeno. Ao longo dos diversos textos que compõem o livro reconhecemos, aqui e ali, nas tintas com as quais Cioran pinta os seus retratos, a resplandecência de aspectos do próprio admirador: do seu temperamento, da sua compreensão de linguagem e de estilo, da recusa ao jargão filosófico, de suas ideias políticas, de sua visão negativa do homem, da história, da existência…

No texto de abertura, por exemplo, intitulado “Joseph de Maistre – Ensaio sobre o pensamento reacionário”, sobressaem as reflexões de Cioran acerca da política e da história. Escrevendo sobre o contra-revolucionário católico francês, Cioran identifica nele alguém acometido por uma espécie de “idolatria dos inícios”, um tipo de “obsessão pelas origens” que, segundo Cioran, é a própria marca do pensamento reacionário, investido em uma visão estática do mundo. Por meio do contraste, procura também caracterizar o pensamento revolucionário, que estaria engajado na missão de “libertar o homem do culto das origens” a que o condena à metafísica e à religião. Para o filósofo romeno, é a nossa compreensão do tempo que dita nossas concepções políticas. Se é a eternidade o que nos obseda, por que se preocupar com as transformações que se dão no tempo, por que dar importância ao que ocorre no devir, por que agir e se rebelar, se submeter ao fracasso e à frustração que acompanha toda esperança? Para o espírito revolucionário, contudo, o tempo possui a resposta para todas as indagações e o remédio para todos os males, é nele que está depositada a esperança de uma mudança total. Não são as revoluções que dão sentido à história? Essa oposição aparentemente irredutível, no entanto, não passa de uma visão cômoda:

É claro que, estabelecendo até aqui uma distinção tão nítida entre Revolução e Reação, nos submetemos necessariamente à ingenuidade ou à preguiça, ao conforto das definições. (…) O concreto, vindo felizmente denunciar a comodidade das nossas explicações e dos nossos conceitos, nos ensina que uma revolução que teve êxito, que se estabeleceu, transformada no oposto de uma fermentação e de um nascimento, deixa de ser uma revolução, porque imita e tem que imitar as características, o aparato e até o funcionamento da ordem que derrubou.

Nos outros textos que compõem a obra percebemos várias facetas do pensador romeno. Em “Valéry diante de seus ídolos”, a personalidade poética de Paul Valéry é iluminada a partir de um jogo de espelhos que Cioran estabelece entre aquele e seus ídolos: Mallarmé, Poe, Leonardo da Vinci, de tal modo que, em meio a esse jogo, auferimos elementos da concepção cioraniana de linguagem e linguagem poética. Em “Beckett – alguns encontros”, o filósofo discorre sobre o caráter impenetrável, apartado, desconcertante e misterioso desse escritor do qual gozou amizade: “É uma dessas pessoas que fazem pensar que a história é uma dimensão de que o homem poderia prescindir”. No texto sobre Mircea Eliade, Cioran assinala a “dualidade profunda” presente neste romeno (“igualmente atraído pela essência e pelo acidente”) que juntamente com Cioran e Ionesco formariam o trio de romenos célebres exilados na França: “Todos nós somos ex-crentes, Eliade em primeiro lugar. Somos todos espíritos religiosos sem religião”.

No perfil dedicado a Jorge Luís Borges, Cioran destaca a curiosidade, o espírito aventureiro e o universalismo do escritor argentino. Por estar imerso no néant sul-americano, e talvez para “escapar da asfixia argentina”, o escritor estaria como que forçado à universalidade, a “exercitar seu espírito em várias direções”, a estar “à vontade em várias civilizações e literaturas”. Este caráter apátrida, aliás, é bastante caro ao filósofo romeno, como ele ressalta numa bela passagem: “Nunca fui atraído por espíritos confinados numa única forma de cultura. Não se enraizar, não pertencer a nenhuma comunidade – essa foi e é a minha divisa”. Sendo as viagens uma “escola de ceticismo”, como afirma o historiador Vitor Brochard, o nomadismo de Borges entre as várias paisagens culturais afigura-se a Cioran, na conclusão do ensaio, como “o símbolo de uma humanidade sem dogmas nem sistemas”.

Em “Relendo…”, último texto que compõe o volume de exercícios de admiração, Cioran reflete sobre a obra Breviário de decomposição, relacionando visão de mundo e escrita, estilo e fisiologia, aludindo ainda ao elemento unitário sobre o qual gravita o seu pensamento:

Minha visão das coisas não mudou fundamentalmente. O que mudou, certamente, foi o tom. É raro que o conteúdo de um pensamento se modifique realmente. Além disso, o que sofre uma metamorfose é a forma, a aparência, o ritmo. Envelhecendo, percebi que a poesia me era menos necessária: o gosto que temos por ela estaria ligado a um excesso de vitalidade? Tenho cada vez mais – a fadiga deve ser em grande parte responsável por isso – uma tendência para a secura, para o laconismo, em detrimento da explosão.

Se é verdade o que diz Nietzsche em Além do bem e do mal com o intuito de acentuar o caráter pessoal e fisiológico de toda grande filosofia, afirmando que ela não passa de uma “confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas”, isso vale ainda mais significativamente no caso de Cioran. Devemos fazer, todavia, uma ressalva: as memórias aqui já não são inadvertidas, a lucidez e a integridade intelectual do filósofo não o permitem escamotear a origem orgânica de seu filosofar.

::: Silogismos da amargura ::: Emil Cioran (trad. José Thomaz Brum) :::
::: Rocco, 2011, 112 páginas ::: compre na Livraria Cultura :::

::: Exercícios de admiração ::: Emil Cioran (trad. José Thomaz Brum) :::
::: Rocco, 2011, 130 páginas ::: compre na Livraria Cultura :::

— Leia também —
Cioran: A filosofia em chamas, de Rossano Pecoraro (Edipucrs, 2004)
Emil Cioran e a filosofia negativa: Homenagem ao centenário de nascimento, org. Deyve Redyson (Sulina, 2011)

Daniel Carvalho

Mestre em Filosofia.

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