"Minha Vida", de Anton Tchekhov, não é uma obra-prima mas, num enredo simples, aborda questões importantes
Este não é nenhum clássico da literatura mundial, e não é indispensável em qualquer estante. Exceto naquela de fãs da literatura russa da Era Dourada, especificamente da obra de Anton Pavlovich Tchekhov (1860-1904). Estes, e quem mais se aventurar pela leitura, no mínimo estarão prestigiando a excelente coleção Leste da Editora 34, que oferece sempre traduções diretas competentes de obras russas e da Europa Centro-Oriental. No caso de Minha vida (1896), a tradutora e autora do posfácio é Denise Sales, doutora em Literatura e Cultura Russa pela USP e ex-funcionária da Rádio Estatal de Moscou.
Simples, a estória tem pontos interessantes. Missail Póloznev é o protagonista. Morando em uma cidadezinha do interior com o pai e a irmã, ele é membro de uma família bem de vida. Seu pai é um arquiteto ultraconservador que traçara para a filha um futuro tradicional – atividades no lar, casamento e constituição de uma família. Para o filho, um futuro seguro igualmente havia sido traçado, no seu caso incluindo posição em algum posto da burocracia que pagasse bem.
Mas o jovem Missail não se ajusta na burocracia. O romance começa com ele perdendo o emprego pela nona vez. Novamente, por puro descaso com os afazeres. Ao contrário de seus pares, não vê o serviço de marajá como um “trabalho intelectual”. Trabalho intelectual, para ele, seria trabalho artístico. E se não há perspectiva de se dedicar às artes, abandonará de vez a esperança de ganhar a vida fazendo uso do intelecto. Despreza cada vez mais o pai e a sociedade que ele representa. (Há uma frase em Minha vida que é uma das críticas mais fortes que eu já vi um personagem dedicar ao pai – “O meu pai recebia propina e imaginava que lhe davam isso em respeito às suas qualidades morais”. Que tal?)
O Sr. Póloznev representa não apenas um tipo de patriarca que poda qualquer sonho dos filhos, mas também o tipo preconceituoso que abomina o trabalho manual, visto quase como uma doença, e vê os mujiques como uma espécie inferior de animal. É por isso que, lendo Tchekhov, eu lembrei de uma das facetas do Coetzee de Verão. Aqui, o protagonista branco numa África do Sul em pleno apartheid também parte para o trabalho braçal (por mais banal) como forma de transcender a atmosfera sufocante de um código social imoral.
A outra semelhança é que Verão e Minha vida são ambos parcialmente autobiográficos. No caso de Coetzee, muito. No caso de Tchekhov, mais na ambientação e descrição das angústias de jovens de boa família e de camponeses pobres. O russo escreveu seu livro enquanto ainda morava na vila de Miélikhovo, sul de Moscou, período que tomou sete anos de sua vida e antecedeu a publicação de escritos mais famosos, como A dama do cachorrinho (1899) e Três irmãs (1901).
Missail também vai para uma pequena vila, mas antes passa um bom período na cidade, com o pai revoltado e a irmã perturbada devido ao fato do irmão ter passado a se dedicar ao ofício de pintor de muros e coberturas. Ostracismo: os conhecidos agora têm vergonha de dirigir-lhe a palavra nas ruas. Devido a imprevistos, abandona a pintura e passa para bicos diversos, como terraplanagem. Depois volta ao ramo das tintas. Depois o larga de novo. No final das contas, acaba se apaixonando por Maria Víktonovna, a bela e inquieta filha de um engenheiro e proprietário de terras. E a paixão vem bem a tempo – o governador da localidade, a pedido do Sr. Póloznev, intimara Missail a sair da cidade, por estar servindo de mal exemplo a outros jovens de sua estirpe, sob risco de ter que encarar o xilindró. Não será preciso a prisão. O casamento com Maria o salva da necessidade de permanecer na cidade.
Maria, embora aparentemente sincera em seus sentimentos em relação a Missail, é atraída por ele em grande parte, logo se vê, por aquele tipo de curiosidade que certas moças de família têm pelo vizinho, rapaz igualmente de boa família, mas que se revolta com o arranjo das coisas e decide ganhar a vida de forma arriscada. Missail, por sua vez, talvez não seja o rebelde ideal. Abandonada a casa do pai, vai morar com Maria numa das casas do pai desta na aldeia de Dubiétchnia.
As trajetórias de Maria e Missail curiosamente se cruzam em forma de X: enquanto ele quer ir para o campo para em parte se livrar da carga de responsabilidades que o pai lhe impunha, com o dever de honrar os ilustres antepassados (avô poeta, bisavô general), ela vai para a aldeia em parte com a intenção de ressuscitar o espírito rústico de seus ancestrais (o avô fora cocheiro).
Pobre Maria. Pois se os primeiros dias em Dubiétchnia têm um quê de bucolismo, o arranjo logo vai se mostrar um equívoco, com traços de pesadelo. Enquanto Minha vida ainda se passava na cidade, tomamos consciência dos maus tratos sofridos pelas pessoas humildes (“Nas lojas”, narra Missail, “a nós, trabalhadores, empurravam carne podre, farinha estragada e chá usado; na igreja, a polícia nos empurrava; nos hospitais…” etc. etc.), mas elas já não são idealizadas (o pintor chefe de Missail, concordando com as opiniões mais contraditórias dos contratantes, é quase um personagem de sátira). Quando o romance passa a centrar na aldeia, há ainda menos idealização. Por mais disposição que Missail e a esposa mostrem em se integrar ao novo meio, os mujiques lhes parecem seres de outro mundo. Isso se deve menos ao contato entre indivíduos de classes sociais distintas que a expectativas não correspondidas. Logo, algumas pessoas da vizinhança encontram formas de burlar o casal e lucrar financeiramente. Maria passa a se referir aos camponeses à sua volta como “répteis”. Até nas obras de construção de uma escola, bancada pelo casal, os operários locais arrumam formas matreiras de faturar umas moedas extras.
De forma que Minha vida é um conto sobre choque de gerações, sobre choque de classes, sobre choque de realidade. Conto de desilusões no campo das relações sociais, e no campo das relações amorosas. De tudo isso, funciona melhor como crônica do conflito entre gerações. Não apenas pela ruptura de Missail com o pai, devido a desentendimentos a respeito do que seja ou não um trabalho digno, mas pela tentativa de ruptura da irmã de Missail com o pai, pela afronta ao enquadramento de gênero que representará sua corajosa decisão de seguir os passos do irmão.
::: Minha vida ::: Anton Tchekhov (trad. Denise Sales) :::
::: Editora 34, 2011, 160 páginas :::
::: Compre na Livraria Cultura :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
[email protected]