Dois autores de origem árabe decretam a derrota do islamismo e a vitória do espírito democrático
Eu tava lendo outro dia o livro do Stefan Halper, The Beijing Consensus. Halper mostra como a permanência do Partido Comunista no poder está condicionada à continuidade do milagre econômico chinês, que melhora a vida das massas, e, por tabela, à importação frenética de bens primários e exportação de bugigangas e itens mais sofisticados. É por isso que o regime chinês entra em acordo sem constrangimentos com ditadores de todos os cantos do mundo. Dê-nos combustível para nosso crescimento, dizem os comunistas, que nós não daremos a mínima para o que vocês fazem ou deixam de fazer com sua população. Esse é o modelo que as potências ocidentais adotaram no passado, e ainda adotam no presente, com menor intensidade e maior constrangimento. Há nos países democráticos parlamentos, imprensa e opinião pública para um governo prestar contas – e há reeleições a se vencer. O PC chinês não tem essas preocupações. Está aí a raiz de sua doutrina de “não-intervenção” na Líbia, na Síria, ou onde quer que seja, e não numa vontade de fazer valer o direito internacional. Ademais, países como Síria, Irã e a Rússia de Putin abertamente elogiam o modelo chinês de crescimento econômico sem liberdades política e de imprensa, modelo que tentam emular, de modo que eventuais fracassos da elite política desses países podem indicar problemas futuros na própria China. É uma boa leitura, The Beijing Consensus.
No entanto, não pude deixar de me incomodar com certa abordagem tangencial do autor. É algo que a gente encontra bastante por aí. Ao mencionar as ditaduras asiáticas e árabes, Halper diz que talvez elas também se expliquem pelo fato dessas sociedades não serem tão abertas quanto pensam os ocidentais ingênuos às ideias iluministas, entre as quais liberdade e valorização do indivíduo. Para sustentar sua tese, Halper expõe tabela com os resultados de uma pesquisa de opinião no Oriente Médio, em 2007, com avaliações dos Estados Unidos e da China. Dos oito países estudados, apenas a opinião pública de Israel rejeita a China mais do que rejeita os EUA.
Mas, a meu ver, a realidade está sendo assimilada por Halper de forma invertida. O que é mais provável: que a alta reprovação dos EUA entre os árabes e sua baixa reprovação entre os israelenses tenha a ver com políticas estadunidenses para a região amplamente percebidas como equivocadas pelos primeiros, ou que a alta reprovação indique uma suposta indisposição árabe aos ideais iluministas (ao contrário do povo judeu)? De minha parte, não vi ainda nenhuma bandeira estadunidense sendo queimada nesses últimos meses na Tunísia, no Egito ou na Líbia, nem mesmo no Iêmen, mas eu já fiquei sabendo de bandeiras chinesas (e russas) sendo queimadas na Síria. Então me parece que qualquer reprovação maior aos EUA do que à China na Síria de 2007 era algo contingencial, não constitutivo.
Ora, o livro de Halper é do ano passado. Que dor de cabeça deve estar sendo para o autor este ano de 2011. Os árabes supostamente incompatíveis com o “template iluminista” saíram às ruas para exigir liberdade antes que chegasse às livrarias a edição paperback de sua obra. E se Halper está errado quanto aos árabes, por que estaria certo em relação aos asiáticos, especialmente os chineses? A cada vez que eu leio, como li em seu livro, sobre a suposta dificuldade que valores como liberdade de assembleia e expressão teriam de encontrar mais defensores tenazes nas “sociedades confucianas” do que encontram no Ocidente, mais essa teoria me parece pouco convincente. Antes falavam isso dos africanos, dos latino-americanos e dos eslavos (querendo dizer europeus do leste). Agora falam dos árabes e asiáticos. Aqui estamos, aliás, no curioso entroncamento onde esquerda multi-culti e direita racista, cada uma com suas boas intenções, se encontram na pregação da aversão de certos povos a conceitos e direitos que nos são caros. A censura chinesa a notícias da Primavera Árabe depõe contra essa teoria. Da mesma forma, não deve ter sido como um tributo ao espírito cordial do homem amarelo que recentemente os gastos com segurança interna na China ultrapassaram o orçamento militar convencional.
* * *
No que diz respeito às revoltas em países árabes, uma consequência pelo menos já era certa desde o começo: algumas das melhores análises com fôlego de livro viriam da França. Pátria de descendentes de árabes e de árabes exilados, especialmente da Tunísia que iniciou o processo de democratização, o país de Voltaire é lar de diversos intelectuais com um pé no Oriente Médio que não militam nas fileiras do relativismo cultural, não perdem tempo como racionalizadores de ditaduras abjetas apenas porque seus líderes se dizem herois da resistência anti-imperialista e antissionista, e, por fim, não têm papas para denunciar a conivência ou apoio de governos ocidentais a ditadores árabes – vergonha que envolve tanto o republicano W. Bush dando um tapinha de agradecimento nas costas de Mubarak pelo apoio do fulano à guerra ao terror, quanto o socialista François Mitterrand acomodando-se para as férias de final de ano no Luxor do Cairo.
Tahar Ben Jelloum, marroquino nascido em 1944, jornalista e ficcionista premiado, é um desses intelectuais. Fethi Benslama, tunisiano, psicanalista e professor na Université de Paris VII, é outro. Benslama lançou sua análise dos eventos árabes, Soudain la révolution!, em abril. Jelloum lançou em maio a sua, L’étincelle.
De acordo com Benslama – que se detém mais sobre sua Tunísia natal, mas passeia por Egito e Líbia –, o que a Primavera Árabe marca é uma mudança de paradigma na ação política das massas, da identidade árabe para o princípio de egaliberté (igualdade mais liberdade). Isso é boa notícia, tendo em vista que durante décadas ditadores usaram o credo identitário para tocar em frente suas tiranias e patrocinar terroristas e agrupamentos reacionários, na região e fora dela. Os jovens árabes que agora foram às ruas operam numa “erosão das ideologias salvadoras”, escreve Benslama. No meio das multidões, vemos bandeiras de países estrangeiros e cartazes em diversas línguas. Eis “uma geração que não é ideológica”.
Trata-se de mulheres e homens que chegam a um momento da história de seu mundo onde eles passam enquanto sujeito por uma certa experiência de esvaziamento dos ideais dominantes de sua cultura. É isso que os alijou e colocou em movimento rumo a uma libertação sem guia (nem condutor, nem partido, nem doutrina), onde não existe uma determinação a priori da verdade de seu desejo, além da necessidade de efetivá-lo pelo rompimento com o opressor e seu sistema.
Tahar Jelloun, em uma das várias coincidências de pensamento entre os dois autores, se expressa quase nas mesas palavras. O que marca a “maturidade” dos árabes em sua primavera é o fato de terem saído às ruas “de maneira espontânea, decididos a ir até o fim, sem seguir as ordens de qualquer líder, chefe de partido, ou muito menos chefe de um movimento religioso.”
É claro que esses dois escritores não têm nada em princípio contra líderes de movimentos. Apenas, o tipo de líder religioso e político que historicamente brota em terras árabes inspira receio, no mínimo. Nick Cohen observou, em artigo à época do início da revolta líbia, que Kadafi tentara pouco antes direcionar o superávit de energia da população rumo a Israel. Que é o que tem feito há tempos um bando de cretinos árabes com privilégios a manter e um histórico de comportamentos obscenos que precisa ficar longe da atenção de seus servos involuntários. Desta vez não, diz Jelloun. Agora, as populações árabes protestaram sem amaldiçoar europeus ou israelenses, “sem evocar álibis, sem culpar o resto do mundo” pelo seu estado de miséria e falta de liberdades.
A proposta de mudança de paradigmas, do conceito de identidade pan-árabe para o de igualdade e liberdade, Fethi Benslama fizera, junto com outros intelectuais, em um panfleto de 2004 intitulado Manifesto das Liberdades. Mas aquela proposta era um voto de esperança, apenas. Nem nesse manifesto, nem na subsequente obra Declaração de insubmissão: Para uso de muçulmanos e daqueles que não o são (2006) Benslama diz ter previsto as atuais revoltas. De fato, para ele, a primeira característica da Primavera é (foi) o inesperado, como indica o título de seu livro mais recente.
Benslama não nega que, em vista da história de revoluções anteriores ocorridas em várias regiões, alguns índices já deveriam estar preocupando os tiranos árabes e fazendo-os se preparar para dias piores – alto desemprego, notavelmente entre aqueles com curso superior, pobreza generalizada em uma população de jovens, e, menos óbvio mas igualmente ou mais relevante, uma geração mais alfabetizada e inteirada do mundo do que as anteriores, e uma taxa de fecundidade menor, o que empurrou as mulheres do lar para a atividade política (ou pelo menos para a percepção de direitos). Mas os autocratas estavam tão acostumados à autocracia, e o resto do mundo tão acostumado à propagandeada docilidade e mesmo tolice dos árabes, que ninguém verdadeiramente poderia ter previsto que 2011 seria como está sendo. Nem mesmo os árabes subjugados. Que no entanto, no embalo de acontecimentos como a autoimolação de Bouazizi, resolveram gritar um “Basta!” e resolveram não ficar apenas no grito.
Tahar Jelloun e Fethi Benslama magicamente coincidem em mais uma de suas análises: a revolta árabe, até por dispensar os velhos líderes e ideologias, é uma revolta de base ética e moral. Sem compreender este ponto, jamais se compreenderá os eventos que estamos testemunhando, dizem os autores. Na Tunísia, escreve Benslama, é como se o levante denunciasse o horror que foi “ter estado sob o domínio dessa perversidade que consistiu em subordinar a lei moral à patologia narcísica do grupo ‘Ben Ali’.” Jelloun: “Se agora essas revoltas podem ser qualificadas de ‘revoluções’, é porque elas estão em primeiro lugar e antes de mais nada tomadas pelas reivindicações de ordem ética e moral”; “Aquilo que se passou na Tunísia e no Egito é um protesto de natureza ao mesmo tempo moral e ética. É uma rejeição absoluta e sem concessão do autoritarismo, da corrupção, do roubo dos bens do país, uma rejeição do nepotismo, do favoritismo, uma rejeição da humilhação e da ilegitimidade que está na base da chegada ao poder desses dirigentes cujos comportamentos se assemelham bastante aos métodos da máfia.”
Em suma, o que os revoltosos querem é um Estado de Direito. Fim do Estado Policial. Regime constitucional com liberdades garantidas. Governo representativo e sujeito à fiscalização de outros poderes – na Argélia, desesperados protestam tacando-se fogo em frente a sedes de prefeituras, governadorias e ministérios; para fins práticos, só existe poder Executivo. Vale a pena citar longamente umas passagens de Tahar Jelloun, inclusive em vista das pessoas estranhas que, como uma razão a mais para reprovar a intervenção da OTAN na Líbia, me informaram que no país de Kadafi as mulheres se vestiam como tinham vontade…
Quando desembarca-se na Líbia, já desde o aeroporto sente-se como se tivesse sido enviado de volta ao tempo dos países comunistas do leste europeu. Uma polícia suspeitosa, numerosa, em uniformes ou em trajes civis. Estamos em um país imaginado por George Orwell e Franz Kafka ao mesmo tempo. Tudo é paralisado, absurdo e estranho. Somos espionados, tutelados, não nos sentimos confortáveis. A primeira noite que passei no hotel foi em branco. Impossível encontrar sono. Sem recurso à embaixada da França, me acolheu, eu não poderia ter descansado nesse país que me deu incessantes enxaquecas e vontade de vomitar. Essas coisas se sente, não se consegue explicar. (…) As pessoas são tristes, porque resignadas, sem energia. Não há Estado, não há governo, não há eleições, em todo caso não há vida política tal como conhecemos no resto do mundo. Por outro lado, há Muammar Kadafi por todo canto, o homem providencial, o homem que dissolveu o país num caldeirão de feiticeiro. Ninguém mais existe. Mesmo o Corão foi substituído por um outro livro, o “Livro Verde”, que contém os pensamentos do grande chefe. A obra é tudo ao mesmo tempo: a Constituição, a Bíblia, a referência única e suprema do país. (…) É um homem trágico: ele “se defende” como se alguém tivesse atacado sua própria casa. Porque a Líbia é sua casa, sua tenda, seu bem pessoal. Ele não compreende como alguém ousou contestar seu controle sobre aquilo que ele considera propriedade sua. Então ele mata. Não tem qualquer noção do direito, nem daquilo que é legítimo ou não.
É pelos revoltosos almejarem Estado de Direito que Juan Cole classifica a Primavera Árabe como a “Quarta Onda de democratização”, as ondas prévias tendo acabado com estados de segurança nacional em países como Brasil e Polônia.
E não é à toa que Jelloun e Benslama encontram um paralelo para as insurreições árabes, não em 1989 ou 1848, mas em 1789. Na França pré-revolucionária, os poderes encaravam o indivíduo como uma não-entidade, tendo importância apenas na medida em que serviam aos desígnios dos representantes de Deus na Terra e da nobreza virtualmente proprietária da nação. No mundo árabe dos últimos tempos, escreve Jelloun, “tudo se tem feito para que a emergência do indivíduo enquanto entidade singular e única seja impedida”, com presidentes da República agindo como monarcas absolutos.
A autoimolação pelo fogo de Mohamed Bouazizi, ambulante tunisiano da pequena cidade litorânea de Ben Arous que teve sua mercadoria confiscada e seu rosto marcado pelo tapa de uma agente de polícia, serviu como desencadeador da Primavera. Em uma bela passagem de Soudain la révolution!, o psicanalista Benslama lembra os relatos de pessoas próximas que atestam ter sido Bouazizi um sujeito com queda para ajudar o próximo, e “em casos semelhantes, o altruísmo aparece como um dispositivo facilitante do autosacrifício.”
Bouazizi não morreu para desencadear uma revolução no mundo árabe, talvez sequer para desencadear um protesto em Ben Arous em prol do aprimoramento da abordagem de uma polícia que é a própria face do poder. Os tunisianos, mesmo na fúria que se seguiu à morte pelo fogo do vendedor de frutas, sabiamente passaram a se referir ao ato do rapaz utilizando o termo qahr, vocábulo que se refere, explica Benslama, àquilo que reduz o indivíduo à impotência total. Ou, nas palavras da Sra. Bouazizi já durante as eleições do último domingo 23 de outubro: “mudez e falta de respeito”. É a esta condição que o regime de Ben Ali reduziu a Tunísia, por meio da “neutralização política dos tunisianos e transformação dos atores públicos em marionetes”, efetivada por um círculo dirigente que trata a nação em parte como salão de jogos particular, em parte como terreno dos fundos sempre pronto para a colheita.
O ato de Bouazizi teve o efeito de inserir subitamente na equação uma incógnita que bagunçou o cálculo. Ele introduziu a possibilidade de inversão das relações, ao mostrar como o homem pode encontrar força na sua impotência mesma, existir ao desaparecer, fazer prevalecer seu direito ao perder tudo. É a própria antinomia de um Ben Ali, que não conseguia existir a não ser fazendo os outros desaparecerem (…).
A população tunisiana, e por tabela em outros países árabes, não exige luxos e não quer reinventar a roda. Ela almeja aos direitos mais essenciais. Respeito, para começar. Mas não há canais efetivos através dos quais dialogar com governos como o sírio, que são também poderes absolutos. Não há representantes dos movimentos populares com os quais o governo possa negociar, porque a própria ideia de representatividade foi abolida. O poder absolutista tem em muito pouca conta os sofrimentos e vontades das pessoas. Ben Ali em privado após Bouazizi ser hospitalizado em estado crítico: “Que ele se dane!”. Kadafi sobre os que achavam que a Líbia não era propriedade de sua família: “Ratos!”.
* * *
Vendo daqui, final de 2011, o cenário pós-revolução contém um enorme ponto de interrogação. Histórias de revoluções mostram que, em seguida à queda de tiranias, às vezes segue-se novas tiranias. Isso não é, claro, motivo para não vibrar enquanto a tirania antiga cai. E estou aberto à ideia de que a tolerância das novas gerações árabes com as ideologias totalizantes de seus pais se esgotou, ou quase isso. Mas o risco existe. Adeptos de totalitarismos seculares e religiosos infelizmente ainda não faltam. Podem não estar pondo as bandeiras na rua ainda, mas existem. Uma coisa devemos reconhecer: os fanáticos costumam ser muito mais decididos do que o resto da humanidade. Eles estão de posse da Verdade e sabem que caminho tomar, então são pacientes, suportam perdas e dores sem mudar de rumo; ser minoria não é problema, pelo contrário, apenas mostra o quão importante é a tarefa de fazer a maioria ver a luz e entrar nos eixos.
Meu medo não é sequer que candidatos reacionários ganhem eleições. Não há um ano que passe sem que candidatos reacionários sejam eleitos nas Américas, Europas e Ásias. Meu medo é que os políticos reacionários tenham partidos e bases determinadas e sorrateiras o suficiente para solapar estruturas democráticas ainda não solidificadas. Como ideologia secular totalizante traz logo à mente, no mundo árabe, o Nacional Socialismo de um Saddam e de um Assad, matadores contumazes de opositores reais ou imaginados, pode-se ter alguma certeza que os árabes que estão nas ruas tenham mandado essa vertente do totalitarismo para a lata de lixo por um bom tempo. O mesmo não se pode dizer das ideologias totalizantes de caráter religioso. Muitos partidos islâmicos foram reprimidos por ditadores recém-derrubados, e aparecem agora na cena como estrênuos defensores da liberdade. Muitos dos manifestantes nas ruas são solícitos a seus apelos e pregações.
A conferir como as coisas se desenvolverão. Devemos estar preparados para denunciar novos autoritarismos, e devemos estar preparados para denunciar governos democraticamente eleitos que adotem políticas que vão contra os mais básicos preceitos, por exemplo, da igualdade de gênero. Respeitar os resultados de uma eleição não significa isentar governantes de críticas, nem mesmo deixar de combatê-los pelas vias legais e por meio do debate de ideias. Isso o sabe qualquer um que esteja sempre pronto a criticar o presidente estadunidense da vez. Os futuros governos árabes não devem ser exceção, do contrário estaremos apenas sendo condescendentes ou coisa pior.
Nem Tahar Ben Jelloun, nem Fethi Benslama levam a ameaça islâmica muito a sério. Claro, eles abominam o islamismo (que é o Islã político), e teriam alguma coisa para debater com aqueles ocidentais que acham que a Irmandade Muçulmana não difere muito da Democracia Cristã europeia, mas acreditam que o potencial da ideologia islâmica se esgotou e ela foi vencida pelos novos acontecimentos. “Os militantes islamistas”, analisa Jelloun, “estiveram ausentes e foram pegos de surpresa pela amplitude das manifestações.” OK. Mas os islamistas não haverão de eternizar essa ausência, no que, em um regime democrático, estão em seu direito.
Fethi Benslama concorda com o escritor marroquino. Os revoltosos, diz ele, estão celebrando a sacralidade do humano, uma sacralidade não-religiosa. “Crime contra a humanidade” tornou-se um termo difundido em seu meio. Não crime contra as normas religiosas do nosso gosto, mas crime contra a condição humana. O próprio martírio de Bouazizi, explica o autor, rompeu padrões muçulmanos. Por muito tempo, entre as autoridades da religião, o debate sobre o suicídio se deteve nas ações do suicida-homicida, que morre para matar infiéis. Alguns religiosos condenavam tais atos de cara, prevendo o inferno para o suicida assassino de civis inocentes. Outros viam os atentados como inseridos no quadro mais amplo da guerra santa, portanto passível de racionalizações, discordando apenas quanto à classificação dos inocentes mortos – danos colaterais para se lamentar, ou soldados ativos do exército inimigo cuja morte deve-se celebrar?
Bouazizi – além de, como vimos, confundir a equação da cleptocracia tunisiana – teria não apenas secularizado, mas profanado o conceito de mártir. Quando de sua morte, lembra Benslama, a reprovação das autoridades religiosas foi enorme. O seu foi um suicídio “atroz e pouco frequente na Tunísia, como em todo o mundo árabe”. O mufti da Tunísia soltou um comunicado dizendo: “O suicídio, como a tentativa de suicídio, é um dos maiores crimes. Não há qualquer diferença legal entre tentar se matar e matar uma outra pessoa. O defunto não deve ser lavado, não deve-se rezar por ele, nem lhe enterrar no cemitério dos muçulmanos.” Isso representou a efetiva excomunhão de Bouazizi.
Ayoub, o Jó do Corão, suportou todos os sofrimentos, como prova de sua fé. Bouazizi, não. Ainda assim, ninguém na Tunísia ou no mundo árabe deu ouvidos às autoridades religiosas, e todos passaram a se referir a Bouazizi como um mártir. Um mártir pela causa dos direitos humanos. Jelloun: “Essa primavera assinala a derrota do islamismo”.
Bem, todo mundo tem sua frase histórica furada predileta sobre como o pior de uma conturbação social já passou e adiante esperam apenas os louros da vitória. A minha é a de Thomas Paine na primeira parte do Rights of man, dois anos antes do início do Terror francês: “(…) quando a Revolução Francesa for comparada com as revoluções de outros países, o espantoso será como ela foi marcada por tão poucos sacrifícios (…)”.
Não querendo saber mais do que dois autores estudados na língua e história árabes, mas suspeito fortemente que nos vereditos de Ben Jelloun e Fethi Benslama sobre a derrota do islamismo há muito de wishful thinking.
Benslama apenas em suas últimas páginas atenta para o perigo islamista. Seria um equívoco, ele diz, após os árabes conquistarem a democracia, cederem à tentação de islamizá-la. “Islamizar a democracia” é uma das propostas de Tariq Ramadan, suíço de descendência egípcia e professor de Oxford, tido por muitos como um baluarte da moderação (julgamento que Paul Berman a Caroline Fourest puseram em cheque com alguma paciência e fartura de dados). Benslama vê uma islamização da democracia como algo tão absurdo como uma islamização da ciência – o que muitos muçulmanos, a exemplo de outros monoteístas, continuam tentando fazer, com resultados cômicos. “Entre a demanda de democracia e sua institucionalização, há um longo caminho a percorrer, incerto”, reconhece o autor, mas apenas como quem quis dar um jeito de não deixar esse ponto fora do livro, e não como quem lida com um fator dos mais relevantes.
Jelloun é ainda menos pessimista. Tunísia, Egito, Líbia e outros países que passaram e estão passando por revoltas, ele raciocina, são majoritariamente sunitas. Na tradição islâmica, os xiitas apresentam risco maior de constituição de teocracias, por conceberem a prática religiosa em termos hierárquicos e serem mais propensos a seguir um líder religioso e político ao mesmo tempo. A aiatolada iraniana seria a referência.
Confesso que não lembro de ter lido esse argumento antes. E não sei o que sobraria dele após uma análise da prática dos sunitas da Arábia Saudita e do Talibã.
No final das contas, o que nós, aqui de longe, teremos que fazer é observar com atenção as revoltas árabes, um processo que promete durar pelo menos muitos meses mais e derramar ainda uma quantidade lamentável de sangue em países como Síria e Iêmen. Observar, estudar os principais atores, separar o joio do trigo, e torcer. Torcer para que a democracia se institucionalize e para que Jelloun e Beslama tenham razão sobre o islamismo.
::: Soudain la révolution! – De la Tunisie au monde arabe: la signification d’un soulèvement :::
::: Fethi Benslama ::: Denoël, 2011, 117 páginas :::
::: L’étincelle – Révoltes dans les pays arabes :::
::: Tahar Ben Jelloun ::: Gallimard, 2011, 122 páginas :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
[email protected]