O Afeganistão depois do Talibã
Uma multidão lota o Estádio de Esportes Ghazi, em Cabul, e grita Allah-o-Akbar! (Deus é grande!), incitada por radicais de turbante negro. A plateia não sabe exatamente o que irá acontecer — estão no intervalo de uma partida de futebol. Uma burca é guiada para o centro do estádio; a mulher condenada por adultério em um tribunal de mulás é enterrada até a metade do corpo, sem rosto nem identidade. É o dia da sua execução. Guardas e desafetos se aproximam com pedras. Um barbudo na plateia tampa os olhos com as mãos. Mas ouve os versos do Alcorão recitados por um religioso, os gritos da desconhecida. Ela cai. O sangue mancha o tecido azul. Mais gritos e choro; há crianças na plateia. Os dos guardas limpam o sangue com uma mangueira, enquanto outros jogam o cadáver no bagageiro de uma picape. Eles deixam o campo. O jogo recomeça.
As execuções públicas eram conduzidas de surpresa nos intervalos de clássicos do futebol, a única diversão pública nos tempos do Talibã. Os jogos atraíam um grande número de pessoas, quase 30 mil naquele estádio — os radicais controlavam o povo pelo medo.
Isso foi até 2001. Faz parte do passado, de um velho Afeganistão. Ou assim deveria ser.
Dê um fast forward até 2011.
Mãos para trás, aquele homem da plateia, agora com o rosto bem barbeado, percorre a fila de jovens garotas, lado a lado, mãos estendidas à frente do corpo com as palmas para baixo. Os olhos dele percorrem cada uma delas à procura de unhas compridas, mal cortadas, roídas. Terminada a revista, elas agora seguem os movimentos do mentor. Socos. Chutes. Golpes no ar. O hijab teima em escorregar da cabeça e o ato de rearranjá-lo se incorpora aos demais movimentos, repetidos exaustivamente.
Com idades entre 14 anos e 25 anos, as vinte meninas integram a primeira equipe de boxe feminino do Afeganistão. Elas treinam no mesmo Estádio de Esportes Ghazi, em Cabul, onde mulheres eram antes executadas. Sadaf Rahimi, de 17 anos, está entre as atletas e é uma das três lutadoras qualificadas para representar o país em competições internacionais. Em abril de 2011, defendeu a bandeira afegã no Campeonato Mundial de Boxe Feminino, na Turquia. Foi a primeira vez que o campeonato tinha competidoras afegãs.
Sadaf não venceu, mas participar significa muito. Representa o futuro, a promessa de um novo Afeganistão. Um lugar que ainda não existe.
Entre o passado de conflitos e um futuro de possibilidades, há uma década que só não pode ser julgada perdida porque não havia antes perspectiva. Agora há. Mas o presente precisa ser construído para que aquilo que é mera possibilidade se transforme em algo concreto e real. E isso se dará penas mãos da geração de Sadaf.
No dia 23 de junho de 2011, em um discurso oficial no Palácio do Governo, em Cabul, o presidente Hamid Karzai declarou que a juventude afegã se erguerá para defender o Afeganistão quando as tropas americanas deixarem o país. O plano de retirada, anunciado pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, previa a saída de 33 mil soldados em 2011, uma década depois do Onze de Setembro, e o restante seria retirado gradualmente até dezembro de 2014. Espanha, França e Grã-Bretanha anunciaram que pretendiam seguir a mesma agenda.
Sadaf aceita o desafio colocado pelo presidente Karzai de lutar pelo país.
— O boxe me dá segurança, faz de mim uma pessoa mais forte e confiante — ela diz.
Mas sua luta é outra.
Ela ainda era apenas uma criança, de 7 anos, quando o Onze de Setembro aconteceu. Não se lembra de onde viu, como soube ou o que sentiu em relação aos atentados. Como é da etnia hazara e segue a linha xiita do Islã, a família decidiu refugiar-se no Paquistão pouco depois de os radicais islâmicos sunitas assumirem o poder — eles ameaçavam essas etnias. Os pais — ele agricultor, ela dona de casa — partiram de Bamyian, a província dos budas gigantes destruídos pelos fundamentalistas, com Sadaf, então um bebê de colo, suas três irmãs e seis irmãos, e atravessaram a fronteira de ônibus em uma viagem que levou três dias. Sadaf só voltou ao Afeganistão em 2002, no rastro da ofensiva estrangeira no país. A invasão soviética, a guerra civil afegã, o regime Talibã, os ataques terroristas em Nova York são para ela apenas trechos vagos de conversas que ouviu dos pais ou leu nos livros de História.
O Afeganistão de Sadaf, segundo sua própria definição, é um lugar sob ocupação estrangeira, de um lado, e insurgentes fundamentalistas que tentam combatê-la, de outro. Nenhum deles tem compromisso com os afegãos; e, quando o primeiro grupo deixar aquelas terras, o segundo perderá a razão de existir. E, então, a luta será reconstruir o país. E isso se dará pelas mãos das novas gerações.
O país que as forças de coalizão deixariam para trás, depois de uma década de guerra, não tem velhos. Metade da população tem até 14 anos. A expectativa de vida ao nascer é de 44 anos — morre-se antes de envelhecer. Os dados são do Índice de Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, em que o Afeganistão ocupava a 155ª posição entre 164 países pesquisados em 2011. O índice avalia renda, saúde e educação.
Mais de 30 bilhões de dólares da comunidade internacional foram gastos em ajuda para o Afeganistão, excluídos os investimentos militares e em reconstrução. Ainda assim, o país seguia mal nas três áreas.
Em 100 mil grávidas, 1,1 mil mães morrem durante a gestação (17); é o dobro da taxa de um dos mais pobres países da África, a República Central da África ou três vezes a taxa de Camarões. Nas áreas rurais, excluídos os dados das grandes cidades como Cabul, a taxa de mortalidade entre as gestantes chega a 6,5 mil para cada 100 mil, de longe o maior do mundo. O mesmo nas províncias mais remotas, como Badakhshan, no norte. (20)
Se chegarem ao parto, 135 em cada mil perdem o bebê — 75 por cento delas por falta de cuidados básicos. Cada afegã tem sete gestações e perde dois filhos, em média — menos de 16 por cento usa métodos contraceptivos, mesmo que o marido não saiba. Os partos (81 por cento) são feitos em casa. Somente 14 por centro dos partos são assistidos.
Hoje, elas podem ser atendidas, mas não há hospitais suficientes — para cada mil habitantes, há um leito de hospital, quando o mínimo considerado são três — e a dificuldade de acesso, graças à falta de transporte e às pobres condições das estradas, que as mantém isoladas no unverso das tradições tribais, as impede de buscar ajuda.
Entre as mortes maternas, 38 por cento são por hemorragia e 26 por cento por obstrução do útero e infecções, segundo a médica Nader Akbary, do Esteqlal, maior hospital público de Cabul, onde a maioria dos 45 partos diários ocorre à noite. Por quê?
— Porque as afegãs não saem sem um homem da família. Elas esperam que cheguem do trabalho para trazê-las à maternidade. E esses homens preferem enterrar a mulher a trazê-las ao hospital — diz a médica.
Aí já é tarde e elas viram estatística.
— Embora a situação seja agravada pela falta de médicos nas áreas rurais e dificuldade de acesso, a tradição é ainda o pior inimigo das afegãs — diz o médico pachto Arif Oryakhail, formado pela Universidade de Cabul, com doutorado na Itália. Arif deixou o Afeganistão em 1983, e ao voltar, em 2006, a mortalidade materna e infantil recuara pouco ou nada, embora o país vivesse uma democracia e tivesse mais recursos.
As afegãs se casam jovens demais, aos 14 anos, e seu corpo não está preparado para a gravidez. Muitos bebês têm anomalias porque as mães não têm tempo de amamentar entre uma gravidez e outra, são desnutridas, automedicam-se e se casam com parentes próximos. Para cada mil que nascem, 165 morrem nos primeiros meses. Uma em cada cinco morre antes de completar 5 anos. Pelo menos 39 por cento das crianças com menos de cinco anos não tem o peso ideal para a sua idade (18).
Não há leis que a protejam de estupros ou os chamados crimes de honra. Não têm acesso à recursos econômicos. E a falta de acesso à saúde é apontada como um problema maior do que a segurança (19) — isso em um país em guerra.
Shukria Barakzai é um exemplo entre avanço e tradição. Deputada, ativista e editora da revista feminina Aina-E-Zan, ela vive em casa um casamento arranjado. Perdera gêmeos prematuros na guerra civil (1992-6) porque o hospital não tinha eletricidade para a incubadora. Os bebês morrerem uma hora e 45 minutos depois de nascerem. O marido tem uma segunda esposa porque, depois de gerar três meninas, ela «não conseguiu lhe dar um filho homem» e se recusou a engravidar de novo.
É o Afeganistão velho que persiste.
Pelo menos 72 por centro dos afegãos permaneciam analfabetos em 2011 — a taxa era de 87 por centro de analfabetismo entre as mulheres e 57 por cento entre os homens. Mais da metade dos que estavam em idade escolar continuavam fora da sala de aula — 7 milhões de crianças privadas dos estudos. Entre os demais, a média de permanência na sala de aula era de pouco mais de três anos.
Apesar dos avanços para as mulheres após a queda do regime Talibã, a desigualdade de gênero seguia dramática. Entre os 5 milhões de alunos matriculados em 2011, havia apenas 1,5 milhão de meninas. No ensino médio, a desproporção era ainda maior: uma aluna para cada 20 meninos.
Entre os 237 alunos da escola pública Saward Hayte Mawand, que eu visitei no centro, só 54 são meninas. A escola feminina Gozargah tem 4.280 alunas, mas espaço para 10 por cento delas. As demais estudavam em tendas no pátio. Para a diretora Mahbooba Khaja Zada, de trinta anos, é um avanço. No regime talibã, ela educou 180 meninas na sala de casa.
— Três ou quatro vezes, eles vieram armados. Mas nós escondíamos os livros sob a mesa e colocávamos o Corão — ela me diz. — Agora, pelo menos, elas podem estudar. Ainda que em velhas tendas.
É o Afeganistão de hoje que precisa ser reconstruído. Mas há o novo, nas 17 universidades abertas desde 2002. Sadaf está no último ano do ensino médio e quer estudar para ser piloto de avião — é o Afeganistão do futuro.
Enquanto luta, ela deixa o véu cair na frente do professor e nem se dá conta — o novo —, mas quando me dá entrevista na presença de um tradutor homem, jovem como ela, cobre o rosto até os olhos com o véu negro — o velho. Diz que os pais a deixaram escolher com quem se casar, e ainda nem pensa nisso — o novo —, mas fica vermelha só de tocar no assunto — o velho. No campeonato mundial de boxe, concorreu com as melhores atletas do mundo — o novo —, mas perdeu porque falta às afegãs condições para treinar — o velho.
As atletas só treinam três vezes por semana por uma hora e meia, têm apenas um colchão especial para boxeadores, não contam com transporte, não têm dinheiro para participar de mais competições internacionais e, assim, ganhar experiência. As vinte meninas recebem do Comitê Olímpico Nacional 3 mil afeganes (ou 112 reais) a cada três meses para lutar. A Associação Internacional de Boxe autorizou o uso do hijab pelas atletas; a única exigência é que deixem o rosto descoberto.
— A luta dessas meninas representa a luta de todas as afegãs. Foi muito difícil reuni-las porque o preconceito ainda é enorme — diz Mohammad Saber Sharifi. É ele o barbudo que estava na plateia quando aquela mulher sem rosto condenada por adultério foi executada. É ele o homem agora bem barbeado que treina a equipe feminina de boxe.
Sharifi lutou entre 1980 e 1988, durante o regime soviético, e representou o Afeganistão em competições internacionais como as Olimpíadas de Moscou. Atravessou o regime do Talibã treinando equipes masculinas no Estádio de Esportes Ghazi, em Cabul. Os radicais o fizeram deixar crescer a barba — e, assim, os atletas foram impedidos de lutar em competições fora do Afeganistão porque não é permitido a lutadores de boxe ter barba longa — mulá Omar gostava muito de futebol e boxe, mas não abriu mão da barba.
O país foi banido de todos os jogos internacionais quando os talibãs proibiram outros esportes. Com o fim do regime islâmico, o Afeganistão voltou a competir. Em 2004, o país mandou cinco atletas, incluindo duas judocas, para as Olimpíadas de Atenas. E, em 2008, foi medalha de bronze no tae-kwon-do nas Olimpíadas de Pequim. Ambas as competições tiveram participação da equipe afegã de boxe masculino. Foi, então, que Sharifi teve a ideia de começar a treinar meninas.
Aos 52 anos, Sharifi viveu o Afeganistão do passado, é testemunha ocular do presente, e luta por um futuro melhor para o seu país pelas mãos dos atletas. Sadaf e a irmã dela, Shabnam Rahimi, foram as primeiras a se inscrever para lutar.
— Selecionamos as meninas nas escolas e fomos atrás dos pais para que dessem autorização às que se mostraram interessadas no esporte. Mas muitas delas vêm, treinam e, então, se casam e param de lutar. Já perdemos seis atletas nessa situação. Uma delas (Shahla Sekandari) conquistou medalha de bronze, em 2009, nos Jogos Asiáticos de Hanói, no Vietnã. Três meses depois, ela se casou e nunca mais apareceu. Era uma lutadora fenomenal! Fomos procurá-la, tentamos convencer o marido, mas não conseguimos trazê-la de volta.
No Afeganistão, pelo menos 70% dos casamentos são forçados para as mulheres.
As meninas não têm escolha senão aceitar. Mas, para a minha surpresa, conheci muitas jovens — a maioria, acredite — que diziam preferir assim quando chegasse a vez delas. O amor é complicado demais, provoca intrigas, ciúmes, brigas, e a família é a mais importante instituição afegã, seguida da tribo — não vale a pena arriscá-la por sentimentos tão banais.
Sadaf acha que o Ocidente supervaloriza o amor entre homens e mulheres, em detrimento da família; adora assistir às românticas novelas indianas, mas prefere deixar as paixões e traições no campo da fantasia. O que seria dela se um dia o amado a trocasse por uma segunda esposa? Sem amor, acredita, a vida pode ser mais tranquila. E a família saberá escolher um marido bom para ela. De qualquer forma, não pensa nisso ainda.
— Minhas amigas todas estudam e nenhuma delas se casou ainda — diz Shamsia. — Somos jovens normais! Só não saímos à noite ou namoramos como no Ocidente porque isso ainda é malvisto no Afeganistão. Mas gosto da maneira como a sociedade é. Não precisamos ser mais livres do que isso.
A estilista Fátima Ehsami, de 25 anos, já perdeu as contas de quantos pedidos de casamento recebeu — “uns dez, talvez”. Negou todos. Em 2010, ela abriu sua própria confecção, em uma pequena sala comercial ao lado de casa dos pais, com financiamento de um programa de microcrédito do Comitê Internacional da Cruz Vermelha.
Ela recebe, em média, dez encomendas de vestidos de festa por mês — cheios de brilho, rendados, decotados, e ainda usados exclusivamente nas festas só para mulheres, é claro — o velho e o novo. Fátima junta dinheiro para construir uma casa própria, Inshallah! (Se Deus quiser!) E só se Deus quiser mesmo, porque se depender de seus pais, ela nunca irá morar sozinha, ainda que seja no terreno que comprou vizinho à família. Entre as três irmãs, só Fátima trabalha fora e ainda não se casou. Ela é o novo; as irmãs, o velho.
— Elas acham que não consigo arrumar um marido, porque a ideia de não querer se casar ainda é inconcebível para a maioria — diz. — Acham que eu não quero ficar em casa porque não os amo. É muito difícil romper tradições nesse país.
No Bazar Mandavi, maior centro comercial de Cabul, uma ala de fabricantes de burcas resiste ao tempo — há uma centena deles somente ali, um grudado no outro, em um imenso corredor. Penduradas lado a lado, no mesmo tom de azul, parecem todas iguais. Shahpoor Zaheri, de 41 anos, mostra diferenças no bordado e no tecido. Ele é a quarta geração de vendedores de burcas da família, e dez anos após a mais recente ofensiva estrangeira no país, ainda vende 42 burcas por dia. Em uma rápida conversa, quando fui comprar a uma burca para andar em paz por Cabul, ele me diz vender 30% menos burcas do que nos tempos dos talibãs. Ainda assim quer os radicais longe do poder. Desde que as duas mulheres, com quem tem quinze filhos, continuem cobrindo-se com a veste.
O manto azul que se tornou símbolo da opressão feminina no Ocidente. A burca tem uma história interessante: é uma veste pré-islâmica. Ou seja, não tem nada a ver com religião. Foi idealizada por um rei para que as mulheres nobres da família real pudessem deixar o palácio sem serem vistas ou importunadas por plebeus. E as mulheres que se julgavam tão nobres quanto a rainha e as princesas adotaram a veste e aquilo se espalhou. É a tradição de um Afeganistão milenar que ficou velho, não se renovou.
As afegãs jovens das zonas urbanas já não usam a burca, mas o Afeganistão segue predominantemente rural e há muitas outras tradições que distanciam além do campo físico as jovens das cidades e dos vilarejos.
Ao contrário de Sadaf e suas amigas, pelo menos, 57% das meninas afegãs ainda se casam com menos de 16 anos, idade mínima definida pela nova Constituição. É o velho e o novo em choque outra vez.
Comemorada pela comunidade internacional, a Carta começou a dar problemas assim que foi aprovada. Embora determine igualdade de direitos para homens e mulheres, quando o reality show Afghan Star foi ao ar com vídeos de afegãs aspirantes a cantoras, a Corte Suprema argumentou que a apresentação era inconstitucional. Isso porque o artigo 3º da Constituição determina que, a despeito de tudo o que está escrito em suas páginas, “nenhuma lei pode ser contrária às crenças e provisões do Islã”.
Mais de duas mil jovens, de todas as partes do país inscreveram-se na disputa para se tornar o primeiro ídolo pop do Afeganistão. A competição durou três meses, com eliminações semanais, a cada episódio, decididas pelos telespectadores por SMS. A final do programa, televisionada do salão de festas do Hotel Intercontinental de Cabul, foi vista por 11 milhões de espectadores — ou um terço da população — em aparelhos de TV a bateria (vendidos a partir de 150 reais, os modelos em cores). Foi a maior audiência da história da televisão afegã.
Entre os finalistas, estava a cantora Setara Hussainzada, de 25 anos. Ela foi acusada de blasfêmia, teve o portão de sua casa pichado com a palavra “prostituta”, e recebeu ameaças de morte porque, durante a apresentação, o hijab escorregou da sua cabeça, deixando os cabelos à mostra. As ameaças obrigaram a família toda a se mudar do endereço onde morava em Herat, No documentário homônimo sobre o programa, do diretor britânico Havana Marking, garotos afegãos tão jovens quanto Setara afirmam que ela merecia morrer porque envergonhou o povo afegão ao dançar em público. O velho e o novo, mais uma vez.
O programa foi produzido pela TV Tolo, primeira emissora privada do país, que chega a 14 cidades afegãs via satélite. Faz parte do do Grupo Moby, o maior conglomerado de mídia do Afeganistão — o único, aliás — criado por quatro irmãos criados na Austrália, que voltaram ao país para abrir jornais, emissoras de rádio e tevê com um empréstimo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, a Usaid, depois que o regime Talibã colapsou.
Se há alguma coisa que todo mundo tem hoje no Afeganistão, nas comunidades mais pobres e vilarejos mais remotos e sem luz, é um aparelho de celular. A outra é TV. Em Cabul, o aparelho chega a 90 por cento das casas. E quem não tem assiste com um familiar ou vizinho — cerca de dois terços da população assistem tevê todos os dias ou quase todos os dias, segundo a Rede de Analistas do Afeganistão, uma think tank local.
A tevê Tolo transmite novelas e filmes indianos, mas as mulheres têm uma estranha tarja sobre partes do corpo tão inocentes quando os braços e o pescoço. Nos supermercados da capital Cabul, que floresceram junto com a chegada dos estrangeiros, há CDs e DVDs de produção ocidental à venda, mas filmes como Titanic, sucesso absoluto no Afeganistão, só pode ser comprado no mercado negro porque exibe beijos e cenas insinuantes.
O mercado negro, aliás, inundou a sociedade afegã com pornografia. Nos momentos de privacidade, adolescentes asiáticas parecem ter a preferência dos meninos. Não raro, eles são flagrados assistindo, às escondidas, esse tipo de filme ou checando sites de mesmo teor nos computadores das agências internacionais para as quais trabalham. Nos
escritórios, os afegãos convivem com os estrangeiros e podem até compartilhar com eles a mesa de almoço ou jantar nos restaurantes onde são bem vindos. E há muitas histórias de casos e traições entre afegãos e mulheres estrangeiras.
Mas as mães, irmãs e esposas deles continuam protegidas em casa.
* * *
As casas afegãs permanecem santuários impenetráveis para a maioria dos estrangeiros. Embora a hospitalidade seja uma tradição afegã, os muitos anos de guerra acentuaram muitíssimo a segregação entre o espaço privado e público na sociedade afegã.
Especialmente na capital Cabul, onde se concentram as sedes das organizações internacionais, os afegãos vivem duas realidades paralelas — em casa e no trabalho, na vida em comunidade e no contato com os forasteiros. Como não sabem como aproximá-los um do outro, eles se dividem entre os dois mundos.
— Esses ocidentais, eles vêm para o Afeganistão com suas ideias mirabolantes… Querem fazer uma mula correr como um cavalo. Isso não funciona! O que precisamos fazer é resgatar a identidade afegã. É assumir essa identidade e fazer com que os afegãos voltem a ter orgulho dela. E a arte tem esse poder. É algo que nos dá muito orgulho, que nos diferencia no mundo. Nossa indústria de tapetes é como a de automóveis na Alemanha. Pode realmente mudar a economia do país, e é isso o que eu quero fazer com toda a arte afegã — diz Rameen, dono de uma galeria de arte Cabul.
Soube da galeria por um amigo da Cruz Vermelha e um dia chamei um táxi para visitar o local que de antemão eu julgava inusitado para um país mergulhado em conflitos. Quando dei o endereço ao taxista, ele começou a rir. A tal galeria ficava a exatamente uma quadra da pousada onde eu estava hospedada, do outro lado da rua. Tornou-se meu QG, meu oásis em meio à guerra.
A galeria fica em uma típica casa afegã, com um lindo jardim de áreas ao ar livre e outras cobertas e decoradas com tapetes e almofadões. Cada cômodo foi transformado em uma loja de artes. Tapetes, móveis, roupas e joias, porcelana e objetos de madeira. Ainda no térreo havia um balcão onde são servidos sucos e sorvetes, no pátio externo, além de um restaurante japonês interno, de uma imigrante casada com um afegão — o casal vive em Bamiyan e aquela é uma filial do restaurante original. No primeiro andar, há predominância de quadros de uma nova geração de artistas da Escola de Artes de Herat.
Peço para falar com o proprietário e sou apresentada a um jovem de roupas ocidentais, gel no cabelo e inglês perfeito. Ele começa a me contar a sua história, os anos do exílio nos Estados Unidos e seus planos para um novo Afeganistão. Aquilo tudo me soou familiar e, quando ele me diz seu nome, Rameen, eu arregalo os olhos. Você não é o Rameen, amigo da Alexandra?
— Alexandra, a jornalista portuguesa? Sou eu, sim! Rameen, por uma daquelas coincidências do destino, é o amigo da jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho. Ela tinha me dado um contato de Rameen e recomendou muitas vezes que eu o conhecesse. “É um sujeito impecável”, dizia. Eu havia tentado, mas por algum motivo não conseguira até então encontrá-lo, talvez o número de celular tivesse mudado. O destino me trouxe até ele, um sujeito realmente impecável. Quando voltou para o Afeganistão, abriu empresas para ganhar dinheiro e a galeria como hobby para ajudar a divulgar a arte afegã, o que fez dele o maior marchand do Afeganistão. Ele acabara de voltar da Alemanha com um grupo de pintores de Herat.
Nas paredes, ele me mostra quadros de um jovem artista que inventou uma nova técnica de pintura, com lama. O resultado é magnífico e emociona.
— Esta é a nossa identidade. Se é lama o que temos aqui, então vamos transformar lama em algo bom. Os afegãos têm essa capacidade — diz Rameen, que morou e estudou em Nova York e me conta de um antigo romance com uma brasileira. Agora está casado com uma afegã lindíssima, que trabalha com ele na galeria e está grávida do primeiro filho do casal.
Há muitas outras iniciativas no campo das artes, quase todas pelas mãos de ex-exilados.
Shamsia Hassani nasceu e viveu no Irã até os 16 anos, quando a família refugiada dos conflitos decidiu voltar para Cabul, em 2004.
Ela se formou em Relações Internacionais na Universidade de Cabul. A irmã mais velha é professora de alemão do Instituto Goethe. A segunda irmã e um irmão cursam o fundamental. Depois de formada, ela fez um curso de arte moderna e, aos 23 anos, dá aulas de pintura na universidade onde se formou.
Shamsia usa um hejab (véu islâmico) preto de bolinhas brancas, uma bata de linho cinza acinturada, calça preta e salto. Enquanto conversa comigo, ela troca mensagens pelo celular com amigos artistas. Eles combinam um encontro na National Gallery de Cabul. Em 2009, ela foi selecionada entre os dez melhores artistas do país pela Turquoise Mountain, organização escocesa que financia projetos de arte e arquitetura no país. O objetivo é restaurar a arte tradicional afegã.
Nos padrões ocidentais, Shamia é uma menina religiosa e conservadora. Ela defende um regime islâmico no Afeganistão, mas o modelo que tem em mente é o do Irã, onde ela cresceu e as mulheres ocupam 67% das vagas nas universidades — um jovem alto e bonito, de calça jeans, camisa xadrez, tênis Nike e cabelo curto penteado com pomada para deixar os fios arrepiados — chega para ver a nova exposição de Shamsia no novo centro cultural do Lycée Français, em Cabul.
Ao lado do antigo prédio da escola Estaqlal, o governo da França construiu o Lycée Français, um prédio de arquitetura moderna, todo envidraçado, que abriga no hall de entrada uma galeria de arte contemporânea onde Shamsia está fazendo uma exposição com os outros colegas do grupo que reúne 16 jovens artistas.
Exposições do grupo já esteve na Alemanha e na Itália. Quando nos encontramos, Shamsia tinha acabado de voltar para Cabul após 12 dias em um festival de artes plásticas, música e cinema dos países do sul da Ásia, patrocinado pela Associação Regional de Cooperação do Sudeste Asiático, formada pelos governos da região. A obra selecionada para a exposição foi a bandeira do Afeganistão com a imagem de Buda em cada uma das três faixas de cor (vermelha, verde e preta). A inspiração veio dos Budas gigantes de Bamiyan, destruídos pelo Talibã.
— Os locais históricos, islâmicos ou não, devem ser preservados porque contam a história daquela época e são parte da identidade do país, assim como a bandeira — explica Shamsia. A nova arte afegã ganhou as ruas e começa a colorir os muros destruídos de Cabul, depois que um workshop em grafite foi oferecido por uma ONG australiana. Nove dos 16 artistas do grupo de Shamsia passaram a usar o grafite como arte, uma iniciativa que eles chamam de “positive anger” (raiva positiva).
— O melhor do grafite é que você não precisa de um lugar específico, de uma galeria. Você tem Cabul inteira para pintar, um país inteiro destruído — diz Qasan, que em uma primeira oficina pintou corações nos muros de Cabul. Durante o exílio, ele viveu em Lahore, no Paquistão, e começou a pintar como forma de aliviar a pressão. — Nós éramos todos vistos como terroristas e, para mim, a arte pacífica foi a maneira que encontrei de protestar contra a forma como o mundo passou a olhar para o Afeganistão depois do Onze de Setembro.
Rameen voltou da Índia para se estabelecer definitivamente em Cabul em 2008.
— Foi como desembarcar no inferno. Como vivi no exílio a maior parte da vida, eu nunca tinha visto um talibã, nunca tinha ouvido um tiro, uma explosão — diz. De repente, estava na embaixada da Índia quando um atentado suicida matou 48 pessoas. — Foi um choque! Pela primeira vez na vida eu pensei: um segundo e a sua vida vai pelos ares. Ao mesmo tempo, eu não tenho mais medo de nada e isso me ajudou a continuar no Afeganistão e ajudar a reconstruir o meu país, porque este é o meu país.
Tudo indica que será uma longa e dura batalha. Mas Sadaf e seus amigos estão prontos para a luta.
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Este post é um dos capítulos de O Afeganistão depois do Talibã (Civilização Brasileira, 2011; clique aqui para adquirir seu exemplar). As fotos que ilustram o post são de Adriana Carranca.
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Eduardo
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