Praça Tahrir, quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
em Capítulos, Mundo
À meia-noite a data muda na tela do celular. A temperatura cai e cai.
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Medo Abdel Kader pede-me o caderno e escreve o meu nome em árabe, para me ensinar letras. Depois fala de nomes de mulheres. “Pomos o nome delas no nosso coração e o fechamos.” E depois fala da ex-namorada Menna, que significa “presente”. “Mas o nome completo dela é Mennatollah, que significa ‘presente de Deus’. Terminámos no dia 25 de janeiro. Por favor não me pergunte por quê. Muitas coisas aconteceram.” Por exemplo, a revolução. “Mas não foi por causa da revolução.”
Ela tem 24 anos, um a menos que ele, e conheceram-se na Escola de Teatro. Medo tira o celular e mostra-me fotografias. Eles dois no Mar Vermelho, ele, tronco nu de Apolo, ela com um maiô de estrela dos anos 50. Ele de óculos de mergulho. Ele debaixo de água. Eles felizes ao sol.
Um rapaz e uma garota à nossa frente estendem um cobertor, deitam-se e estendem outro cobertor por cima deles. Impensável no mundo árabe, onde um beijo público já é algo difícil de imaginar. Mas não estão aproveitando a revolução para nada mais. Estão só deitados, ele com o braço à volta dela, cheios de casacos por baixo dos cobertores, apenas juntos para passarem a noite na praça. Enfim juntos.
Não sendo aquilo que o Ocidente já começaria a pensar, é uma grande coisa.
Medo está fascinado. “É a primeira vez que vejo pessoas livres no Egito. Antes de 25 de janeiro era impossível ver isto em público. É por isso que vimos aqui todos os dias. Nem conseguimos acreditar que somos iguais. Estamos nos tratando como iguais. Pobres e ricos dormindo na rua. Acho que não aconteceu em muitos lugares do planeta.”
Puxa um cobertor para me cobrir o colo.
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Ele ama a ex-namorada e acha que ela o ama, mas não se falam. Ela esteve aqui esta noite e não se falaram. Ele já lutou muito por ela e está cansado disso.
Quando foram ao Mar Vermelho, como foi, ficaram juntos? “Alugámos dois quartos e dormimos num só.” Pausa. “Mas isto não é comum. Poucas pessoas fazem isto.” Por isso é que alugaram dois quartos. Só um seria impossível.
Já estou semideitada.
Medo mudou a conversa para Deus: “Leio o Corão e a Bíblia e é a mesma mensagem. Então, por que lutar? Se o Islã é a última mensagem de Deus, por que não acreditar no Islã?” Está genuinamente espantado.
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0h25. Dois rapazes com caixas de papelão vêm distribuir pão pita e triângulos de queijo, um clássico nesta parte do mundo. “Os ricos querem ajudar e compram comida”, diz Medo.
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Que recorda ele de Roma? “Pombos. E muitas igrejas.”
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Partilho a cabeceira com os rapazes que estão dentro da tenda de plástico. Um deles lê um relatório chamado “Democracia e Revolução”, elaborado pelos Advogados para os Estudos Sindicais e Democráticos.
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Medo está aqui há 12 noites. Foi três vezes em casa tomar banho, mudar de roupa, ver o Facebook e os e-mails, e carregar o celular, mas dormiu sempre na praça. “Adoro estar aqui. Não me sinto bem quando estou em casa. Sinto que não está certo. Que há algo que eu devia estar fazendo. Que os meus irmãos estão aqui, e em perigo, e a qualquer momento pode acontecer qualquer coisa, cavalos, camelos, armas brancas, tiros. Vimos muitas coisas terríveis.”
Estava aqui no dia das pedras? “Estava. Atirei pedras. No Islã, um homem que se defende ou defende a sua família ou os seus irmãos é um shahid e vai para o paraíso.” Medo acredita no paraíso? “Claro, tem de haver um paraíso e um inferno. Os bons vão para o paraíso e os maus para o inferno. É por isso que somos diferentes. As pessoas podem escolher. Posso escolher ser um homem bom ou um homem mau.”
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Um homem de fé.
E um homem de teatro. “Gosto muito de um escritor chamado Eugène Ionesco. É francês, creio. E de Albert Camus. E de Brecht.”
E Shakespeare? “Ah, claro, li dez ou 11 peças. Fui o mercador de Veneza e o Hamlet.” Recita em árabe: “Akun au’le akun, tilka eia al mas ala.”
Ser ou não ser, na praça Tahrir.
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0h55. O homem ao lado acorda, senta-se, entrega um copo de chá a Medo. Medo partilha com ele pão e queijo. Vêm distribuir pacotinhos de halava, aquele doce árabe que se desfaz na boca. Como um, olhando para o céu, azul-petróleo, como se nunca escurecesse completamente.
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Chegam novos hóspedes. Levantamo-nos todos para reorganizar espaço e cobertores. Somos duas mulheres e um monte de homens.
E nem um só gesto duvidoso.
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1h36. Música lá ao fundo, junto ao kfc. Um homem vem distribuir pão. Outro oferece tâmaras. Há garrafas de água mineral para quem quiser. Eu estou tentando não querer nada, além do meu halava, para não ter de atravessar toda a praça até à mesquita.
E todos estes cobertores, vieram de onde?, pergunto. “De Israel!”, responde um rapaz de gorro, com cara de quem acabou de sair de um episódio do Monty Python. Digo-lhe que podia ser comediante. Ele responde que é comediante. E depois diz a verdade sobre os cobertores: “Vieram das nossas casas.”
Cobertores de muitos armários do Cairo, meio desbotados, com fitas descosidas, sabe-se lá quem já embalaram.
E agora vem alguém distribuir nada menos que cachecóis. Cachecóis listrados, alegres como um arco-íris, todos iguais. Seria uma remessa de alguma fábrica? Então todos põem os cachecóis e de repente parecem uma equipe de qualquer coisa.
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O rapaz que desenhou o burro e já não tem medo continua acordado e vem me mostrar o seu novo desenho. Há uma produção contínua de arte. Aliás, atrás de mim há um varal de folhas coloridas.
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1h44. Bananas e mais cachecóis. Goiabas frescas.
Nem álcool nem droga.
Muitas coisas na praça Tahrir são difíceis de imaginar na Europa. Uma delas é esta: tudo ser tão organizado e não haver uma organização oficial. As dádivas são solidariedade. Distribuí-las é solidariedade e organização. Cada um dá o que tem, isso funciona e chega a todos. Lembro-me de Gaza, onde ao longo dos anos nunca vi uma casa suja, nunca vi um mendigo.
Quando não há estado, as pessoas se organizam. Todas essas heranças estão na praça Tahrir. A fraternidade do clã árabe. A auto-organização. O acolhimento.
Uma revolução de indivíduos que intuitivamente criaram uma comunidade.
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O comediante do gorro tem uma coisa em comum com Mubarak.
Como é o seu nome?, pergunto-lhe eu. Pausa.
“Hosni”, responde ele, abatido. “Peço desculpas, peço desculpas.” Pausa.
“Pode me chamar de Yusef.”
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Nohe canta, sentada na noite. Uma voz ondulante, de há séculos.
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3h15. Um jovem Mahmud aparece anunciando que está de partida para o Parlamento, para levar comida e cobertores aos manifestantes que decidiram dormir lá em frente. “Eles não têm nada.”
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3h20. Medo fala de Michael Jackson. “Quando eu era novo dançava como ele.” Não sei se já disse que Medo tem 25 anos.
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Às 3h29, um homem oferece chá e três rapazes de gorro limpam a praça.
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3h43. Tumulto geral. Todo mundo corre para o palco junto ao kfc. Nós também, saindo dos cobertores. A multidão grita desvairada: “Desce! Desce! Desce!”
Medo explica: “É um cantor que chorou por Mubarak na televisão, chamando-lhe meu pai, e agora veio aqui.”
“Como a revolução ficou grande, ele quer abraçar a revolução!”, grita um homem, indignado.
Ninguém parece espantado por serem 3h43 da manhã. Tudo se passa como se fossem 3h43 da tarde.
Quando voltamos aos nossos cobertores ouvimos tiros para o ar, e pouco depois o tumulto acaba.
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Às 4h15 duas mulheres cobertas de negro distribuem doces. Às 5h tento fechar os olhos.
Um frio de gelar a ponta do nariz.
Passam rapazes a bater palmas para a primeira oração. A maior parte das pessoas não se levanta.
Perto das 6h aparece um jornalista da TV India. “Isto não é espantoso?”, diz, naquele inglês que só se fala na Índia. Mas eu sou a única que lhe dou réplica. Do ponto de vista destes jovens, a Índia não é a Turquia nem o Brasil, e nem sequer tem um Cristiano Ronaldo. Sobretudo, tem estado do lado errado, politicamente.
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O céu clareia nas nossas costas. E então irrompem pelotões a correr, incentivados por um líder improvisado. Rapazes amarrotados, de barbas por fazer, após mais uma noite na praça Tahrir, e vamos lá correr para aquecer o dia.
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Saio da praça às 6h30 para dormir umas horas.
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A meio da tarde, um amigo fotógrafo telefona-me dizendo que está num 9º andar, numa casa que tenho de ver, de um homem que tenho de conhecer, e explica-me como chegar lá.
Então atravesso a praça até ao começo da Talaat Harb. É o começo de toda uma outra história.
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É preciso contornar o tanque, os homens deitados a seus pés, as bancas de jornais e de livros. Vejo uma grande porta com um rapaz do lado de lá a quem digo: “Pierre?” É uma espécie de senha. Entro.
Escadas de mármore, um esplendor gasto, elevador soluçante, com vidros partidos. No 9º andar, escadas levam ao telhado. A vista é assombrosa: toda a praça, um imenso formigueiro. Mas não vejo o meu amigo, não era disto que ele estava falando. Desço ao 9º outra vez: será esta porta de vidro? Sim, basta empurrar.
E eis Pierre ao computador, transmitindo a revolução.
Pensem num escritório com armários de madeira e vidro cheios de livros encadernados, pinturas a óleo, velhas caixas de tabaco, luminárias art déco. Agora pensem em tudo isto com a patine de um século misturada com sacos de dormir, filmadoras, pilhas de jornais, laranjas, biscoitos, óculos, maços de cigarros, porta-chaves, garotas no sofá com laptops da Apple, rapazes de cabelo encaracolado teclando em iPhones. Pensem num lugar antigo onde todo mundo está ocupado fazendo o presente.
A começar por Pierre, camisa extragrande, corpanzil de Francis Ford Coppola. A barba e os óculos ajudam, mas ele não concorda. “Acho que sou mais parecido com o Orson Welles.”
Pierre Sioufi, 50 anos. Profissão? “Fiz algumas pinturas, mas não sou pintor, representei alguns papéis, mas não sou ator. No fim das contas tenho de dizer que sou um playboy.”
Não se passaram ainda cinco minutos e ele já é toda uma história da revolução. “Alguns jornalistas dizem que tenho um dedo nesta revolução, mas não tenho, quem dera.”
Claro que tem.
O dedo do anfitrião.
“Sou absolutamente egípcio. Estive numa escola francesa, mas antes aprendi inglês com os Beatles e em livros pornô. O meu pai era colecionador de livros e curiosidades, e tinha alguns clássicos pornô, em inglês e francês. Acabei os franceses e passei aos ingleses. E quando não queriam que eu entendesse alguma coisa, meus pais usavam o inglês. Isso ajudou. Na verdade, aprendi inglês e francês antes de árabe.”
O remate é surpreendente: “Também não vi assim tantas coisas em árabe que quisesse ler.” Absolutamente egípcio e politicamente incorreto? “Por isso é que não faço política.”
Está sempre sentado à escrivaninha, sempre de cigarro na mão, sempre de Facebook aberto, e uma romaria de gente entra e sai, senta-se, pergunta-lhe coisas, beija-o. Árabes soixante-huitards e os filhos deles, blogueiros, videoastas, totalmente ligados na revolução, para cima e para baixo, entre a praça e o 9º andar.
A praça está toda na varanda, tão perto e inteira que é uma extensão da casa. Ou a casa é um zoom sobre a revolução. Que casa é esta?
“Era a casa dos meus avós”, diz Pierre. “Depois havia a casa dos meus pais, que não é muito longe, e mais para baixo a galeria do meu pai. Eu tinha uma pequena bicicleta de quatro rodas e ia com ela à galeria, pela calçada.”
Fez-se ao mundo sem nunca perder o Cairo. E no dia 25 de janeiro instalou-se nesta casa com vista para a praça. Há muito tempo ninguém morava aqui, mas agora todo mundo mora aqui enquanto for preciso.
“Há uma revolução acontecendo. Estou olhando para ela, estou pondo a história desta revolução no Facebook desde o primeiro dia para quem quiser. A praça Tahrir era o lugar favorito do meu avô. Na época não havia o [hotel] Semiramis e daqui víamos até às Pirâmides…” Pausa para mais uma pergunta, mais um abraço de quem chega, falando árabe, inglês ou francês.
Pierre não é um homem solene. “Não acredito muito em revoluções, mas a revolução agora está aqui…” No fim das contas, um romântico. Aliás, teve um blogue chamado Kikhote, por causa de Dom Quixote.
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* Este post é um trecho de Tahrir: Os dias da revolução no Egito (Língua Geral, 2011), reproduzido com autorização da autora e da editora. As fotos ao longo do texto, tiradas na praça Tahrir, são de Alexandra Lucas Coelho.
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http://prafalardecoisas.wordpress.com Manoel Galdino