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Tradução, atividade pragmática

por Camila Pavanelli (20/11/2012)

É quando o autor põe lado a lado alguns pares de texto original e traduzido que o livro se torna mais didático e revelador

“A tradução literária”, de Paulo Henriques Britto

A tradução literária é um livro que pode ser de interesse não apenas para tradutores profissionais ou de fim de semana, mas para qualquer estudante da área de humanas que tenha contato frequente com textos escritos originalmente em um idioma que não domina – ou seja, qualquer estudante da área de humanas. O primeiro capítulo, de considerações teóricas, lança mão de uma estratégia argumentativa que me pareceu bem interessante: de início, o autor desconstrói, uma por uma, as concepções do senso-comum sobre tradução (resumidamente: é uma atividade fácil; é apenas uma questão de estabelecer relações diretas e inequívocas entre as palavras de um idioma e do outro, tipo cão-perro-dog; é apenas uma questão de consultar o dicionário; em breve os tradutores serão substituídos por computadores). Em seguida, isto é, depois de fazer o leitor vislumbrar a enormidade do problema, o autor chama a atenção para algumas das questões centrais estudadas pelos teóricos da tradução: tradução e criação seriam uma só e a mesma coisa? Qual a diferença? Se o tradutor cria um novo texto, no que ele é diferente do autor? É possível um julgamento objetivo sobre a qualidade de uma tradução? Se sim, quais os critérios que devem nortear uma boa tradução? Em que medida é possível preservar o sentido do texto original no texto traduzido – e em que medida, aliás, é possível determinar o sentido (um? vários?) do texto original?

A seguinte passagem resume bem a concepção do autor sobre o que ele chama de “jogo da tradução” – e, a partir daí, as coisas começam a ficar ainda mais interessantes:

… o significado não é uma propriedade estável do texto, uma essência que possa ser destacada do texto e isolada de maneira definitiva; minha visão do sentido é (…) antiessencialista. Seguindo a visão de Wittgenstein, porém, eu diria que a tradução de textos segue determinadas regras que constituem o que podemos denominar de “jogo da tradução”. Eis algumas regras deste jogo: o tradutor deve pressupor que o texto tem (…) um determinado conjunto de sentidos específicos, tratando-se de um texto literário, já que uma das regras do “jogo da literatura” é justamente o pressuposto de que os textos devem ter uma pluralidade de sentidos, ambiguidades, indefinições etc. Outra regra do jogo da tradução é que o tradutor deve produzir um texto que possa ser lido como “a mesma coisa” que o original, e portanto deve reproduzir de algum modo os efeitos de sentido, de estilo, de som (no caso da tradução de poesia) etc., permitindo que o leitor da tradução afirma [sic], sem mentir, que leu o original. (…) Não se trata, pois, de tratar o sentido dentro de uma visão essencialista; trata-se simplesmente de respeitar as convenções do que se entende por tradução, na sociedade e no tempo em que vivemos. (pp. 28-29)

Esta é, para mim, a grande riqueza do livro de Paulo Henriques Britto: o autor não se baseia em uma visão essencialista do sentido do texto – isto é, para ele não faz sentido a ideia de que seria possível “extrair” o significado do texto tal como se extrai o suco de uma laranja, transportando toda a doçura e acidez da laranja-texto original para outro repositório de palavras (para um bolo de laranja, por exemplo). Nem por isso, contudo, o autor defende que inexistam critérios para uma boa tradução: no mundo empírico, este onde temos RG e CPF e pagamos contas, a demanda dos leitores é por traduções que reproduzam, tanto quanto possível, os efeitos do texto original. É a isso, portanto, que A tradução literária se dedica prioritariamente: mostrar e exemplificar de que modo se podem produzir efeitos semelhantes, no português, aos obtidos por diversos autores (e mesmo diferentes gêneros – no caso, prosa e poesia) no inglês.

Gosto da caracterização da atividade de traduzir como pragmática porque aponta para a necessidade de muita experiência prática para se dominar o ofício. Gosto, também, de caracterizá-la como ofício: um trabalho manual que exige tempo, paciência e tolerância à frustração. Como diz o autor na penúltima página do livro, os que nos dedicamos à prática da tradução não podemos nos dar ao luxo do desespero frente a impossibilidade de encontrar a solução ideal para aquela passagem particularmente difícil: a vida real bate à porta, o prazo se aproxima, a hora do jantar também, e é preciso, tendo o ideal como horizonte, contentar-se com o possível.

Tomo a liberdade de me afastar do conteúdo do livro por alguns parágrafos para depois voltar a ele com ânimo renovado. É que boa parte do meu tempo, atualmente, tem sido dedicada ao exercício não de uma, mas duas atividades essencialmente pragmáticas: a tradução e a culinária. Dizer que uma atividade é pragmática não significa que não se possa ou não se deva estudar sobre ela; peço muitas dicas a outros tradutores (e aos próprios clientes) sobre as traduções que faço, e leio sobre técnicas culinárias sempre que posso. Mas é impressionante como, ao fim e ao cabo, nada substitui o tempo que se passa no exercício efetivo dessas atividades. E embora tenha havido dias frustrantes em que tive a certeza de ter traduzido insatisfatoriamente alguma passagem e precisei jogar um doce inteiro no lixo, o fato é que, ao longo dos meses e anos, tenho me tornado uma tradutora e cozinheira melhor – não por algum talento ou habilidade especial, mas por pura insistência e resiliência.

Gostaria de me aprofundar um pouco mais nesta tal “dimensão pragmática” das atividades de traduzir e cozinhar, pois com ela não me refiro apenas à necessidade de repetir cegamente o mesmo procedimento até que um belo dia “se faça a luz”, no melhor estilo água-mole-em-pedra-dura. O que caracteriza tais atividades é sua dependência de conhecimentos que, para produzirem efeitos, devem estar impregnados ao corpo da tradutora/cozinheira de modo a parecerem quase impensados ou automáticos – e, por isso, dificílimos de serem colocados em palavra, pois são o tipo de coisa que não se sabe que se sabe. Isto posto, qual seria então um dos papéis mais importantes de um bom livro de receitas? Ora, nada mais nada menos que tornar explícitos os conhecimentos que, para alguém que já sabe fazer aquelas receitas, são totalmente tácitos – óbvios, dados, impensados. Comparemos, por exemplo, uma receita de bolo que instrui simplesmente a “acrescentar um ovo de cada vez” a outra que diz “acrescente um ovo de cada vez, batendo cerca de um minuto a cada adição em velocidade média, até que o ovo esteja bem incorporado à massa; quando desligar a batedeira entre um ovo e outro, use uma espátula de silicone para raspar as laterais da tigela: isso contribuirá para que sua massa fique homogênea”. A primeira explicação é correta e suficiente para quem tem experiência na cozinha; apenas a segunda, porém, explicita detalhes que, para quem não tem essa experiência, fazem toda a diferença. Com a prática, esses detalhes vão sendo incorporados ao cotidiano do preparo de bolos, até que, depois de um tempo, a cozinheira passa a raspar as laterais da tigela sem sequer pensar no assunto.

O livro A tradução literária não é propriamente um manual, embora no segundo capítulo, sobre a tradução de ficção, haja uma série de dicas práticas especificamente sobre diálogos e sobre a criação de um efeito de oralidade. Mas é nos momentos em que o autor põe lado a lado alguns pares de texto original e texto traduzido, explicando e justificando suas escolhas de tradução, que o livro se torna mais didático e revelador para quem é tradutor profissional – como se tivéssemos um chef explicando passo a passo o preparo de uma receita já pronta. O autor detém-se sobre suas escolhas e explica o que as motivou; o leitor sente-se a proverbial mosquinha que espiona a intimidade alheia (dado que o trabalho de tradução é, em geral, tão solitário) – mas, para além do prazer voyeurista, a observação atenta do trabalho de um profissional com bastante experiência é sempre extremamente instrutiva, como pode atestar qualquer um que já tenha cozinhado com os pais ou avós. Vejamos, então, dois exemplos do que faz o autor nessas passagens comparativas; o primeiro foi extraído de um conto de Ann Beattie chamado “The confidence decoy”:

He backed the Lexus out to follow the moving truck down the drive. Jim drove faster than Francis expected, but he kept up, patting his pocket to make sure that his cellphone was there. They drove for a while (…) (p. 76)

Responda rápido, amigo que fala inglês: como você traduziria o verbo “drove”, da segunda vez em que ele aparece nesta passagem? Posso apostar um real que você o traduziria por “dirigiram”? OK, agora passe meu real para cá e veja como ficou a tradução de PHB:

Saiu de ré no seu Lexus e foi atrás do caminhão. Jim dirigia mais depressa do que Francis previra, porém ele conseguiu acompanhá-lo assim mesmo, apalpando o bolso para certificar-se de que o celular estava lá. Seguiram por algum tempo (…) (p. 76)

E não é que “seguiram” fica melhor? Eu sei disso, você sabe disso – ou melhor, nossos ouvidos sabem – mas por quê? O autor explica: porque o inglês suporta muito mais redundância que o português. Se isso salta à vista no uso de pronomes possessivos (que atire a primeira pedra aquele que nunca traduziu algo como “she got her purse” como “ela pegou sua bolsa” e deu com a mão na testa depois), é algo que não se restringe apenas ao uso de pronomes: no mesmo parágrafo, a repetição do verbo “drove” soa natural para o leitor anglófono, enquanto que a repetição de “dirigir” pareceria ao leitor brasileiro uma opção muito marcada. Claro, pode-se contestar a escolha de PHB e argumentar pela repetição de “dirigir” na tradução. Aí é que está a graça: como as escolhas e argumentos do autor estão explicitados, o leitor sente-se plenamente à vontade para debatê-los, aceitá-los, criticá-los, contrapor suas próprias traduções às do autor etc.

O segundo exemplo foi extraído de Villages, de John Updike:

She was wearing a sparkly brown bodice, sleeveless, with a long skirt she had made from a piece of pool-table felt. (p. 107)

Faye trajava um corpete marrom cintilante, sem mangas, e uma saia comprida que ela fizera com feltro de mesa de sinuca. (p. 107)

Gostaria de chamar a atenção para a tradução de “a piece of pool-table felt” – literalmente, um pedaço de feltro de mesa de sinuca (ou bilhar). Mas o autor matreiramente omitiu “um pedaço” da tradução, justificando que, com isso, pôde evitar a tripla ocorrência da proposição de. (De fato, convenhamos que um pedaço DE feltro DE mesa DE sinuca soa feio demais – e o problema não está na feiura em si, mas sim no fato de que esta feiura está de todo ausente no texto original.) Considero esta omissão um excelente exemplo de um tradutor raspando a lateral da tigela, isto é, fazendo uma daquelas pequenas coisas não-ditas (e que PHB generosamente diz aqui) que mudam consideravelmente o resultado final de uma receita/texto traduzido.

O terceiro e último capítulo aborda a tradução de poesia. Sobre ele não irei me deter, já que não é substancialmente diferente do capítulo sobre prosa. Concluo esta resenha como comecei: recomendando o livro tanto para tradutores quanto para quem lê textos traduzidos com frequência. É o problema de se gostar de um livro: queremos que todos os amigos o leiam.

::: A tradução literária :::
::: Paulo Henriques Britto :::
::: Civilização Brasileira, 2012, 160 páginas :::
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Camila Pavanelli

Doutoranda em Psicologia Social na USP.

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