O sonho começa com a presença da minha família, nós e nossos dois filhos, no parque da cidade
Assim como todas as pessoas, tenho meus sonhos. Não me refiro ao sonho em seu sentido figurado, o “sonho acordado”, mas o sonho que se sonha dormindo, o sonho real. Nem todas as pessoas têm sonhos que se sonham acordado, mas não há quem não sonhe os sonhos que se têm ao dormir. O sonho acordado é um desejo presente, enquanto que o sonho que acontece durante o sono normalmente se dá sem que se tenha qualquer domínio sobre ele. É como algo que acontece à revelia da vontade da pessoa. Tem certo caráter invasivo, por assim dizer. Meu último sonho tem sido assim, invasivo, e tem-se repetido periodicamente, de forma que, quando estou prestes a esquecê-lo, acabo por sonhá-lo mais uma vez. Não é um sonhos persecutório e nem o classifico como um pesadelo, tudo o que acontece é apenas a trivialidade de um passeio em família e uma espécie de efeito-cascata que se dá a partir do encontro de pessoas no passeio público. Conto em detalhes a seguir.
O sonho começa com a presença da minha família, nós e nossos dois filhos, no parque da cidade – estamos indo rumo à praça de brinquedos. A cada passo que damos, envelhecemos, de forma que meus filhos (ainda crianças) vão se tornando adultos em uma velocidade galopante, na mesma medida em que nós – os pais – vamos tornando-nos mais velhos. O processo acontece com todas as pessoas, todos estranhos a nós, que também estão por ali. Podemos assistir o tempo movendo-se a mais ou menos um ano por cada passo. Caminhamos lentamente, de modo que é possível notar o efeito da passagem do tempo em todos os seres vivos, até mesmo nas árvores e animais. Apenas os objetos permanecem idênticos, não se deterioram, intocados pela ação do tempo.
No caminho até a praça de brinquedos, meus filhos já se tornaram adultos e, dali em diante, são quase eles que nos levam pela mão, a passeio, como em papeis invertidos. Todos os demais transeuntes também mudam o que estão fazendo, alguns dão meia-volta e tomam outro caminho, como se fossem despertos de repente de um encantamento. O cão que acompanha o pipoqueiro e o próprio pipoqueiro são os únicos que permanecem no mesmo lugar. As crianças correm (parece que elas sempre correm) e crescem mais rapidamente do que aqueles que apenas caminham. Tudo acontece em cerca de dez ou quinze passos, espaço suficiente para que meus filhos se tornem adolescentes e nós, seus pais, comecemos a dar sinais de velhice. Não há medo ou receio algum diante do que está acontecendo. Não se trata de um pesadelo. O sonho finalmente acaba com meu filho evitando o abraço de um mendigo que se cria a partir de um menino de rua com o qual está brincando no começo da cena e procurando o abrigo de sua irmã, que ao mesmo tempo deixa o local com outros adolescentes que estão por ali. Nós, os pais, apenas acompanhamos a cena, não intervimos nela. Assim se dá o sonho que tem me perseguido e, por mais que eu possa querer, não há nada que possa fazer para mudá-lo. É assim que ele me vem, há algumas noites já.
Para mim, parece que o sonho dura poucos instantes, apesar da imensa curva que o tempo faz ali. O mais estranho, em meu juízo, é o que acontece em seu final: meu filho evitando a companhia do mesmo menino (também crescido) com o qual há pouco brincava, transformado em pedinte. Algumas pesquisas científicas apontam que as pessoas que nascem com a síndrome de Down, é o caso de meu filho, tem o sistema límbico (responsável pelas emoções) diferenciado, o que explicaria pelo menos em parte a tendência aparente que têm muitas dessas pessoas em privilegiar os aspectos afetivos e emocionais do comportamento. Isso poderia explicar o que comumente é tomado por uma “docilidade genérica”, supostamente verificável entre essa população.
Pode ser que isso corresponda à realidade e também pode ser que não, mas na prática comprovo que meu filho dificilmente evita o abraço de quem quer que seja. Por isso me assusto um pouco em constatar que, no processo do sonho, ocorra algo que na vida real também possa se repetir. Esse gesto de recusa. Essa diferenciação. Essa adversidade à diferença e sua respectiva construção cultural. Uma interpretação apressada me faz pensar que os preconceitos talvez sejam mesmo inevitáveis, constituindo um sentido de proteção cultural contra a ameaça da diferença. E que mesmo ao procurar-se evitá-los, eles florescem, porque sua origem está nas relações sociais e não no desejo de cada um, seja este quem for.
Na Interpretação dos sonhos, Freud procura mostrar formas de como acessar os mecanismos inconscientes que povoam os sonhos, para extrair dessa matéria-prima em estado bruto indícios através dos quais seja possível deslocar forças psíquicas bloqueadas de forma inconsciente e trazê-las ao terreno da análise. Tomado por séculos como fonte de predição futura e até mesmo comunicação sobrenatural, o sonho faz parte da vida de todas as pessoas. O fato é que é impossível não reagir a ele com estranhamento, como se fosse algo que pertencesse a outra esfera de consciência. Talvez comprove a tese de que se trata de um processo de elaboração de experiências e apreensões o fato de que dificilmente sua lembrança seja duradoura. A menos que se registre, em poucos dias a memória dos sonhos se desvanece, assim como os efeitos de sua impressão. Não é o caso de um sonho que se repete, como o meu. A cada vez que sonho novamente com a cena, a lembrança se torna mais nítida e posso perceber em detalhes a evolução dos acontecimentos, embora jamais possa interferir neles. Em meu sonho, não faço nada para que meu filho se afaste do seu parceiro de brincadeiras, mas também não percebo com nitidez as razões pelas quais ele próprio passa a agir de forma menos amistosa. É um tipo de paralisia e de impotência, talvez da mesma espécie da que nos impede de, na vida real, evitar um gesto que mudasse a aparente “ordem natural” das coisas.
Esse processo social que acontece em meu sonho em velocidade espantosa eu percebo que também acontece de certo modo na vida real, ainda que noutra escala. Talvez eu devesse comemorar o fato, que também poderia significar que meu filho possa estar começando a compreender os limites da própria individualidade mas, no íntimo, temo que as relações sociais o estejam embrutecendo, como de modo genérico se pode verificar nas relações humanas. Em meu sonho, muito pouco eu posso fazer no sentido de interferir no afastamento que se dá entre ele e seu parceiro de brincadeiras e eu penso que, na vida real, isso também seja em certa medida verdade. A questão que se coloca é: o que se pode fazer na vida real a esse respeito? Ao fim de tudo, não seriam os preconceitos naturalizados pela própria história e pela dinâmica social?
Trata-se de uma visão pessimista, já que boa parte da alusão que se faz à diversidade humana dá conta de um sentimento global unívoco. Mesmo que isso faça desmoronar a crença em que haja um tipo de equilíbrio homeostático no convívio social, é sem assombro que assistimos esse tipo de valor cultural sobressair-se em relação a outros que poderiam mostrar que um mundo mais harmônico fosse efetivamente possível. Na verdade, temo que sempre que se fale em respeito à diversidade se esteja falando apenas no direito de cada um viver sua vida como bem quiser, a despeito de todos os outros. Alguns anos antes de falecer, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, em comemoração ao 60º aniversário da UNESCO, escreveu que o tempo não corre sempre no mesmo sentido e que novas diversidades estão sendo sempre gestadas. Eu fico tentado a imaginar em que tipo de fenômeno essa tese poderia se confirmar, se é o próprio Lévi-Strauss quem propõe o acirramento das identidades culturais como forma de afrontar certa tendência à uniformização globalizante. E de tanto imaginar este cenário, talvez eu o tenha sublimado a ponto de tentar abordá-lo em sonhos, já que toda a diversidade de que a sociedade dispõe hoje não tem melhor uso que um mero sentido distintivo entre uns e outros, mesmo que se trate das mesmas pessoas, compartilhando um mesmo tempo histórico, mas em condições diversas.
Talvez meu sonho queira me alertar que o caminho para um convívio humano mais harmonioso esteja bloqueado pela qualidade do que é inerente às diferenças. E que a passagem o tempo só faz abreviar o abismo que fatalmente nos aguarda, sejamos pais ou filhos, negros ou brancos, homens ou mulheres, tenhamos ou não alguma deficiência, como a tem meu filho. Daqui a alguns anos, naquela mesma praça, como num déjà-vu, estarei diante do passado, não mais de um receio pelo futuro, e pensarei nas noites em que vi com meus próprios olhos a diferença se estabelecendo, sem margens, entre duas crianças que apenas procuravam brincar juntas, mas para quem o tempo histórico foi inclemente no sentido de desfazer a intersecção, o encontro dessas duas pessoas. Como num filme, o sonho mostra minha impotência em alterar o rumo dos fatos. Talvez, na vida, não nos restem mesmo alternativas. A única diferença que importa aqui é que não se pode acordar da vida, mas apenas dos sonhos. Se somos nós que tornamos a vida um pesadelo, é justo pensar em outros desfechos. É para isso, inclusive, que estamos vivos e não dentro de um sonho.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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