A trajetória do poeta chinês é representada por segmentos que trazem impressões quase divinas da experiência humana, flertando com o surreal em diversas passagens.
Bei Dao (1949- ) é um dos muitos filhos bastardos da Revolução Cultural Chinesa. É aquilo que Mao Zedong queria suprimir para que o socialismo florescesse sem a intervenção das antigas tradições e produções culturais. A coletânea The august sleepwalker (traduzida para o inglês por Bonnie McDougall) vem fazer coro às vozes silenciadas nos anos de chumbo que assolaram – e em certa medida ainda assolam – o território chinês, com suas 144 páginas de melancólica revolta.
Para nós brasileiros, um nome desconhecido. Para a China, o mais importante representante do movimento Poetas Obscuros (tradução aproximada, assim chamados por sua linguagem abstrata e enigmática). Ativo politicamente desde a distante década de 60, Bei Dao ocupou lados opostos do espectro político: até 1969 fez parte da Guarda Vermelha, violento movimento paramilitar simpático ao regime comunista, até que seus crescentes questionamentos acerca da legitimidade da Revolução o fizessem passar por um inegociável processo de reeducação, trabalhando durante mais de dez anos na construção civil. Essa carreira compulsória não impediu que se dedicasse às letras e, em 1978, fundou a revista Jintian – reduto de poetas contrários ao governo e que viria a ser banida em 1980.
À época da organização de The august sleepwalker, 1989, Bei Dao amargava o ainda recente banimento de sua terra natal em decorrência dos sangrentos manifestos da Praça Tiananmen, quando a imagem do rebelde desconhecido diante dos tanques ecoou em todos os jornais do planeta. Na mesma ocasião, sua mulher e filha foram impedidas de deixar a China. Dessa forma, o autor viveria como peregrino no exterior, sem possibilidade de retorno e contato com a família por seis longos anos. O livro, no entanto, coleta poemas anteriores ao exílio – o que torna ainda mais tocante o testemunho de sua queda pessoal. Não é senão de espinhos a coroa com que Bei Dao será ironicamente coroado ao fim da coletânea, quando recebe a punição última pelo castigo do isolamento.
Isolamento que não é novidade na história de Bei Dao. Seu próprio pseudônimo – o nome real é Zhao Zhenkai – significa Ilha do Norte. Os idiomas do extremo oriente possuem essa bela característica: nomear homens e mulheres a partir de estados da natureza e do espírito. O termo Ilha foi escolhido pelo poeta para refletir sua personalidade solitária, enquanto o Norte é o seu lugar de origem. Assim, a própria alma do artista está impregnada da solidão que consumirá grande parte de seus poemas sob o disfarce de frequentes metáforas de chuva, neve e relâmpago. Esses elementos tornam ainda mais proeminente a já conhecida sensibilidade oriental para as artes, desde sempre tão notável no cinema, na literatura e nas gravuras. A trajetória do poeta é representada por segmentos que trazem impressões quase divinas da experiência humana, flertando com o surreal em diversas passagens, sem se deixar levar por longos devaneios imagéticos. Sua obra pertence ao mundo concreto e está em plena concordância com seu tempo.
Mesmo escrito mais de vinte anos antes do fim do século XX, seu poema “Cruel Hope” reflete com maestria o zeitgeist de nossa época. Graças à poética imaginação do autor é possível lê-lo como um inflamado discurso contra a pós-modernidade. “As lágrimas são salgadas/ oh, onde está o mar da vida?/ eu gostaria que todo ser vivente/ pudesse rir de verdade/ e chorar livremente”. E ainda: “frágeis flautas gritam/ como podemos pôr um fim a essa insana carnificina?”. Esse espírito não pertence a um pessimista. A poesia de The august sleepwalker é, ao contrário, um alerta solene para os desvios da única questão que realmente importa: a queda de todos os muros. Não são os concretos muros das Grandes Muralhas da China que chamam a atenção de Bei Dao, mas os muros erguidos por todas as mazelas personificadas em regimes totalitários, injustiças e falta de comunicação.
Sobre esta comunicação o autor alerta: “a produção de linguagens/ não pode nem aumentar nem diminuir/ o sofrimento silencioso da humanidade”. Seu primor linguístico é notável, ainda que não se tenha acesso aos originais em mandarim. É esse o caráter sublime da poesia: a capacidade de ser compreendida por todas as línguas. Por isso a obra de Bei Dao é cosmopolita ao mesmo tempo em que está atrelada à história recente da China. É falando em nome de um grupo que ele fala para todos na linguagem universal dos versos. Não há espaço para grandiloquência: cada palavra é posta de forma a servir como moldura para uma bela pintura, moldura cuja função não é a de tomar toda a atenção para si, mas ornar a verdadeira arte. E as palavras expressam sua subserviência a Bei Dao ao se disporem de forma fluida nas frases que vão compondo os já mais de trinta anos de poesia do autor.
Poesia que, se por um lado é cosmopolita, por outro teima em ser ilha – como o autor – por força das circunstâncias. Por outro lado, não há culpados: apenas recentemente o interesse pela língua chinesa começou a despontar nas escolas de idiomas. O longínquo mandarim possui sons que a língua portuguesa nem sonha existir, o que torna o ato de transpor sua musicalidade natural para o português uma tarefa quase hercúlea. Não é preciso ser tradutor para conhecer os desafios que a tradução poética oferece. Aquele que se propor a fazer o elo entre esses dois mundos deve, portanto, ser também um bom poeta, que saiba lapidar os versos sem restringir o forte conteúdo emocional da obra.
A deferência às emoções e aos sentimentos é o ingrediente especial desta coletânea do eterno candidato ao Prêmio Nobel de Literatura. Infelizmente o público brasileiro está privado de traduções do poeta; fato inexplicável, levando em conta o imenso mercado editorial chinês e sua atual posição enquanto potência econômica. Que as críticas às barreiras de linguagem feitas pelo próprio Bei Dao sirvam de alerta aos nossos editores e que suas palavras possam ressoar finalmente em nosso território. Bei Dao finaliza seu poema “Love Story” com os seguintes dizeres: “não é mais uma simples história/ nessa história/ há você e eu e muitos outros”. Se for verdade que as palavras constituem um dos poucos patrimônios divididos por toda a humanidade, há pressa para que a poesia de Bei Dao encontre sua merecida onipresença.
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Dayse