A identificação mais problemática e recorrente entre ceticismo e relativismo surge no momento em que o ceticismo “moderado” se aproxima e arrisca confundir-se com um relativismo ético ou cultural.
Luiz Bicca levanta uma discussão interessante em seu livro mais recente, a respeito dos “limites” do ceticismo e do relativismo. Segundo o autor, na vida cotidiana, é comum fazer uma associação entre os dois termos, muitas vezes identificando um ao outro. Porém, do ponto de vista filosófico, é preciso estabelecer uma diferença entre ambos: “Penso que é filosoficamente equivocado identificar ambas as posições filosóficas e que é imprescindível traçar uma diferença que não seja difícil de perceber.” (p. 8) É esta a tarefa que o autor se propõe a realizar em sete estudos que compõem o livro.
Antes de tudo, é preciso deixar claro que a obra apresenta uma leitura “acadêmica”, isto é, precisamos ter em mente que ela é fruto de uma pesquisa cuidadosa, cujo objetivo consiste em contrapor diversas abordagens a fim de lançar luz sobre o debate. Outro ponto a ser considerado é que o autor deixa claro que está interessado em resgatar os “clássicos” a fim de levantar a sua contribuição nas discussões morais e políticas. Isso porque a identificação mais problemática e recorrente entre ceticismo e relativismo surge no momento em que o ceticismo “moderado” se aproxima e arrisca confundir-se com um relativismo ético ou cultural.
De todo modo, tanto o ceticismo quanto o relativismo se fazem presentes em momentos históricos bem específicos, registrados pela incerteza e pelo questionamento acerca de posturas e decisões a serem tomadas. O “pano de fundo” histórico é descrito da seguinte forma:
Em suas vidas cotidianas, na maior parte do tempo, as pessoas vivem dentro de suas moralidades concretas tão confortavelmente quando vivem em seus lares. Elas não se sentem convocadas a justificar suas práticas, seus atos ou condutas, ou então a examinar qual o fundamento que tudo isto teria. Porém, na história, muitas vezes ocorre que esta rotina ou fluxo habitual se veja afrouxada, abalada. E o que se passa, então, em consequência, é uma incerteza crônica sobre que atitudes adotar, incerteza que faz surgir toda uma necessidade de algo que pudesse funcionar como padrão ou critério para avaliar ou julgar as eventualmente diversas escolhas, situações, perspectivas ou mesmo qualidades das coisas. (p. 60)
A partir daí, o autor insiste na ideia segundo a qual o relativismo nega os valores absolutos que poderiam servir como critério de avaliação ou julgamento. Segundo os relativistas, nossos juízos, opiniões e valores só têm sentido quando referenciados aos sujeitos e aos contextos que os produzem – por isso sua validade é “relativa”. Desta forma, o relativista afirma, sim, valores, opiniões, apesar de negar a existência de um único critério, mediante o qual ofereceríamos a confiança e a segurança de que somos capazes de conhecer o mundo. A figura do relativista, nesse sentido, apesar de levantar questões que não desfrutam de boa fama no meio dos filósofos morais, exerce suma importância nos ambientes “leigos”, pois promove uma relação de tolerância a respeito dos diferentes modos de vida, com o pluralismo das ideias e valores. Luiz Bicca faz ainda algumas ressalvas a fim de desfazer a confusão que surge com a defesa do relativismo, porém ressalta que a tarefa principal do relativista seria a de mediar conflitos, oferecendo uma resposta a desacordos que as pessoas não conseguem resolver de forma objetiva.
Com respeito ao ceticismo, o autor realiza muitas investidas com a finalidade de distinguir as suas formas. Para isso, ocupa-se em detalhar, por exemplo, as características que diferenciam o ceticismo antigo do moderno, o ceticismo epistemológico do moral. Apesar de haver distintas variantes do ceticismo, há algo que pode ser dito: o cético pode até argumentar partindo de premissas relativistas, mas a conclusão que ele faz não pode ser caracterizada como relativista, pois sua postura consiste em suspender o juízo. Enquanto o relativista aponta para valores específicos e faz referências a contextos, o cético se recusa a fazer juízos sobre os valores – sejam eles imutáveis ou relativos –, pois defende que o mais urgente seria justamente combater a crença nesses valores.
Considero o momento mais interessante do livro aquele em que o autor afirma que não é possível sustentar um ceticismo radical nos dias de hoje; porém, no que tange à contemporaneidade, talvez devêssemos formular um ceticismo que não seja eminentemente epistemológico. Trata-se, portanto, de recorrer à antiguidade a fim de enxergar o ceticismo menos como um método do que como uma tentativa de evitar a perturbação.
Nesse sentido, incorporar o ceticismo não seria o mesmo que deixar-se perturbar por ele e, sim, introduzir (mas não impor) a noção de vida destituída de um télos (a finalidade última das coisas). Entretanto, é importante considerar que apenas pelo fato de lançar a dúvida acerca da garantia das coisas, o cético não carrega consigo promessas, como a promessa da felicidade, por exemplo. Ele é alguém que “se recusa a dar lições de vida, a ensinar o que se deve (ou o que não se deve) fazer, nesta ou naquela situação, como se tem de proceder, por quais caminhos ou segundo quais regras e recomendações” (p. 170). É importante sempre ter em mente que o seu agir é desprovido da crença dogmática.
O autor talvez queira nos passar o seguinte recado: se o cético tem a pretensão de negar “verdades” acomodadas, espera-se que ele faça isso através do uso de sua razão e não em nome de sua presunção.
É ainda estimulante pensar, junto com o autor, que o pensamento cético mitigado, junto ao relativista, seria capaz de resolver um problema que está presente no tratamento da filosofia: a saber, diminuir a distância que separa as duas esferas da vida do filósofo (intelectual e cotidiana). Mesmo com o jogo arriscado com ganhos e perdas, a presença de relativismos e ceticismo na vida cotidiana é capaz de fazer uma reparação importante: amenizar o isolamento filosófico.
::: Ceticismo e relativismo :::
::: Luiz Bicca :::
::: 7 Letras, 2012, 270 páginas :::
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