Devemos sempre voltar a Cervantes

por Gustavo Melo Czekster (08/11/2012)

A sabedoria de Cervantes é contundente: usamos a fala com o objetivo principal de falar mal de outros homens

“Cinco novelas exemplares”, de Miguel de Cervantes

Há muitos anos eu não lia Cervantes. Recordando o passado, minha primeira leitura foi sôfrega, ansiosa para deslindar a história, ver o crescimento das personagens, mergulhar fundo em um universo repleto de novas sensações, cheio de poeira, reis, cavaleiros e ironias. Retornar à leitura de um autor que ajudou a definir os conceitos de clássico foi trazer de volta um pouco da magia que sucessivas leituras ajudaram a enfraquecer; de certa forma, foi retomar um pouco daquele olhar incandescente de primeiro leitor. Ecoando Italo Calvino, talvez esta seja a definição mais pura de livro clássico: aquela história que, toda vez que lemos, soa como se fosse a primeira vez que a estivéssemos lendo.

Meu retorno à prosa de Miguel de Cervantes aconteceu através de Cinco novelas exemplares, livro recentemente lançado pela editora Arte e Letra. Quando Cervantes escreveu tal livro, a sua intenção era apresentar uma espécie de narrativa ligeira, mais concentrada no efeito e na velocidade do que em uma estrutura complexa. Também desejava criar textos como resposta ao acúmulo de novelas italianas que infestavam o mercado editorial da Espanha. Um grande escritor não é aquele que insiste em fórmulas defasadas e cômodas para atingir seu público, mas aquele que tem a coragem de enfrentar o novo. Mesmo com este passo arriscado, onde poderia não conquistar novos leitores e ainda decepcionar os que possuía, Cervantes conseguiu dar o seu estilo para as novelas escritas, afastando-as do original estrangeiro e concedendo cor local e originalidade para uma literatura diferente da que estava acostumado. O seu desejo de enfrentar a concorrência estrangeira criando um novo tipo de literatura adequada aos tempos vividos encontra-se claramente estipulado no prefácio da obra: “A isto se aplicou meu engenho, por aqui me leva minha inclinação, e mais que dou a entender, e é assim, que sou o primeiro que novelei em língua castelhana, que as muitas novelas que nela andam impressas, todas são traduzidas de línguas estrangeiras, e estas são minhas próprias, não imitadas nem furtadas; meu gênio as engendrou, e pariu-as minha pena, e vão crescendo aos braços da imprensa”.

Observando este prólogo, assim como o fato de Cervantes se vangloriar do seu talento literário, é possível perceber um escritor já seguro do valor da obra e consciente da qualidade do próprio trabalho. Poderíamos considerá-lo como um homem convencido apregoando vantagens, mas a História da Literatura acabou lhe dando razão. Não se pode esquecer que o “exemplares” do título tanto pode passar a ideia de ser lições de moral para outras pessoas, como também pode ser uma forma nada discreta de anunciar que outros escritores podem usar o seu estilo como exemplo.

O título original do livro de Cervantes era “Novelas exemplares”, contendo 12 novelas. Por razões editoriais e para criar uma obra que se situa a meio caminho entre algo de dimensões normais e um livro de bolso, preferiu-se dividir o material, gerando este Cinco novelas exemplares. Os contos presentes no livro são “O ciumento de Estremadura”, “O colóquio dos cachorros”, “As duas donzelas”, “A força do sangue” e “O casamento enganoso”.

As narrativas se situam entre o real e o fantástico. Exemplo de história realista é “O ciumento de Estremadura”, quando um homem decide casar com uma mulher e encerrá-la dentro de uma fortaleza isolada da presença masculina. Apesar deste desejo, a preservação do amor – que, em última análise, também é a preservação da juventude da personagem – revela-se uma tarefa que chega aos limites da insanidade: não bastando as paredes, fossos e salas que constituem a residência, o homem proíbe a entrada de qualquer outro integrante do sexo masculino, incluindo animais domésticos e escravos. O ciúme é um sentimento atemporal e, preservando a mulher do convívio com outros homens, o marido imagina mantê-la à distância da tentação. No entanto, a mais indestrutível das fortalezas também apresenta fissuras, por onde as brechas podem se transformar em fraquezas. Ao isolar a própria esposa, ele acaba atraindo a obsessão de um homem que, misturando a curiosidade com o desafio (assim como uma não-confessada e somente sugerida busca pelo amor sonhado, um ideal de perfeição absoluta, materializada na figura de uma mulher cujo semblante é desconhecido, deixando a sua beleza ainda mais memorável), não descansa enquanto não invade a fortaleza, usando ardis, simulações e muita lábia.

Por ser realista, o final acaba sendo surpreendente por não encontrar soluções fáceis, mas um desenlace verdadeiro, um anticlímax. Cervantes escreveu as suas novelas entre os anos de 1590 e 1612. Chama atenção que elas ainda sejam atuais: na sociedade moderna, o proibido ainda encontra um grande apelo para despertar a curiosidade alheia que, no final, é somente curiosidade, vontade de possuir algo sem substância, só por possuir. Ao ser realizado o desejo, ele acaba se esvaziando na própria posse, deixando um buraco insaciável a ser preenchido no espírito.

Por outro lado, Cervantes também investe no fantástico. Em “O colóquio dos cachorros”, dois animais domésticos descobrem-se subitamente capazes de falar. Não sabem por quanto tempo a fala lhes será concedida, assim como não conseguem explicar o motivo pelo qual foram agraciados com tal dom. A novela transcorre com urgência, pois a fala pode cessar a qualquer momento, a divindade que lhes concedeu o direito de manifestação pode também cassá-lo sem aviso. Qualquer alegoria ao direito de expressão e às múltiplas formas em que ele é perseguido nos dias atuais são bem vindas.

Os cachorros entregam-se a um longo e profícuo debate filosófico. Por não serem humanos, consideram-se aptos a julgar as atitudes que lhes cercam com fingida parcimônia. Muitas falas e atos dos animais podem ser transportados para os homens: a adulação, a vontade de ajudar, as simulações. A todo momento, eles mencionam o medo de estarem gastando o dom da fala que lhes foi inadvertidamente concedido para falarem mal de outros seres. Ainda assim, não param. A sabedoria de Cervantes é contundente: usamos a fala com o objetivo principal de falar mal de outros homens. O direito de expressão é mal utilizado, pois, ao invés de tratar de assuntos importantes que dizem respeito ao seu crescimento interno, as pessoas o utilizariam com o propósito nada nobre de espalhar as falhas e problemas de outras, em um círculo de maledicência eterno. Não é o que acontece nos dias atuais? Utilizarei outra definição de Calvino: livro clássico é aquele que nunca terminou de dizer o que tinha para dizer, cujas lições nunca envelhecem.

“A força do sangue” é surpreendente. Não bastando o assunto cruel abordado (o rapto de uma mulher por um rapaz de sangue nobre, o seu estupro e o nascimento de uma criança, cujo sangue carrega consigo os genes do abusador e da vítima), Cervantes mergulha fundo nas emoções díspares de ambos os envolvidos. Impressionam a coragem e audácia com que o assunto foi tratado na novela e, se hoje ainda desperta espanto, pode-se imaginar na época em que jovens nobres andavam pelo campo à procura de moças para violentar, convictos da sua impunidade. O escritor espanhol não mede palavras e nem situações, narrando a história tal como ela acontece, sem nenhum juízo de valor que não soe irônico e mordaz. O próprio final, com a duvidosa redenção do estuprador, soa mais ou menos como os programas de televisão diários que expõem dramas familiares diante de um público ávido por tragédias: a admissão pública de um crime basta para expiá-lo? É possível consertar uma situação que, na sua origem, nasceu completamente torta? A ironia de Cervantes é evidente: atar a vítima ao criminoso, por meio de um casamento, é tornar o estupro eterno. Mas existe uma criança, e este dado é decisivo para a tomada de posição. Em Calvino, encontro outra definição de clássico: são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e, também, quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual. Estamos interpretando dramas muito mais antigos do que imaginamos. E, apesar de todo o progresso científico, não evoluímos quase nada do ponto de vista social nestes mais de 400 anos que nos separam de Miguel de Cervantes.

As novelas presentes em Cinco novelas exemplares levantam um espelho incômodo no qual encontramos refletida a nossa sociedade. São novelas que jamais envelhecerão e, por este motivo, merecem ser revistas, relidas, discutidas. Cervantes antecipou o nascimento da short story, que deu origem ao conto, explorando o efeito no leitor ao invés de alongar a história. Antecipou também a disseminação das novelas como formas de exposição dos dramas humanos, algo que se encontra tão presente no cotidiano e cujo conceito se desgastou tanto que sequer perguntamos sobre a sua origem. Calvino diz outra característica de um livro clássico: “são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”. Foi um prazer retornar a Cervantes e me perder de novo na sua prosa ágil e mordaz, senti-me como se estivesse lendo um novo autor. Como o título do livro anuncia, com delicioso pedantismo, são “novelas exemplares”: se o exemplo a ser tomado é bom ou ruim, cabe ao leitor decidir.

::: Cinco novelas exemplares :::
::: Miguel de Cervantes (trad. Nylcéa Thereza de S. Pedra) :::
::: Arte e Letra, 2012, 220 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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