As eleições ao longo do tempo

O Brasil pode ser um país esquisito sob muitos aspectos, mas é uma democracia normal.

“Eleições no Brasil: Do Império aos dias atuais”, de Jairo Nicolau

Jairo Nicolau é um dos grandes nomes da Ciência Política brasileira, que, aliás, tem uns caras bem bons: Figueiredo, Limongi, Abrúcio, Fabiano Santos, Singer, Meneghello, na área mais teórica o Avritzer (que é chegado daquela turma boa de teoria sociológica), e mais pelo menos uns dez que não fazem feio (e às vezes fazem bonito) em comparação com o que se faz lá fora. E tenho a impressão de que a geração ainda mais nova é igualmente boa, talvez melhor.

Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais é um livro obrigatório para os estudantes de ciência política brasileiros. Seu foco são as regras eleitorais e seu funcionamento na prática. É um livro sobre como, por exemplo, se determinou a extensão do eleitorado em diferentes momentos de nossa história (analfabeto vota? Mulher vota? Quanta renda o sujeito deve ter para poder votar? religiosos que fizeram voto de obediência votam?), a proporção da população que efetivamente votou, as regras para compor Câmara e Senado, o cálculo de quociente eleitoral, e outras discussões institucionais desse tipo, além, é claro, das fraudes.

Um dos traços interessantes da história do Brasil é que, à exceção do período do Estado Novo, sempre tivemos eleições. Outro traço interessante é que, pelo menos até a revolução de 1930, as eleições eram mais ou menos abertamente fraudadas. O Brasil não se destaca porque suas primeiras décadas de eleições foram marcadas por fraudes; isso também era verdade em vários dos países onde a democracia apareceu primeiro. O que fica claro, entretanto, é que tem uma hora em que ficamos para trás: os outros países conseguem reformar seus sistemas eleitorais para produzir eleições mais limpas bem antes de nós. Por exemplo, nas primeiras décadas do século XX, no mundo desenvolvido já se formavam partidos operários de massa e as eleições se tornavam grandes disputas ideológicas com alto poder de mobilização social; enquanto isso, prevalecia no Brasil o que Nicolau chama de “unipartidarismo estadual”, a limitação da disputa partidária à briga pelo controle dos partidos republicanos estaduais — com exceções como o Rio Grande do Sul, que, aliás, chega a ter um sistema eleitoral próprio (p. 61), que parece ser tão complicado que Nicolau não se anima a explicá-lo, suspeito que com razão, limitando-se a indicar bibliografia sobre o tema).

Mas lendo a obra de Nicolau, que é informado por pesquisas recentes que parecem muito bacanas, é possível notar que as eleições fraudadas pré-1930 devem ter sido um fenômeno mais interessante do que se pensa. O caso extremo eram as eleições no “bico de pena”, em que um poderoso local chegava lá, adulterava a ata e dizia, teve uma eleição aí, olha só, meu candidato ganhou disparado, que legal. Se todas fossem assim, como era desejo dos referidos poderosos locais, as eleições brasileiras seriam só um sinal de que, em um país em que ninguém tinha qualquer direito civil (liberdade de opinião, igualdade perante a lei, etc.), os legisladores escreveram lá na Constituição que alguns teriam direitos políticos: como resultado, tinha só uma eleição de palhaçada de vez em quando, e era isso. E essa descrição explica muita coisa sobre nossa história pré-1930. Mas será que era só isso?

Pensemos agora no caso em que a lealdade dos eleitores precisava ser comprada (com dinheiro ou com favores). Bom, se precisava ser comprada, é porque não podia ser simplesmente roubada; se o pudesse, podemos contar que o teria sido. Isso quer dizer que os eleitores brasileiros (que, vale lembrar, eram uma parcela muito pequena da população, mesmo levando em conta que a renda necessária para votar era baixa) tinham alguma autonomia: se não lhes fosse pago alguma coisa, tinham a possibilidade de não votar como os poderosos queriam que votassem. Por que, então, não votavam em candidatos que realmente expressassem seus interesses de longo prazo? É uma questão complexa, que não aparece no livro, mas podemos especular sobre algumas explicações possíveis: por exemplo, talvez já tivessem algum princípio de autonomia civil, mas os obstáculos para sua organização política em nível nacional fossem intransponíveis. Talvez o Estado nacional fosse tão fraco que dele não se pudesse esperar grandes reformas, como uma reforma agrária ou a introdução de direitos sociais. De qualquer maneira, seria interessante saber o quanto as eleições eram fraudadas, se eram mais ou menos fraudadas em diferentes regiões. Menos nas cidades que no campo, por exemplo? Nicolau levanta a possibilidade de que as eleições para juiz de paz e vereador tenham sido importantes no Império (p. 44). Qual o resultado dessas experiências na formação de nossa cultura democrática?

O primeiro experimento efetivamente democrático no Brasil foi a democracia do pós-guerra, que, entretanto, tinha um limite muito claro: a proibição do voto aos analfabetos, que ainda eram maioria no país (além da proibição do PCB, que representava setores populares importantes). Mas a diferença para os outros períodos é inegável. Para quem duvidar, sugiro procurar, no livro do Weffort sobre populismo, a referência a artigos conservadores que criticavam o voto secreto, a indignidade que era o político agora ter que convencer as massas imorais (ao invés de muito moralmente fraudar-lhes o voto), e outras reações meio assustadas a esse negócio de eleição de repente ser pra valer.

Foi lendo a discussão sobre o sistema eleitoral do pós-guerra que tive minha única frustração séria com o livro: a ausência de um debate aprofundado sobre a regra eleitoral mais imbecil de toda a história da governança mundial — a possibilidade de eleição de presidente e vice-presidente de chapas separadas (como Jânio/Jango). O Brasil é um textbook case da importância de boas regras eleitorais por causa desse caso: se Jango não tivesse virado presidente a partir de uma eleição em que o eleitorado fez uma escolha claramente conservadora (Jânio), teria tido muito mais legitimidade para implementar as reformas que queria implementar; se, por outro lado, o vice de Jânio tivesse perfil semelhante ao dele, acho mais provável que sua renúncia teria sido mais uma piada do que uma tragédia. Após uns anos com um presidente bobão qualquer, que provavelmente seria inteiramente controlado pela UDN, uma entre duas coisas teria (chuto eu) acontecido: ou a UDN teria provado sua capacidade de governar, pararia com aquele negócio chato de ficar tentando derrubar presidente eleito e a democracia brasileira poderia se consolidar em paz (provavelmente polarizada entre UDN e PTB, com o PSD apoiando todo mundo — eu sei, soa familiar); ou, por outro lado, o governo da UDN teria sido ruim e Juscelino teria ganho em 65 (como as pesquisas sugeriam que ganharia). É óbvio que outras coisas poderiam ter acontecido, mas eu acho difícil ignorar a importância de Jango ter chegado ao poder eleito como vice de um presidente conservador. Dada a importância da regra do jogo nesse caso, gostaria que Nicolau tivesse se detido mais nele.

A descrição das eleições durante a o regime militar merecia ter como título “Assim, até eu”. Como vocês devem saber, as regras eleitorais eram determinadas pelo resultado das eleições anteriores e pelo diagnóstico do que deveria ser feito para a ARENA vencer mais fácil da próxima vez. É possível supor que, se as regras não tivessem sido tão alteradas, e extrapolássemos a tendência pós-1974 até hoje, a ARENA teria mais ou menos o tamanho que passa a ter agora que foi ressuscitada pelo MSLH (Movimento dos Sem-Livro de História). Mas também é notável que o regime militar foi o período de maior expansão do eleitorado brasileiro em toda nossa história. Quais as consequências de termos uma imensa parcela de nossa população inserida no eleitorado quando o eleitorado não apitava muita coisa?

Ou, por outro lado, se o leitor nos permite sair um pouco da discussão proposta por Nicolau, quais as consequências de termos toda uma geração de políticos, especialmente à direita, que aprenderam seu ofício disputando eleições em que podiam contar com a manipulação das regras do jogo a seu favor, políticos selecionados mais pela sua capacidade de puxar o saco dos generais do que de efetivamente ganhar eleições? Antes de responder, considere que a ARENA virou o PDS, que virou o PPR, que virou o PPB, que virou o PP, que não é muito bom em ganhar eleição, mas, a crer no STF, é bom em ganhar mensalão, inclusive de governos de esquerda. Considere também que, depois de 70 anos de ditadura comunista, o partido comunista russo faz tempo que não produz alguém capaz de entusiasmar quem quer que seja. Ou que o grande herói da direita brasileira pós-85 seja Fernando Henrique Cardoso. Enfim, vocês entenderam: ditaduras podem até ter origens carismáticas, ou populares, mas é difícil que, após sua rotinização, gerem muitas lideranças boas em discussão pública e competição aberta.

Voltando ao livro, o debate sobre o sistema eleitoral brasileiro atual reforça o que boa parte da ciência brasileira recente descobriu: o Brasil pode ser um país esquisito sob muitos aspectos, mas é uma democracia normal. Democracia não é um negócio utópico em que sovietes autogestionários da era de Aquário produzem uma sociedade perfeitamente transparente e autônoma e inteiramente reintegrada no seio da Mãe Gaia. Democracia é isso aí mesmo que temos, eleições razoavelmente limpas e partidos mais ou menos organizados (para as taxas de fidelidade partidária nas votações dos partidos brasileiros no Congresso, chequem o trabalho de Argelina Figueiredo e Fernando Limongi: são mais altas do que você pensa) moderando o discurso para conquistar o centro (sobre isso, realmente vale a pena ler o estudo de Fabiano Santos). Temos problemas seríssimos, inclusive no sistema político (como corrupção), mas a democracia brasileira existe e funciona. Mesmo partidos microscópicos como PCO e PSTU, que passaram o vexame de chegar atrás de Rodrigo Maia na última eleição para prefeito do Rio de Janeiro, têm o direito de funcionar livremente.

Enfim, para a turma que gosta de ciência política (como eu), o livro é obrigatório. Para qualquer um que se interesse por história política brasileira, é uma boa ideia. E para quem acha que alguma grande reforma eleitoral (por exemplo, voto distrital) vai resolver grande coisa, o livro serve como alerta: tem coisa funcionando direito, tem bastante coisa que vale a pena não estragar, o trabalho necessário para construir o que já existe foi dificílimo. Não recomendo movimentos bruscos.

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PS: muito bacana a descrição de eleições locais durante o período colonial, em que eleitos para mandatos sucessivos eram votados no mesmo dia, e os resultados para os mandatos posteriores eram guardados em bolas de cera. É inaceitável que nenhum centro acadêmico de ciência política brasileiro adote esse procedimento como homenagem à nossa tradição política.

PSTU: a propósito, devo reconhecer que o pessoal do MSLH (que é muito mais forte do que sua subseção que fundou a nova ARENA) admite ler livros, desde que eles tenham uma daquelas capas com versões mal desenhadas da capa do Sgt. Pepper’s.

PSTUdoB: se você se interessar sobre esses debates sobre sistemas eleitorais, lista fechada, lista aberta, distrital desse jeito ou daquele, o Nicolau também é autor de uma ótima introdução ao tema.

PSOL: e se você quiser ver cientista político brasileiro fazendo bonito internacionalmente, tem o trabalho de Przeworski, Limongi, Cheibub e Alvarez.

PPS: a Relume-Dumará já corrigiu aquela capa do livro do Przeworski com o nome do autor escrito errado (com “y”) na capa? É uma das melhores editoras que temos, mas aquela foi engraçada. Depois acho que só publicaram autor com nome fácil.

::: Eleições no Brasil: Do Império aos dias atuais :::
::: Jairo Nicolau :::
::: Zahar, 2012, 176 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::



  • http://suspensao.blog.br/juizo Adam

    Olá, Celso.

    Parabéns pela resenha, muito boa mesmo. Quaaaaase comprei o livro, mas resisti, porque sei que não vou ler tão cedo, a pilha está grande lá em casa :)

    Um ponto que achei curioso, porém, foi sua breve história da, digamos assim, evolução do ARENA. Ela é bastante diferente, por exemplo, da história dos antigos partidos comunistas do Leste Europeu (ao menos segundo a referência que você fez ao livro de Anna M. Grzymala-Busse: http://www.cambridge.org/gb/knowledge/isbn/item1113704/?site_locale=en_GB) Eu ia achar muito interessante um estudo fazendo paralelo entre o que ocorreu aqui e o que ocorreu lá, as razões históricas para isso etc.

    (Note, porém, que estou curioso, mas não surpreso. A administração dos militares pode ser vista de várias perspectivas, acho, mas parece que o saldo foi patético, eles não sabiam administrar nada e deixaram o país afundado em hiperinflação, com baixo crescimento, corrupto etc.)

    Enfim, comentei mais para elogiar e notar que há um paralelo interessante que pode ser traçado aí.

    Até!

  • aiaiai

    as vezes eu penso em acabar com minha conta no twitter mas aí eu penso: e como vou ficar sabendo dos artigos do NPTO? Então, desisto. (viciado tem sempre uma desculpa kkkkkkkkkkkk)

    Vou ler o livro porque me interesso muito pela história política do brasil.

    Sobre o seu texto, delicioso, só fiquei com uma pulga atras da orelha: a meu ver, a arena não nos deu só o PP, infelizmente. O DEM é arena, boa parte do PMDB é arena e, atualmente, o PSDB tb é arena. E, pensando no que vc escreveu, sobre políticos q para ganhar eleição apenas precisam puxar o saco do poderoso da hora, quase todo o nosso sistema partidário é contaminado por esse vício da arena.

  • Manoel

    A resenha parece ótima, você sempre escreve bem. Mas é difícil avaliar resenha sem ter lido o livro, ou não? Enfim, tá muitíssimo bem escrita…

  • Gabbardo

    O mínimo que se deveria esperar do Amálgama depois de submeter os leitores à uma coluna do Morgenstern é uma coluna do NPTO. Tirou o gosto ruim da boca.

  • http://flaviomorgen.com Flavio Morgenstern

    Agradeço à minha presença memorativa no comentário acima.

    Sobre a resenha, há pontos passíveis de discussão. Esse me chama a atenção:

    “[Q]uais as consequências de termos toda uma geração de políticos, especialmente à direita, que aprenderam seu ofício disputando eleições em que podiam contar com a manipulação das regras do jogo a seu favor, políticos selecionados mais pela sua capacidade de puxar o saco dos generais do que de efetivamente ganhar eleições?”

    Basicamente, diria que as conseqüências foi uma esquerda, a mais moderada de todas, sabendo que basta trocar as palavras “direita” por “esquerda” e “generais” por “coronelistas” de diversos matizes no parágrafo supracitado, e cá está a própria conseqüência que o parágrafo busca.

    Acho um pouco curioso esse negócio de chamar FHC de “direita”. Realmente, falta uma concetualização adequada do que é direita e esquerda para a Academia brasileira, que conhece diversos matizes de esquerda e não sabe escapar dessa gaiola conceitual.

    Alguma hora teremos cursos de ciência política que saberão passar a seus alunos, junto com todo o cânone da esquerda, também Mises, Kołakowski, Croce, Voegelin, Santayana, Nozick, Ortega, Kirk, Scruton, Babbit, Kimball, Kristol…

  • André Mattana

    Ótima resenha, me deu vontade de comprar o livro! Mas vou fazer coro sobre a questão do fim da Arena. O partido deu origem não apenas ao partido do Maluf (atual PP), mas ao PFL (atuais DEM e PSD) e uma parcela significativa se mudou para o PMDB. O próprio Sarney foi arenista. Além disso os partidos de direita e centro brasileiros são caracterizados por políticos que transitam de um partido para outro. Logo PTB, PR e mesmo o PSDB também receberam arenistas.

  • Paulo Soares

    Olá,
    Boa resenha. Informativa e agradável de ler.
    Meu único porém é sua consideração de que o fato de Jango, por ter sido eleito com uma plataforma diferente da de Jânio era algo que lhe fragilizava. Ora, tendo em vista que ele foi eleito, a votação que recebeu, muito mais que qualquer coerência entre presidente e vice, era o que o legitimava.
    O golpe veio porque os tenentes que já eram generais o queriam das desde 1945. É bom lembrar que tentaram derrubar Juscelino! E só não o fizeram por obra e graça do Marechal Lott. A derrota de Lott na eleição de 1960 talvez tenha sido o mais importante para abrir o caminho do golpe. Os discursos de jango foram apenas a desculpa da hora.

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