Entrevista com Katherine Funke

"Notei que todos os dias eu inventava ou registrava histórias que poderiam se perder se eu continuasse apenas tocando a vida em frente."

O que é viver de literatura no Brasil nos dias de hoje? Ou melhor: como dar os primeiros passos e se firmar vivendo da escrita e seus derivados (cursos, palestras, oficinas etc.)? As chances de publicar uma obra aumentaram muito nos últimos anos. Contudo, por isso mesmo, as oportunidades para ser lido ou, mesmo, viver apenas de literatura não são tão grandes assim.

Katherine Funke nasceu em Joinville, em 1981, mas vive em Salvador desde os 22 anos. Publicou seu primeiro livro, Notas mínimas, em 2010. Desde então, vem se dedicando com exclusividade à literatura e acumula na bagagem prêmios importantes, como a Bolsa Funarte. Na entrevista abaixo, concedida ao Amálgama por e-mail, Katherine discute o cenário literário brasileiro e fala sobre as dores e delícias de ser o que é: escritora.

*

Amálgama: Você é de Joinville e, aos 22 anos, passou a morar em Salvador; cidades bastante distintas: clima, cultura, arquitetura etc. Em que medida a opção por Salvador exerce influência na sua literatura?
Katherine Funke: Certamente minha resposta vai sair incompleta, porque morar aqui nos últimos dez anos me marca em muitos aspectos. Salvador é um dos maiores centros culturais brasileiros, pela diversidade, pela história, pela força local e do que atrai. Vim do interior de Santa Catarina, da área rural: havia uma pastagem na frente da janela do meu quarto, uma plantação de milho no terreno da esquina, galinhas nos vizinhos e leite fresco de vaca todas as manhãs da minha infância. Então, o simples fato de morar em um grande centro urbano já me modifica, e costumo dizer que me exilei na multidão dos quase quatro milhões de habitantes da região metropolitana de Salvador. Conheço a cidade com a mobilidade privilegiada de uma repórter, da sala de um dos homens mais ricos até a sala de um dos mais pobres. Aqui há uma disparidade social terrível, mas também uma convivência saudável entre diferentes crenças, modos de vida, sotaques, aptidões. Tudo isso, além de me inspirar para a literatura de ficção, me faz escrever sobre o que encontro pelo caminho, como jornalista. No livro Sem pressa (a ser publicado em 2013, pela editora Solisluna), que escrevi com apoio da Bolsa Funarte no ano passado, busquei temas reais daqui, como a cultura de cacau, a produção artesanal de pandeiros, entre outros. Agora noto que o livro acabou ficando bem baiano, bem contemporâneo, e certamente eu não teria seguido por este caminho se não morasse aqui.

Notas mínimas (2010), seu livro de estreia, reúne, como se lê na orelha, “aforismos, microcontos, crônicas em cápsulas e minirreportagens poéticas”. Com efeito, você explora a linguagem em muitas de suas possibilidades, dialogando com outras artes – talvez, mais notadamente, com a música (cuja alusão já se faz presente no título do livro) e também com as artes visuais (o livro é todo ilustrado). Poderia falar um pouco do processo de criação da obra? E que avaliação você faz da sua recepção?
Notas mínimas começou a ser escrito quando percebi que iria completar 30 anos de idade dali a quatro anos e ainda não havia levado a sério as “notas de rodapé” que às vezes enchiam páginas e páginas dos meus blocos de anotações. Eu havia passado já quatro anos como repórter de jornais impressos. Depois desse tempo como operária da informação e do texto rápido, eu só sabia que queria estar fazendo alguma coisa, alguma coisa pela minha arte, urgente. Eu tinha contos, tinha poesias, tinha ideias de livros, tinha um romance iniciado, mas não tinha tempo para parar, analisar, organizar, levar a sério. Então decidi focar em uma meta mínima, pequenina, mas que me fosse possível.

Notei que todos os dias, dentro do carro ou do ônibus, ou já em casa, eu inventava ou registrava histórias que poderiam se perder se eu continuasse apenas tocando a vida em frente. Então, um belo dia (depois de voltar de Maracangalha, onde um avião cheio de dinheiro havia caído), comecei o blog “Notas Mínimas”, e só parei um ano e meio depois, mais ou menos. Na verdade, a ligação com a música não me veio em primeiro lugar ao titular o projeto, e sim o tamanho dos textos – e o que eles iriam contar. Eu sabia que tinham de ser textos curtos, mínimos, que pudessem ser lidos rapidamente por esses internautas volúveis que todos somos. Sabia também que registraria histórias mínimas, isto é, com enredo simples e mais foco no clima, ou apenas clímax, a plenitude de um instante cotidiano registrada em poucas palavras. Foi muito bom fazer isso. Uma coisa levou à outra: a decisão de publicar em blog me levou à urgência de escrever mais e mais, e coisa de um ano e meio depois eu estava mais ocupada em escrever um romance (que ainda não terminei). E estava muito interessada em conseguir verba para escrever literatura e não precisar mais trabalhar diariamente como jornalista. Então foi tudo muito rápido: a editora Solisluna, aqui da Bahia, passou uns seis meses analisando meus originais e publicou o livro exatamente quando eu soube que havia ganho uma Bolsa Funarte (2010). Naquele mesmo ano, no primeiro semestre, eu havia escrito uma biografia de Mario Cravo Junior (que não saiu ainda), e um romance a quatro mãos, Maria João, que foi contemplado por edital da Fundação Pedro Calmon, de pesquisa e criação literária.

Notas mínimas foi lançado também exatamente quando eu estava na Flip, em Paraty, como uma das 30 alunas do curso de perfil biográfico, ministrado por Juan Villanueva Chang, da editora Etiqueta Negra. Tudo isso acontecendo e eu dizia para mim mesma que estava dando certo. E ainda digo, todo dia, embora o romance escrito a quatro mãos esteja em um constante processo de reedição, pois meu colega Luis Daltro e eu somos vaidosos e perfeccionistas… Esses foram, digamos, meus primeiros passos na literatura, e acho que a publicação de Notas mínimas atraiu um público interessado em mais. Quanto à repercussão formal, não foi muita, porque também eu não fiquei apostando nisso. Mas tive resenhas em jornais e revistas, dei entrevistas, essas coisas. Circulei um pouco com o livro e recebi alguns feedbacks muito importantes para meu crescimento como escritora. Eu não costumo voltar ao livro e já me parece que faz uns cinco anos que saiu, quando na verdade só faz dois. Aconteceram tantas coisas depois dele! Acho que foi um bom começo…

Fala-se muito na “facilidade” para se ter um livro publicado, sobretudo quando se comparam os dias atuais com as últimas décadas. Você, que faz parte da safra de jovens escritores brasileiros, concorda?
É verdade que é bem fácil publicar, se você tem dinheiro é facílimo, aliás. Mas, talvez, justamente por isso, muito mais difícil ser lido. Embora eu tenha sorte em receber todo o apoio da Solisluna Editora, que tem feito trabalhos incríveis por aqui, em geral não é tão fácil ser publicado, isto é, oferecer originais a uma boa editora e ser aceito, sem precisar pagar nada para fazer parte de seu catálogo (ao contrário disso: receber direitos autorais…). Também não é tão simples assim ter seu trabalho bem distribuído, isto é, presente em livrarias, disponível para o contato direto com o leitor. E mesmo que ele esteja nas livrarias, o leitor precisa ter algo que o atraia: ter lido uma resenha, ter recebido a indicação de um amigo, ter visto ou ouvido uma entrevista com o autor. Ou seja, entre publicar e ser lido existe uma imensidão de coisas, meio literário, sorte, acaso, oportunidade, talento, esforço pessoal…

Ainda que se considere um certo inchaço nos números de publicações atualmente, há quem apregoe que nunca foi tão difícil viver só de literatura no Brasil. O que pensa a esse respeito?
Posso dizer que tive a imensa sorte, ou privilégio, de ter passado um ano vivendo da Bolsa Funarte, que recebi no final de 2010. E antes, durante o ano de 2010, recebi para escrever uma biografia e também para um romance a quatro mãos, como já falei. Minha experiência mostra que existem muitas possibilidades hoje, editais, bolsas, programas de apoio. Mas, por outro lado, viver apenas da venda de um livro é bem mais difícil. Certamente, só acontece quando o autor tem bastantes títulos com alta vendagem, e mesmo assim vejo autores de uma vasta obra, como João Ubaldo Ribeiro, tendo de escrever para jornais semanalmente, o que com certeza é divertido, mas também cansa. Por isso, para sobreviver como escritora (sem formação em Letras, nem mestrado ou coisa do tipo), estou buscando alternativas que tenham a ver com literatura, como ministrar cursos, preparar originais de outros autores, editar, traduzir, colaborar com revistas e assim por diante. Ano que vem, por exemplo, vou dar uma oficina de contos aqui na região metropolitana de Salvador, com apoio do edital setorial de literatura da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Ou seja, faço o que gosto e ainda pago as minhas contas. Mas nunca paro de trabalhar. E não estou reclamando nem um pouco disso…

Você foi contemplada com prêmios importantes, além de jornalísticos (o “Concurso Tim Lopes de Investigação Jornalística” e o “Prêmio Esso”, do qual foi finalista), também aqueles que apoiam a criação literária: “Fundação Pedro Calmon” (2009) e “Bolsa Funarte de Criação Literária” (2010). Qual a importância de editais desse tipo para escritores em início de carreira?
Esses editais são importantíssimos porque possibilitam escrever, apenas escrever, pelo menos durante alguns meses. Pude também viajar, comprar livros, ir a festivais e cursos fora de casa. Pude ir para a Flip, o Festival Nacional do Conto, a Semana de Literatura do Sesc-PR, por exemplo… Gostaria de ter ido para Iowa, fazer o curso de escrita criativa lá, o curso de verão. Acabei nem tentando, me arrependi um pouco por isso. De todo modo, esses editais nos dão a oportunidade de desenvolver um trabalho que depois vai dando resultados. Acabo de saber, por exemplo, que um dos contos do livro Sem pressa foi selecionado para uma antologia que vai ser lançada na Alemanha, em idioma alemão. Estou bem feliz, porque este livro, organizado pelo poeta Timo Berger, também vai reunir textos de autores que admiro e tenho prazer em ler: Verônica Stigger, Santiago Nazarian, Joca Terron. Vai sair pela editora Verlag Klaus Wagenbach, de Berlim, pouco antes da Feira do Livro de Frankfurt em 2013.

Share Button

  • http://www.cacodeoliveira.poemas.com.br Caco de Oliveira

    O homem com a picareta
    escava o chão, porém quem
    atinge o centro da Terra
    é o menino com o pião.