"O Brasil é um Estado laico, mas não ateu." etc.
Já escrevi mais longamente sobre a questão da laicidade do Estado e por que considero que a retirada de símbolos religiosos de repartições públicas, e da frase esdrúxula “Deus seja louvado” do papel-moeda, deveria ser um gesto tão óbvio quanto abrir um guarda-chuva quando começa a chover. Quem quiser conhecer minhas razões, em detalhe, pode encontrá-las aqui.
No entanto, desde que o Ministério Público Federal decidiu, há alguns dias, se mexer para que o óbvio se concretize, uma série de argumentos pré-fabricados começou a circular contra a iniciativa, então resolvi deixar, para quem quiser uma fonte de consulta rápida, algumas respostas prontas para o mar de clichês falaciosos em que o debate ameaça soçobrar. Vamos lá:
Tirar a frase do dinheiro? É falta do que fazer!
Essa objeção é, de fato, a minha favorita, basicamente porque embute uma admissão de culpa: quem a usa sabe que, num Estado laico, documentos oficiais e produtos criados com recursos públicos não poderiam conter frases de exortação religiosa. Só que, quando você sabe que está errado mas não quer fazer nada a respeito, qual a saída? Tentar mudar de assunto, ou ao menos minimizar a importância do erro. É como o cara detido por passar o sinal vermelho reclamando com o guarda, “Não tem assaltante de banco para perseguir, não?”. A verdade é que as autoridades têm de se preocupar tanto com o trânsito quanto com os assaltos.
A maioria da população é cristã, logo quem não gosta que ature.
Existe uma diferença entre democracia (que se fundamenta no respeito aos direitos de todos) e demagogia (que é jogar para a galera, muitas vezes atropelando direitos individuais para agradar a turba). O acolhimento, tácito ou explícito, pelo Estado, da religião da maioria é tão democrático quanto um juiz sancionar um linchamento, só porque sangue nas ruas é o que a maioria — a choldra — quer. O fundamento da democracia moderna não está na ditadura da maioria — isso chama-se fascismo — e, sim, no respeito aos direitos do indivíduo.
O Brasil é um Estado laico, mas não ateu.
E alguém, por acaso, está querendo mandar imprimir “Deus não existe” no papel-moeda? Um Estado democrático deve se manter neutro em relação às preferências individuais de seus cidadãos. O fato de o dinheiro brasileiro não trazer a frase “Beba Coca-Cola” não representa um endosso do Estado à Pepsi ou ao Guaraná. Da mesma forma, a remoção de “Deus seja louvado” não fará do Brasil um Estado ateu militante, mas apenas recalibrará, para uma posição de maior neutralidade, a posição do Estado frente à pluralidade de perspectivas filosóficas existente por aqui.
Os EUA, que são um exemplo de democracia, usam a frase “Em Deus Confiamos”. E aí?
Os Estados Unidos abandonaram o lema no início do século 20, mas voltaram a adotá-lo na década de 50, para marcar posição ideológica em oposição ao “comunismo ateu” (para maiores informações, procure “Guerra Fria” na Wikipedia). Foi um erro, que grandes intelectuais do país vêm tentando corrigir desde então. De fato, o presidente Ted Roosevelt, que primeiro ordenara a remoção da frase, havia tomado a decisão por considerar um “sacrilégio” pôr o nome de Deus em algo tão sujo e mundano quanto dinheiro. Algo que nossos pios senadores e probos arcebispos poderiam, de repente, levar em consideração.
“Deus” é mencionado no preâmbulo da Constituição!
Verdade. Tem um “sob a proteção de Deus” lá. Não devia ter, mas tem. Só que, em 2002, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a menção não é parte essencial da Constituição brasileira. Nessa decisão, o STF determinou que as Constituições dos Estados — que, por óbvio, têm de respeitar os princípios fundamentais da Carta federal — não são obrigadas a mencionar Deus. De acordo com o Supremo, o preâmbulo não tem força normativa (de lei), ao contrário das “normas centrais” da Constituição. E uma dessas normas, só para lembrar, é o artigo 19, onde se diz que o governo, em todas as suas esferas (federal, estadual, municipal) é proibido de estabelecer, subvencionar ou manter aliança com cultos religiosos. Cá entre nós, se usar papel-moeda para mandar louvar a Deus não é subvencionar culto, o que seria?
Carlos Orsi
Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.
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