As qualidades de Victor Heringer estão menos na ironia fina e mais no humor nonsense
A história da literatura é repleta de exemplos de romances que acompanham a ascensão e a decadência de famílias inteiras. Com frequência, estas obras acabam por apresentar a trama altamente vinculada com seu tempo e os conflitos mostrados são, de certo modo, os conflitos de sua sociedade. Talvez o exemplo mais eloquente na Europa seja Os Buddenbrooks de Thomas Mann, enorme romance de estreia do autor alemão. Em nosso país, impossível deixar de citar Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso. Em ambos, o movimento das famílias em direção à irrelevância e à perda de seu prestígio anterior está umbilicalmente ligada às mudanças na sociedade da época na fatura do romance.
Mas essa forma faria sentido ainda hoje? Victor Heringer parece achar que sim, desde que as características próprias a este tipo de romance sejam repensadas e combinadas com outros elementos, que fariam as vezes de atualizadores formais. O resultado é o recém-lançado Glória, cujo título polissêmico acaba por evocar as mais diversas expectativas, algumas delas cumpridas, outras não, no curso da narrativa.
A história gira em torno da família Costa e Oliveira. As duas partes do romance se retroalimentam com base na ironia: um pequeno núcleo familiar apartado do restante dos parentes constitui seu método de formação de três crianças como constantes brincadeiras, em especial blasfêmias e outras imprecações relacionadas ao divino. Nesse caso, o sarcasmo intermitente e o modelo pouco ortodoxo de educação familiar servem de contraponto para o que seria uma sina de toda a família: “morrer de desgosto”. Essa causa mortis esquisita, oriunda do dizer popular (fulano morreu de desgosto por determinada situação), orienta os planos da narrativa e determina qual seria a “mensagem” que a família passa para nossa sociedade.
Mensagem entre aspas, porque o romance faz questão de ironizar justamente essa característica do tipo romanesco a que referi no primeiro parágrafo. Utilizar os Costa Oliveira como emblema do mundo moderno, como primeiros representantes de uma “síndrome” que ameaça toda a população mundial, é uma das formas encontradas por Heringer para relativizar – e, ao mesmo tempo, expor – a fórmula básica de interpretação. Assim, os personagens que seriam metáforas para nosso tempo acabam por ter essa dimensão exposta relativamente cedo na obra, sempre de modo sarcástico.
Nesse jogo de ironias, a maior delas também é a menos convincente: o romance teria sido encomendado por um dos personagens secundários para que figurasse em seu rol de obras, sendo o próprio Heringer apenas um ghost writer. A moldura, que se expõe no Prefácio e se intensifica no Epílogo (no qual se mostra um futuro próximo, no qual os Costa Oliveira servem de emblema para todo um movimento filosófico-religioso, impulsionados pelo próprio livro de Heringer), fica extremamente artificialesca como um exercício de metaficção, que não ajuda o livro em seus pontos mais meritórios.
A impressão que fica é que Heringer tentou, ao fazer o típico romance familiar representativo, fugir o tempo todo às convenções do gênero. Ora, isso funciona melhor quando a quebra de expectativa está integrada no curso da narrativa: por exemplo, uma personagem faz o catálogo de como os Costa Oliveira, morrendo todos de desgosto, seriam representantes desta moléstia que viria a atacar todo o mundo (profecia que se presta a todo tipo de interpretação no curso do romance, incluindo a cômica frase “Todo mundo é um Costa Oliveira”). Essa tentativa quase desesperada da personagem de fazer de sua família a maior expressão de seu tempo é irônica quanto à própria forma do romance, de modo a potencializar a capacidade de expressão do gênero. Infelizmente o livro se desvia muitas vezes dessa fórmula e aposta mais na metaficcionalidade e na ironia levada ao paroxismo.
Aliás, Glória poderia muito bem se chamar Ironia. O objetivo último de quase todos os personagens parece ser se transformar em uma ironia de si mesmo e de suas experiências, ainda que por caminhos totalmente diversos. Em um capítulo fundamental, a mãe analisa seus três filhos (dos quais dois são vitais para a narrativa) e parece uma crítica literária a identificar o que cada um deles representa e como isso é em si uma forma de erosão e afirmação ao mesmo tempo, de modo contraditório, do caráter familiar mais amplo. O recurso seria interessante se o leitor já não tivesse percebido esse simbolismo dezenas de páginas antes, quase que pari passu com a narrativa.
Ou seja, Heringer escreve um livro que intenta ser esperto. Mas, como toda esperteza, pode naufragar se o leitor for a) tão ou mais esperto que os jogos de personagens e identidades, o que, considerando o círculo restrito de leitores de que dispomos no Brasil, não é nada incomum; ou b) se o livro ultrapassar muito o entendimento do leitor, que não perceberá as ironias contidas nos movimentos narrativos. Neste último caso, o livro será lido como uma engraçada história de uma família meio destrambelhada. Humildemente defendo que todos que o leiam o façam dessa forma, tentando ignorar o que serve de representativo ou de metaficcional. As qualidades de Heringer estão menos na ironia fina e mais no humor nonsense, que funcionaria melhor sem os penduricalhos narrativos, que estão ali apenas para impressionar e acabam reduzindo a fatura estética da obra.
::: Glória :::
::: Victor Heringer :::
::: 7 Letras, 2012, 292 páginas :::
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Vinícius Justo
Mestre em Teoria Literária pela USP.
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