‘Mãe de Deus’

por Carlos Orsi (11/11/2012)

Interessante o padre Marcelo Rossi ter escolhido a palavra grega theotokos como nome "oficial" de sua megachurch

– Moeda da imperadora Pulquéria –

Interessante o padre Marcelo Rossi ter escolhido a palavra grega theotokos como nome “oficial” de sua megachurch. O nome popular é “Mãe de Deus”, expressão geralmente tida como uma tradução razoável de theotokos, que é um termo técnico da teologia cristã, adotado oficialmente no Concílio de Éfeso, realizado em 431 sob os auspícios do imperador bizantino Teodósio II.

Ao pé da letra, theotokos pode querer dizer “portadora de Deus” ou “que dá à luz Deus”. A expressão, aplicada à personagem Maria de Nazaré, do Novo Testamento, tem significado cristológico — isto é, diz algo sobre a natureza de Cristo: se Jesus Cristo é filho de Maria, e Maria é Mãe de Deus, então Jesus é Deus.

No século V, quando os bispos da Igreja se reuniram em Éfeso para discutir o assunto — se Jesus era mais Deus que homem, mais homem que Deus, se as duas coisas ao mesmo tempo e em proporções iguais –, a questão não era meramente teológica ou acadêmica, mas tinha graves implicações políticas e sociais. Um bom livro sobre o assunto é Jesus Wars, do historiador Peter Jenkins, que mostra como os debates nesses primeiros concílios ecumênicos eram decididos menos por meio de discussão racional e apelos à oração e mais por manipulação de bastidores, ameaças, subornos e, até, linchamentos e assassinatos, muitas vezes praticados por turbas de monges que, mobilizadas por bispos carismáticos, comportavam-se como tropas de choque fascistas ou como torcidas organizadas.

Claro, se você tiver fé o bastante, dá para acreditar que toda a sacanagem acabou produzindo o resultado exato que o Espírito Santo queria revelar, mas não é fácil evitar o pensamento de que deve haver modos mais fáceis de Deus comunicar suas intenções.

No caso específico do debate sobre se Maria era digna do título de “Mãe de Deus”, as facções em conflito envolviam o patriarca Nestório, de Constantinopla, e Cirilo, de Alexandria (o mesmo que é suspeito de ter instigado o linchamento da filósofa pagã Hipácia). Cirilo defendia a justeza do uso theotokos; Nestório preferia o mais modesto christotokos, ou “Mãe de Cristo”, para deixar claro que Maria era mãe apenas da natureza humana do messias, já que a natureza divina é eterna.

Nos bastidores, no entanto, a briga era entre Nestório e Pulquéria, irmã do imperador Teodósio II e, em muitas ocasiões, o verdadeiro poder por trás do trono. Pulquéria identificava-se com a figura de Maria, tendo feito um voto de castidade e mantendo-se virgem mesmo após o casamento com o general Marciano. Da mesma forma que os imperadores, a partir da conversão de Constantino, passaram a usar a ideia do Deus único cristão como metáfora legitimadora de seu poder autocrático, Pulquéria apoiava-se na ideia de Maria, Mãe de Deus, para promover sua autoridade pessoal. Qualquer movimento que pudesse ser visto como um rebaixamento do status de Maria de Nazaré poderia, também, ser interpretado como um atentado à imagem pública da irmã do imperador.

A briga entre Pulquéria e Nestório parece ter sido suja de parte a parte: o patriarca lançou uma campanha de difamação contra ela, insinuando que tinha amantes. A imperadora, por sua vez, encomendou um documento apócrifo acusando o patriarca de heresia e, quando o Concílio de Éfeso foi finalmente convocado para resolver a disputa theotokos/christotokos, tratou de manobrar com Cirilo para encher as sessões com agentes provocadores que impediam que os partidários de Nestório se manifestassem. Lendo as descrições de historiadores, a coisa toda deve ter sido muito parecida com uma assembleia estudantil, onde a turma da “oposição” é calada à força de vaias, quando não na porrada.

No fim, ficou decidido (em boa parte, graças à influência de Pulquéria junto ao irmão imperador) que Maria era mesmo theotokos e que Nestório era um herege. Ele perdeu o título de patriarca e se exilou num monastério; sua condenação provocou um cisma no cristianismo, com o nascimento de igrejas nestorianas na Pérsia e em outras partes do Oriente.

Várias questões, no entanto, permaneciam em aberto: por exemplo, se Jesus era Deus, como Ele pode ter sofrido na cruz, e morrido? Deus não é eterno? Para tentar resolvê-las, um novo concílio, o Segundo de Éfeso, foi convocado, mas o processo se viu tão marcado por violência e corrupção que o papa da época, Leão I, apelidou Segundo Éfeso de “Latrocínio“. Esse concílio e suas conclusões foram, no fim, declarados inválidos.

Para limpar a sujeira conceitual deixada por Segundo Éfeso, reforçar a importância do uso da expressão theotokos e clarificar as questões em torno da natureza de Jesus, Pulquéria, imperadora de fato (ainda que contando com um consorte e co-regente, Marciano) após a morte do irmão, convocou então o Concílio de Calcedônia, que entronizou de vez a ideia de theotokos e definiu Jesus Cristo da seguinte forma:

Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade, perfeito quanto à humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado, gerado segundo a divindade antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da virgem Maria, mãe de Deus; Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, inseparáveis e indivisíveis; a distinção da naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência; não dividido ou separado em duas pessoas. Mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor; conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu.

A Wikipedia se refere a isso como uma “declaração clara” da natureza de Jesus, mas deixo ao leitor a tarefa de extrair algo da suposta “clareza” apresentada. E, como Peter Jenkins nota, a formulação “gerado segundo a divindade (…) gerado segundo a humanidade” lembra muito a objeção original de Nestório ao uso de theotokos, mas numa manobra de conciliação digna de um ministro do PMDB, os artífices do concílio conseguiram tornar ortodoxos tanto a noção das duas naturezas, humana e divina, quanto o uso da expressão “Mãe de Deus”, tão cara à mulher mais poderosa do império.

Após o concílio, realizado em 451, Pulquéria, que ainda viveria até 453, passou seus anos finais promovendo a devoção a Maria Theotokos — e, por tabela, a si mesma. Ele dedicou três igrejas à Virgem.

Pulquéria foi, depois de morta, canonizada, assim como o patriarca Cirilo. No fim, o theotokos mostrou-se menos um tributo a Maria e mais um instrumento da vaidade de seus “humildes” devotos. Mais de um milênio e meio depois, quem pode dizer que as coisas mudaram?

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.

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