As palavras de Rafael Gallo
O resultado é a estreia madura e contundente do escritor Rafael Gallo.
O escritor português António Lobo Antunes certa vez disse que um livro bem escrito é aquele que o leitor não percebe a dificuldade que o autor teve ao escrevê-lo. É exatamente isto que acontece na leitura de Réveillon e outros dias, livro vencedor do Prêmio Sesc de Literatura na categoria contos em 2011 e publicado este ano: em momento algum percebe-se o trabalho do autor. Por isso, ao atentar-se que o arrebatamento causado pelos contos de estréia de Rafael Gallo decorre de sua fluidez narrativa, não se deve entender essa qualidade como sinônimo de simplismo. É preciso seguir a pista de Lobo Antunes para compreender que, se Réveillon e outros dias transcorre com leveza, tal situação decorre da escolha certeira de palavras, da construção cuidadosa de frases, da estruturação de enredos e da criação de personagens interessantes. De outro modo, decorre do trabalho (agora premiado) do autor.
Percebe-se com rapidez que os contos são pautados nos personagens que os compõem. E isso resulta num mergulho bastante profundo nas personalidades criadas, mas não incorre em análises psicológicas áridas ou psicologismos fáceis. Tal característica é constatada no conto “Réveillon”, que abre o livro. Nele, os personagens são tão intensos quanto intrincados: a relação entre o filho surdo e prestes a partir numa viagem e seu velho pai recém viúvo coloca-os num ponto limite, uma vez que a vontade de vida do jovem choca-se com a finitude que o velho experimenta. A construção detalhada de personagens continua nos contos do livro: o ex-detendo de “Balas”, o casal de “Violentada”, a mãe de “Espiral”, o aventureiro comerciante de “O vendedor”, o seu Garcia de “A casa iluminada”. Ou seja, em todos os contos encontram-se personagens esféricos, que se debatem em suas contradições, arcando de um modo ou outro com as conseqüências de suas escolhas.
É interessante perceber também que, além de apresentar as diretrizes de criação de personas, a situação vivenciada pelos personagens do conto “Réveillon”, principalmente no que diz respeito à comunicação entre eles, propõe uma discussão aparentemente contraditória que perpassará todo o livro: a limitação das palavras em algumas situações e sua utilização ilimitada em outras.
A partir dessa perspectiva é possível encontrar nos contos “Balas”, “Violentada” e “Espiral” o mesmo intuito de explicitar o limite das palavras. O conto “Balas” se dedica a uma pesquisa de linguagem através do narrador-personagem, um ex-detento que vende balas em semáforos e que tenta exprimir suas experiências, percepções e sensações por meio de seus modos linguísticos particulares. “Violentada” e “Espiral” exploram situações nas quais as palavras perdem seu valor, pois o que está em jogo desmobiliza qualquer possibilidade de expressão e torna-se, portanto, indescritível. O que mais interessa nesses contos é ultrapassarem seu ponto de partida (a violência, o sexo) e alcançarem um cerne mais relevante: como comunicar o que se sente ou o que se vive quando tais coisas são impossíveis de serem exprimidas?
Por sua vez, os contos “O vendedor”, “O lugar de cada um”, “A lâmpada que nunca queima” e “A casa iluminada” lançam mão de algo muito próximo ao realismo-fantástico para criar situações que tangenciam o absurdo. As tramas se estendem ao limite da lógica para expor o falseamento que as palavras proporcionam, pois, se partem de eventos cotidianos, desdobram-se até o estranhamento, o irreal ao qual fomos levados sem nos darmos conta ou seduzidos pelas palavras, que guardam em si tantos significados a ponto mesmo de desfazerem a lógica da história que contam.
Em termos gerais, Réveillon e outros dias empreende uma busca acerca da palavra em suas facetas mais opostas, demonstrando seu esgotamento ao mesmo tempo em que testa ao máximo sua elasticidade e resistência. O resultado é a estreia madura e contundente do escritor Rafael Gallo, que nos sequestra a atenção com esse livro de contos cativante e envolvente, robusto e certeiro em sua execução, de tal forma que sequer percebemos.
::: Réveillon e outros dias :::
::: Rafael Gallo :::
::: Record, 2012, 160 páginas :::
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