Se a religião é uma tentativa palpiteira de explicação da morte, um materialista é aquele que não se convenceu.
Há uma forma óbvia de se ler o último livro de Christopher Hitchens (1949-2011), com seus escritos sobre o câncer que lhe tomou a vida: esperar apenas desgraça. Não aquela desgraça a la Michel Houellebecq, que, se descreve um quarto de casal com almofadas fofas, fatalmente deixará o quarto no mínimo em chamas duas páginas depois. Nem tampouco a desgraça coitadista, tão afeita à literatura e à “crítica social” feita no Brasil.
Trata-se apenas da desgraça que é o fim da existência. Se a religião é uma tentativa palpiteira de explicação da morte, um materialista é aquele que não se convenceu (tentando ou não). E a morte, a última situação-limite, imposta ao vivente e exigindo uma postura específica, é a origem do cisma entre religiosos e seculares – nicho no qual Hitchens ficou famoso.
O que vemos em suas Últimas palavras é justamente a postura de um escritor com suas velhas armas enfrentando o câncer, desde o diagnóstico até seus últimos dias de fraqueza. E suas armas incluem a ironia fina, um humor que debocha de autoridades formais puramente imaginárias, um olhar mordaz de observador detalhista da realidade e um certo desalento ante à franqueza de não encontrar muito sentido e justiça além da dureza concreta.
Hitchens não busca uma redenção, nem uma compaixão com seu antigo público. O livro já começa em tom de despedida, mas a despedida de um guerreiro na noite antes da batalha, com altivez e de armas em punho (inclusive as excelentes figuras de linguagem e pensamento para sua vida boêmia):
Não consigo me ver socando a testa, nem me ouvir gemendo que tudo é tão injusto: tenho provocado a ceifadora a brandir a foice na minha direção, e agora sucumbi a algo tão previsível e banal que entendia até mesmo a mim. A raiva está fora de questão pelo mesmo motivo. Em vez disso, sinto-me muito oprimido pela persistente sensação de desperdício. Eu realmente tinha planos para a minha próxima década, e achava que tinha dado duro o bastante para merecer.
Este é o dilema de um materialista que, de repente, foi jogado no reino da Tumorlândia, país onde Hitchens vive seus últimos meses. O câncer no esôfago, entre diversas coincidências que o velho Hitch não deixa de ver quase como um último ensejo para um velho satirista exercer seu ofício, cai como a mão de Deus para seus inimigos: o câncer é a doença democrática, aquela que acomete reis e mendigos com a mesma força – e o famoso ateu ser acometido por um tumor na região da garganta (mas não ela em si) soa como uma punição divina óbvia e auto-probatória da existência de um Deus vingativo e castigador para muitos cristãos que ainda tratam seus adversários num ritmo de Antigo Testamento.
Todavia, o material de Hitchens sempre foi a realidade factual, e é dela que ele parte para falar de sua própria doença. Todo o país da Tumorlândia é apresentado sem receios, e em sua aspereza e rudeza completas: desde as normas de conduta do país, onde alguém que acabou de te ver pela primeira vez pode enfiar uma agulha no seu braço poucos segundos depois, até os aspectos da complicada cordialidade perante a morte – como o léxico que exige que sempre se diga que se está “lutando contra” o câncer, o que nunca é dito no caso de alguém que sofre de falência renal. É um país em que até a pergunta “Como vai?” exige cuidado extremo, e uma mudança de significado que vai além do leve incômodo.
Mas o espírito satirista tipicamente inglês de Hitchens não o trai nem na hora da morte (e, afinal, por que estar à beira da morte deveria impedir alguém de manter uma postura que foi seu bastião de verdade durante uma vida?). Suas últimas discussões com religiosos são pinceladas, mas também situações hilárias de pessoas que, na Tumorlândia, acreditam que entendem exatamente do seu estado por terem conhecidos com câncer – aquela busca por uma simpatia forjada e desnecessariamente forçada que só aumenta a vergonha sem diminuir o sofrimento. E como evitá-las, sem um broche do tipo “Fale comigo apenas sobre câncer de esôfago, sem comparações com câncer estomacal”.
Nessas filigranas da cultura, nessas demonstrações dos valores e caráter das pessoas que se revelam no comportamento de cada um em uma fila de autógrafos, diante de uma notícia de jornal ou de crucifixos em hospitais, é que Hitchens demonstra suas qualidades e suas tiradas espirituosas (sem trocadilho).
Em todas essas questões, o polemista está sempre desenvolto em uma sólida tradição de literatura, com referências que vão do infernal Ambrose Bierce (fonte de 10 entre 10 dos grandes escritores de humor) a T. S. Eliot, com uma bela análise de alguns versos de sua “The love song of J. Alfred Prufrock” (escrita em versos livres ingleses com versificação francesa), passando, claro, pela Bíblia e o divino Platão, que também encarou a morte de Sócrates para criar um dos maiores livros de filosofia do Sistema Solar.
A mensagem final do livro, ou da vida de Christopher Hitchens, ainda parece ser essa: se há algo a se “religar”, unindo os homens, é antes uma cultura intangível, crescente e sempre em risco, não um conjunto de dogmas e tradições rígidas. Essas podem manter alguma cultura viva, mas também matar muitas outras, sem o devido questionamento. Já ler a poesia e a beleza deixada por religiosos de diversos matizes ou não é sempre uma coisa única – aquela coisa que dá sentido à existência que seria impossível sem essa cultura.
Contudo, este é um livro de despedida, de quem sabe estar no estágio 3 de uma doença mortal, sabendo que não existe um estágio 4. O velho clichê de Nietzsche (“o que não me mata me torna mais forte”) é também questionado pelo eterno cético: as sessões de quimioterapia tentam destruir seu alienígena interno sem torná-lo mais forte. Os detalhes do fim da vida no câncer são expostos: todas as dores, os incômodos, até os aspectos mais sutis, são apresentados a quem nunca pisou na Tumorlândia – como a ausência de pelos nasais com a quimioterapia, que deixa seu nariz escorrendo o tempo todo como o de uma criança. Mas até lá a cultura de Hitchens é sua verdadeira salvação – como sua verdadeira aula sobre como escrever bem aprendendo a falar bem, justamente quando finalmente está perdendo sua voz.
Se há algo de heroico e de busca por estoicismo na luta contra um alienígena “cego e destituído de emoções”, há também uma materialidade na morte inapelável, de péssimo gosto e simplesmente degradante – miserável e feia. Momentos até difíceis de serem lidos por quem já teve de passar perto desse abominável país. O grande escritor à beira da morte a trata como tentou viver sua vida: aproveitando cada circunstância e cada segundo de vida com o propósito de tirar algo dali. Sejam algumas doses de diatribes racionais entre Bertrand Russell e Voltaire, sejam análises da poesia de guerra de Wilfred Owen.
Hitchens despediu-se da vida, mas cuidou para que a despedida não fosse apenas um amontoado de palavras: tirou de sua dor algo que merece ser lido para engrandecer muitas vidas.
::: Últimas palavras :::
::: Christopher Hitchens (trad. Alexandre Martins) :::
::: Globo, 2012, 96 páginas :::
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