A vida dos filósofos

James Miller estuda a vida de filósofos como Platão e Diógenes, Santo Agostinho e Nietzsche.

“Vidas investigadas: de Sócrates a Nietzsche”, de James Miller

O problema da vida filosófica, apesar de ter acompanhado por muito tempo a filosofia, ainda não constituiu uma discussão merecedora de seu próprio espaço nos currículos e, geralmente, não é aceito de forma “natural” no meio acadêmico. A prática da vida filosófica não é objeto de investigação porque, segundo nos foi ensinado, fere o princípio da distância que o legítimo pesquisador deve manter em relação à obra e autor pesquisados. Portanto, o que interessa é o que foi produzido pelo autor, e não a possibilidade do filósofo se esforçar por “levar sua vida de acordo com um conjunto de crenças e preceitos deliberadamente escolhido, identificado em parte através da prática do autoexame e expresso através de palavras e de ações.” (p. 20) Sócrates e sua noção de autoexame nunca pareceram tão distantes de nós quanto agora.

O livro Vidas investigadas: de Sócrates a Nietzsche, do autor americano James Miller, procura resgatar essa discussão oferecendo ao leitor doze ensaios biográficos bem estruturados. Segundo o autor, a intenção de preencher essa “lacuna” surgiu a partir do seguinte questionamento:

Dadas a evidente força pragmática da ciência aplicada e a força igualmente da evidente das comunidades de fé em dar um sentido para a vida, por que deveríamos nos esforçar para elaborar “nossas próprias ponderações” em resposta a questões monumentais, como “O que posso saber?”, “O que devo fazer?” e “O que posso esperar?”. Dedicados a filósofos que vão de Sócrates a Nietzsche, os 12 esboços biográficos que se seguem têm como objetivo explorar essas questões a partir da redação de uma história, como sugeriu Foucault, “motivada pelo problema da vida filosófica”. (p.17)

E assim surgem as investidas de James Miller, autor com formação em história, sobre a vida dos filósofos.

Já nos primeiros ensaios, observamos que Miller não apela para descrições “fáceis”, mas nem por isso torna os relatos cansativos ao leitor. Nos ensaios dedicados a Sócrates e a Platão, por exemplo, ele associa a figura do pensador à figura do “mestre”, tornando assim possível com que entremos em contato com o ambiente no qual o discurso filosófico exercia grande fascínio sobre os indivíduos. Podemos imaginar, ao avançar o número de páginas, o quanto poderia ser atraente naqueles tempos o pensamento segundo o qual o homem é capaz de governar a si mesmo. Assim como podemos supor o apelo que a imagem de uma cidade governada por filósofos tinha.

Miller cruza as biografias dos autores a fim de encontrar respostas sobre a relação entre vida e obra. Contudo, as críticas levantadas a partir dessas contraposições não são genéricas, meramente provocativas, mas procuram demonstrar os pontos cruciais de cada posicionamento. Um exemplo é quando Miller, ao contrapor as opiniões de Epicuro e Aristóteles sobre o papel da filosofia, oferece referências substanciais para o leitor pensar com ou contra os autores. Acabamos nos indagando se deveríamos pensar de acordo com Epicuro, que defendia que a filosofia só poderia ter um objetivo adequado através de um único modo de vida, ou se deveríamos adotar a postura aristotélica, em que a condução de uma boa vida não tem como objetivo “alcançar a tranqüilidade, mas exercitar a razão ou intelecto, que era para ele o elemento divino presente no ser humano.” (p. 107) Constatamos através de um simples exercício em que somos expostos a duas opiniões claramente distintas que a reflexão é imprescindível para a filosofia, e o próprio autoexame sempre acompanhou essa reflexão.

Mas há mais a ser descoberto no livro. Como o autor mesmo coloca no início da obra, ele inclui tanto figuras canônicas, como outras que não são levadas tão a sério pelos seus contemporâneos. Por isso, não é de se estranhar o fato de que a figura de Diógenes, por exemplo, acaba destoando um pouco das demais.

Claro que essa descoberta a qual me refiro sempre vai depender do acúmulo de conhecimento por parte do leitor. Pode ser o caso de algumas pessoas simplesmente não encontrarem nada de “novo” na compilação de Miller, mas eu considero o resultado de seu trabalho satisfatório. No meu caso, eu que nunca dei a devida atenção aos autores que discutiram a teologia, acompanhei com especial atenção o relato da vida de Agostinho e fiquei instigada a pesquisar mais a respeito. Segue um trecho:

Foi, esse, portanto, o destino de Agostinho, cujas Confissões representam aquele que talvez seja o relato mais belo da mais elevada experiência do coração humano: desempenhar um papel de destaque nesse lamentável processo, ajudando a justificar uma disciplina espiritual monolítica que, por quase mil anos, asfixiou no Ocidente católico as formas mais antigas de vida filosófica – aquelas mesmas que tornaram possível a odisseia espiritual do próprio Agostinho. (p.165)

Por fim, gostaria de ressaltar mais duas características interessantes do livro. A primeira: ele é simplesmente “completo” no quesito referências. Eu o indicaria sem medo, pois cada ensaio fornece, ao final do livro, as referências mais relevantes, essenciais a quem se interessa por detalhes biográficos ou pela pesquisa junto à obra original. Por exemplo, no caso de Descartes, o autor indica se a passagem ao qual ele se refere se encontra em Regras para a direção do espírito, nas Meditações metafísicas ou no Discurso do método.

A segunda é que seus ensaios podem ser lidos isoladamente, não importando a ordem. A contextualização que o autor oferece é suficientemente clara para o leitor não ficar perdido. Por outro lado, aquele que segue a ordem dos ensaios e é um pouco mais familiarizado com a história da filosofia pode sair com a impressão de que falta algo; talvez inserir na série a biografia de mais alguns clássicos, como Hume, não fosse nada mal….

Certamente eu recomendaria o livro, especialmente como um possível ponto de partida a alguém que está começando a se interessar por filosofia.

::: Vidas investigadas :::
::: James Miller (trad. Hugo Langone) :::
::: Rocco, 2012, 384 páginas :::
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  • Alexandre

    Parabéns pela resenha!!

  • Fábio Lima

    Ótima resenha!