Para Biajoni, o mundo não gira ao redor de dinheiro ou de poder; todas as ações dos indivíduos estão vinculadas ao sexo
Se existe maneira simplista de definir a pós-modernidade, seria a era em que imaginamos ter todas as respostas – e esquecemos quais são as perguntas. Uma das mais antigas indagações que preferimos não pensar é o conceito próprio de literatura. O que ela seria? Um livro? Uma história? Uma ficção? O que nos faz ler a imaginação elaborada por outra pessoa? Todas as definições são limitadoras, escorregando da mente assim que tentamos subjugá-las no papel. Desta maneira, preferimos pensar que sabemos o que é literatura – até ler algo capaz de balançar as nossas convicções e rever conceitos que se julgavam inquestionáveis. Talvez o grande segredo da literatura seja justamente a capacidade de nos espantar em cada esquina, através do virar das páginas, morrendo na última linha de um capítulo e ressuscitando na primeira do outro, como uma fênix inquieta.
Ao final da leitura de A comédia mundana, de Luiz Biajoni, estive na invulgar sensação de não saber direito o que tinha lido. Sim, possui o formato de um livro, com capa, contracapa, orelhas, páginas e segmentos bem divididos. Também possui uma trama e um narrador, que controla a história através de personagens claramente delineados. Possui conflitos e certezas, possui misérias e asperezas, assim como momentos de inesperada redenção. No entanto, não é a minha ideia de literatura e, mesmo assim, não consegui parar de ler ou desgrudar do livro. Apesar das 479 páginas, que passaram tão velozmente que nem cheguei a ver os números, terminei a leitura com gosto de que ficou faltando mais. Como explicar tamanho fascínio?
O primeiro passo é admitir que Luiz Biajoni é um grande mentiroso, e isto é um elogio. Um dos maiores méritos do verdadeiro escritor é a capacidade de “devorar” a obra dos seus escritores favoritos e colocá-las dentro do próprio texto, naquele movimento que Harold Bloom chama de “angústia da influência”, em que o autor pretende “matar” a criação original de onde nasceu a sua vontade de escrever. Biajoni vai além: é antropofágico, na melhor forma do apregoado por Oswald de Andrade. Ele “devora” as suas influências e as regurgita no texto, mas com tanta destreza que transforma em estilo pessoal. Outra das características da literatura contemporânea são autores que escancaram as suas influências e o texto de onde a sua obra foi inspirada, quase como se estivessem exibindo sua cultura literária para os leitores, em uma atitude blasé. Luiz Biajoni faz o contrário: ele esconde as suas admirações literárias atrás de uma prosa que soa desleixada e rápida em uma primeira vista, mas que é de extrema complexidade quando analisada a fundo.
Neste sentido, A comédia mundana tem muitos elementos clássicos. A começar pela referência quase descarada à Comédia humana de Balzac no seu título. Conhecendo um pouco de história da literatura, sabemos que Balzac se inspirou na Divina comédia de Dante Alighieri, dividida em três partes (Inferno, Purgatório e Paraíso), as quais, não por coincidência, também formam a linha de três novelas incluídas no livro de Luiz Biajoni.
Mergulhando mais em Balzac, vemos outra característica do livro: as três novelas policiais estão interligadas pelo mesmo conjunto de personagens. O personagem que aparece em uma novela de forma acessória vira o principal da outra; o tempo da trama acelera na terceira novela, quando alguns anos passam em relação à primeira, mas os conflitos ainda ecoam. Quando escreveu A comédia humana, a intenção do escritor francês era fazer um grande painel da sociedade da sua época e, assim, o tempo da narrativa é fluido, e personagens surgem em diferentes contextos ou mudando a concepção da forma com que foram inicialmente abordados. Cada personagem vira um prisma na tentativa de capturar o humano, e Biajoni faz o mesmo movimento. Às vezes dentro de uma novela, como Virgínia, personagem principal da primeira narrativa, que inicia cândida e se torna uma mulher prática e de interesses materiais; às vezes no conjunto, como Assis, o repórter, que passa pelas três tramas e representa um ponto de solidez, um rochedo para o qual todas as histórias convergem e se afastam.
Outro ponto interessante são as vozes dos personagens. As três novelas são calcadas no uso do diálogo que, às vezes, também representa um monólogo, quando o interlocutor silencia nas suas respostas. Ao analisar a obra de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin tratou da polifonia, ou seja, a capacidade que o escritor russo tinha de dar vozes inconfundíveis para cada personagem e destacá-los uns dos outros. Biajoni também faz isto, mas é uma polifonia moderna, adequada a estes tempos em que o som é primordial e as vozes se tornaram quase indistintas depois de serem mastigadas por anos de clichês e de discursos pasteurizados. Os personagens estão o tempo todo falando, e a ação acontece nos poucos intervalos em que eles silenciam. É possível dizer que, mais do que possuir diálogos, as três novelas não existiriam sem eles, algo que soa extremamente verídico na sociedade discursiva em que vivemos, onde tudo se traduz em som e, não raro, também em fúria. Os conflitos estão relacionados à fala, e manter tamanha dissonância sonora no meio de uma cidade sem que cada personagem perca a sua essência é outro grande mérito do livro.
Seria muito cômodo comparar o estilo rasgado e cru de Luiz Biajoni ao de escritores especializados em temas urbanos, como Rubem Fonseca. A comédia mundana é um livro extremamente sexual. Rara é a página que não possui algum tipo de referência a sexo e, por um fenômeno associativo, mesmo quando o autor não está falando diretamente sobre ele, o assunto permanece nas entrelinhas. A começar pelos títulos das “três novelas policiais sacanas” anunciadas desde a capa: “Sexo anal – uma novela marrom”, “Buceta – uma novela cor-de-rosa” e “Boquete – uma novela vermelha”. Os títulos anunciam o enfoque sexual da novela respectiva, mostrando as diferentes funções que o sexo pode ter. Na primeira novela, o sexo anal revela múltiplas formas, que vão desde o prazer até a humilhação. Na segunda, o órgão sexual feminino é representativo do conflito maior, em que mulheres agem como se tivessem pênis e homens cobiçam possuir vaginas. Na terceira, a felação encontra-se ligada à palavra e ao desejo de se alimentar dos sentimentos alheios.
É necessária uma extrema habilidade para tratar de sexo sem descambar para o pornográfico ou sem que ele seja gratuito, como faziam Henry Miller e Anais Nin. Tratar de sexo como algo natural da vida e como um elemento que une e afasta os homens é demonstrar uma verdade universal. Para Biajoni, o mundo não gira ao redor de dinheiro ou de poder; todas as ações dos indivíduos estão vinculadas ao sexo, ele é a força motriz do progresso e da decadência humana. Ele é a tragédia e a comédia da condição de ser alguém.
Como quase tudo que envolve sexo na literatura, ele acaba se resolvendo em violência e instabilidade. No entanto, em alguns momentos o sexo selvagem e intenso cede lugar para o romantismo quase ingênuo, o que subverte a ordem das narrativas convencionais, nas quais o enlace de dois corpos é a última parte do envolvimento amoroso. Por trás de todo o verniz civilizatório das pessoas, existem criaturas pouco diferentes de animais, que copulam, matam e morrem com a mesma indiferença. No entanto, em um rasgo de esperança, o sentimento pode surgir a qualquer momento, seja a amizade, o respeito, o carinho e até o amor.
Um leitor incauto poderia folhear o livro e imaginar que ele seja uma obra pornográfica, violenta ou superficial. São adjetivos que demonstram o desconforto com a narrativa apresentada. Para a pessoa que realmente se deter na leitura, uma excelente surpresa espera: a entrega absoluta e incondicional para os desígnios narrativos de um autor muito habilidoso. A comédia mundana é um livro feito para ser lido do início ao final. Não existem jogos intelectuais ou brincadeiras insossas com o formato; é só o velho e bom papai-e-mamãe literário, uma história que se consome nos próprios meandros e que o leitor vive cada linha como se estivesse assistindo a um ótimo filme. E não será esta a melhor parte da literatura, viver a vida do outro como se fosse a nossa própria?
::: A comédia mundana :::
::: Luiz Biajoni :::
::: Língua Geral, 2013, 480 páginas :::
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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