Realidade e ficção

por Marcelo Ribeiro (22/11/2013)

Em "Capitão Phillips", nem a verdade dos fatos da realidade está dada, nem as imagens destinam-se apenas a representá-los

Capitão Phillips (2013) narra o sequestro de Richard Phillips, o comandante do Maersk Alabama, na costa da Somália, por piratas que conseguiram invadir, pela primeira vez desde o século XIX, um navio mercante de bandeira estadunidense e, depois de uma reviravolta, levaram Phillips como refém em um pequeno barco salva-vidas, em meados de 2009. O filme de Paul Greengrass, que tem Tom Hanks no papel de Phillips, é baseado no livro autobiográfico que o verdadeiro Richard Phillips escreveu com Stephan Talty, A Captain’s Duty: Somali Pirates, Navy SEALs, and Dangerous Days at Sea, publicado em 2010.

Diante de um filme que pretende representar acontecimentos reais, é comum se perguntar o que é verdade e o que é mentira, como se bastasse estabelecer uma lista de verificação em que imagens e realidade são contrapostas, e suas eventuais divergências, identificadas. Procedimento comum na crítica de cinema, sobretudo no momento atual, em que essa atividade se converte, cada vez mais, em uma das formas do fast food, essa pergunta não deveria encerrar as possibilidades de interpretação e de análise de nenhum filme, menos ainda de Capitão Phillips.

Além de pressupor, de modo equivocado, que a realidade está dada antes de sua representação sob a forma de imagens e que as imagens são, exclusivamente, representações, a pergunta sobre a verdade no cinema conduz ao esquecimento de uma das verdades do cinema: a força expressiva das imagens cinematográficas tende a tornar irrelevante sua adequação ou inadequação a uma suposta realidade. É preciso interrogar quais são os efeitos das imagens cinematográficas, seja qual for seu valor de verdade em relação à suposta realidade do mundo, pois o cinema é capaz de criar mundo, de fabricar parte da estrutura fantasiosa que sustenta toda realidade, autorizando determinados modos de ver e interditando ou contendo o alcance de outros. No caso do filme de Greengrass, o cinema delimita um modo de ver a realidade da pirataria na costa da Somália, com base na narrativa de Phillips, no recurso a convenções de gênero do melodrama e, sobretudo, de filmes de ação e de guerra.

Em Capitão Phillips, efetivamente, nem a verdade dos fatos da realidade está dada, nem as imagens destinam-se apenas a representá-los. Há mais de uma versão da tripulação sobre o que de fato aconteceu e sobre os sentidos dos acontecimentos. Há ainda a versão do antagonista de Phillips no filme, Abduwali Abdukhadir Muse, que um documentário em produção, intitulado The Smiling Pirate, de Kaizer Matsumunyane, pretende reconstituir, e que não foi utilizada no filme, devido à recusa de participação do somaliano, condenado por pirataria e preso nos Estados Unidos.

A tentativa de encenar (mesmo que parcialmente) o ponto de vista dos somalianos confere ao filme de Greengrass uma aparência de complexidade. É como se o diretor buscasse representar os dois lados – o branco e o negro, seria preciso dizer, para chamar a atenção para a identificação racial que estrutura a trama como uma oposição entre sujeitos de fenótipos diferentes – desde o início: primeiro, vemos Phillips em seu cotidiano familiar em Vermont, despedindo-se de sua mulher, com quem conversa sobre a vida, sobre a situação atual do mundo, sobre os filhos, e partindo para o trabalho no navio mercante Maersk Alabama, que deve ser conduzido de Omã ao Quênia, passando pela região do chifre da África; em seguida, vemos uma vila na Somália, na qual, sob as ordens de Hufan, seu chefe, Muse – interpretado pelo surpreendente Barkhad Abdi, em sua primeira experiência como ator – escolhe os homens que levará consigo para o ataque. Dessa forma, protagonista e antagonista são inseridos em uma estrutura de simetria, que é apenas aparente, pois a representação de seus contextos locais depende da moldura que os torna visíveis e audíveis, como imagem, a qual é fundamentalmente assimétrica: é preciso lembrar que o filme é baseado no livro de Phillips e que Muse se recusou a dar informações e a participar da produção.

Além da falsa simetria, a estrutura narrativa de Capitão Phillips introduz elementos de crítica da representação dos piratas, de forma simplista, como vilões desumanos cujas ações não poderiam ser explicadas senão pela ideia de mal e pela atribuição de irracionalidade a seu comportamento (há, aliás, um elemento que explica as oscilações das decisões e do humor dos piratas: o uso constante de khat, planta de efeitos estimulantes similares aos da anfetamina). Com efeito, quando Muse argumenta para Phillips que a pirataria foi causada, em parte, por navios de pesca na costa da Somália, cuja atuação retirou as condições de vida de pescadores como ele e os conduziu a atacar navios estrangeiros para obter dinheiro; ou quando o protagonista e o antagonista identificam-se como subordinados de chefes, cujas ordens têm que seguir, independentemente de suas vontades, o que os converte em vítimas de interesses e forças maiores; ou quando os diálogos sugerem críticas ao humanitarismo, que se manifesta pelo envio de alimentos para países africanos (parte da carga do navio) e que é desprezado, ironicamente, pelos piratas, como uma doação hipócrita – nesses e em outros momentos, Capitão Phillips atribui a ação dos piratas a problemas que ultrapassam o contexto específico do episódio relatado e transbordam o local em que se inscrevem os acontecimentos.

A esses problemas, o diretor Paul Greengrass dá o nome “globalização”. Nesse caso, o termo refere-se sobretudo aos fluxos econômicos de comércio e de capitais, que impõem a Phillips e a Muse a necessidade de tentarem realizar objetivos que se revelam opostos: ao primeiro, cabe levar o navio mercante e sua carga de um porto ao outro; ao segundo, cabe realizar o sequestro, em primeiro lugar, do navio, e depois do próprio Phillips, como forma de obter dinheiro de resgate.

A inscrição do episódio narrado e das vidas de seus personagens no contexto da “globalização” reproduz, no plano do conteúdo da narrativa e, sobretudo, no dos diálogos, a impressão de realidade que o estilo de Greengrass confere ao filme. A câmera treme e não parece capaz de se fixar em parte alguma, conferindo aos planos – cuja duração média é reduzida e cujo ritmo de sucessão na tela é, portanto, intenso – um enquadramento oscilante e incerto, que se traduz em insegurança e em tensão para o espectador. A montagem rápida pretende apagar quaisquer vazios que permitam que o espectador se distancie das imagens e reflita sobre sua condição, além de impedir a emergência de descontinuidades que perturbem o fechamento narrativo. O desenho de som, como se fosse som direto (apesar do evidente processo de edição que, sem dúvida, molda cada um dos ruídos do filme), confere às imagens o realismo de que necessitam para impor seu ritmo intenso, em consonância com a música que demarca as tensões e as distensões da perseguição em alto mar, dos instantes de ameaça à vida de algumas das personagens brancas (sobretudo de Phillips) e dos momentos de expectativa em relação à iminente intervenção militar que conduz ao desfecho do conflito dramático.

A intervenção dos SEALs, a força de operações especiais da Marinha dos EUA, desenrola-se no trecho final do filme, que inclui o ápice do conflito dramático e a consequente distensão que põe termo ao sequestro de Phillips, a qual coincide com a execução dos três piratas negros no barco salva-vidas e com a prisão de Muse, levado pouco antes pelos militares sob falsos pretextos de negociação. A tecnologia de guerra empregada pelos EUA na intervenção se oferece aos espectadores como um espetáculo em si: os navios de guerra em que a operação de intervenção é orquestrada, por meio de rádios, computadores e inúmeros monitores que apresentam imagens ao vivo, dados e históricos baseados em arquivos de inteligência militar e extensivos recursos de comunicação; a visão aérea dos drones e sua sedução, similar à de jogos eletrônicos; os aviões e helicópteros que conduzem os soldados ao local da intervenção; os equipamentos e as armas de última geração que utilizam para saltar de pára-quedas e para a abordagem furtiva e eficiente dos piratas; a escuta na lateral do barco salva-vidas, que permitirá aos militares acompanhar as conversas dos piratas entre si e com Phillips, suas ameaças e suas decisões e indecisões.

Quando Phillips arrisca-se para escrever um bilhete para sua família e quando grita para os SEALs e para suas câmeras que ama sua mulher e seus filhos, enquanto permanece sob a ameaçadora mira das armas precárias dos piratas, o espetáculo da tecnologia de guerra e a célula melodramática articulam-se com a inscrição racial do antagonismo para dar a Capitão Phillips seu desfecho heróico e sua conclusão nacionalista estadunidense. No espetáculo de suas imagens, afinal, não resta espaço algum para outros modos de ver, não há tempo algum para a diferença.

Marcelo Ribeiro

Professor e pesquisador nas áreas de estudos cinematográficos, antropologia e cultura visual. Atualmente, é estudante de doutorado em Arte e Cultura Visual na Universidade Federal de Goiás, onde desenvolve pesquisa sobre as dimensões políticas dos aparelhos fotográfico e cinematográfico.

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