"Noites de Alface", de Vanessa Barbara, trata o luto com humor sutil
A um escritor, imagine que, em dado momento, nasça uma planta num canto de si. Imagine que ele de fato não saiba que planta é essa – uma petúnia?, uma espécie de hortaliça? – e se motive a regá-la, em todo o caso, acreditando que possa ter um futuro artístico, que possa se tornar algo vistoso com o qual se apegue e essa intimidade dure por um longo tempo.
Então, para contentamento do escritor, a planta regiamente cresce e, agora bela e intensa, precisa de um vaso. O vaso passa também a fazer parte do escritor. Assim como as ferramentas, os planos e a motivação necessária para que a planta conserve o viço. O escritor, portanto, constrói uma casa para tudo a que está acoplado e, doando-se sem medida, as intervenções para o bem-estar da planta vão se transformando em marcações de tempo e os objetos adquirindo propriedade. Gradativamente, a casa passa a ser um relicário de memórias, onde tudo que se refere à planta fica contido no cômodo mais seguro, um puzzle completo que é a maneira mais simples (e leal) de se lidar com o que é mais estimado.
Acontece que o escritor sabe que a planta não reinará para sempre, pois a ele mesmo cabe a finitude. Mesmo diante da grandeza, do período em que esteve enredado na cultura, a planta concluirá o seu ciclo. O escritor fica aturdido, acha que é o pior que possa ocorrer. No entanto, um momento adiante ao impacto da perda, ele perceberá que são as ações comezinhas relacionadas à manutenção da planta que deixarão lacunas duradouras por não mais constarem, justamente aquelas ignoradas constantemente ou afastadas em nome do que se chama viver.
Otto e Ada são casados há cinco décadas e compartilham cada detalhe de suas vidas. Conservam, de bom grado, uma rotina simples e voluntária: montam quebra-cabeças, jogam pingue-pongue nos fins de semana, saboreiam “a receita perfeita” de couve-flor à milanesa, assistem a documentários sobre o reino animal, dividem afazeres domésticos e o cuidado com as flores; tudo o que está encerrado dentro ou nos arredores da casa amarela que escolheram para viver sem filho e animal de estimação. Outro exercício cotidiano é a convivência com os vizinhos, os poucos residentes de um vilarejo onde as resoluções de problemas coletivos cabem às reuniões da vizinhança. Na verdade, essa tarefa é de uso exclusivo da diligente e carismática Ada. Otto faz o tipo antissocial, rabugento, que reserva monossílabos para situações em que é inevitável interagir com o mundo exterior. A esposa cumpre as formalidades, recebe as entregas, intermedeia suas relações com aqueles que estão além do jardim. Até que subitamente Ada morre e, desvalido de escudo, Otto se percebe num plano insular, tendo de reassumir a gerência da casa e o trato com as intervenções externas, ambos unicamente pelo fato de seguir vivo.
O desdobrar do luto desse personagem deslocado de seu autoexílio é o ponto de partida de Noites de alface, romance recente da paulista Vanessa Barbara. Valendo-se de uma prosa agradável, recheada de um humor sutil que flerta eventualmente com o nonsense, a jornalista e cronista da Folha de S. Paulo cria um microcosmo coabitado por um homem que, abarcado pela perda, resolve assumir uma rotina vazia embrulhado numa manta xadrez, e uma vizinhança excêntrica que insiste em mostrar para ele o quanto são finas e transponíveis as paredes de seu refúgio.
Dessa seara fazem parte Nico, um jovem farmacêutico viciado em bulas de remédios e seus efeitos colaterais, cujo sonho é superar a nado o estreito de Dover; Iolanda, uma velha esotérica, preocupada com o carma ruim; Aníbal, um carteiro atrapalhado que gosta de entoar cantigas pelas ruas; Sr. Taniguchi, um ex-combatente da Segunda Guerra diagnosticado com Alzheimer; Mariana, uma antropóloga fascinada por esquimós; e outras figuras que vão se revelando de forma paulatina. O enredo que, à primeira vista, traz características da chamada narrativa coral, onde cada capítulo é reservado a um personagem (inclusive a três cães temperamentais), de fato ganha tônus na engenharia das bonecas russas. Sendo forçado a tratar com interlocutores tão distintos, é como se Otto vestisse partes específicas dessas personalidades, remontando-se erraticamente para acessar um mundo polifônico.
Suas interações, todavia, decorrem de soluções para situações elementares – o recebimento dos remédios, alguém que passe a roupa como a esposa o fazia, a troca da lâmpada que a ciática não mais permite -, visto que sua verdadeira motivação está em revisitar a memória, o emaranhando de coordenadas de uma história pregressa que só pode ser decifrado dentro da casa. Ada vive, para Otto, na visão do quintal descuidado, no bule que guarda a temperatura do chá de alface para a insônia, na passagem do amolador de tesourinhas ao curso da rua. Vanessa Barbara estrutura o romance no que há de mais prosaico, uma espécie de ode ao corriqueiro, às arestas comezinhas que sustentam o maciço sumariamente chamado de vida de verdade. E, desta forma, aproxima sua literatura a do uruguaio Felisberto Hernández, no que tange propor ao leitor uma visão que o desloque das circunstâncias ordinárias e lhe dê acesso a outra ordenação dos seres e das coisas. Como acontece nos contos do autor do estupendo O cavalo perdido e outras histórias, há, em Noites de alface, um engenhoso propósito de atribuir a algo inanimado a capacidade de acolher ou de refletir emoção.
Outro mérito da autora é enredar o leitor em parágrafos pontuados por elementos sensoriais. Aquém das fronteiras da casa amarela, surgem trechos que apelam para a cultura particular dos anos oitenta, uma maneira eficiente de acionar de imediato um encadeamento de lembranças em quem viveu, sobretudo durante a infância, a década. Na reconstrução dos dias de Otto e Ada, o estopim das sensações é, em grande parte, aceso num plano em que o impedimento ocasionado pela ausência da esposa desperta a atenção para registros que tentam contornar, mesmo que brevemente, a solidão, para que ele consiga se ocupar com distrações que afastem as atividades desfalcadas pela morte. Ao recorrer a efeitos sinestésicos, o romance encontra uma atmosfera que rege obras bem sucedidas de duas escritoras contemporâneas: Rua da padaria, de Bruna Beber, e Minúsculos assassinatos e alguns copos de leite, de Fal Azevedo.
Manta nos joelhos, Otto sentiu o ímpeto de ir à cozinha preparar uma boa couve-flor, mas achou que era cedo demais. Continuou na mesma posição, piscando vagarosamente os olhos. Por meio de pistas sonoras, aromáticas e visuais (liquidificador, Baratil, cão bravo), brincava de adivinhar as histórias dos vizinhos.
É mirando no seguimento de duas dessas pistas que, no terço final do livro, o enredo dá uma guinada, ganhando um inesperado verniz detetivesco. À medida que se relaciona com o mundo fora do seu refúgio, Otto suspeita, por meio de conversas entreouvidas, de algumas reações estranhas, que a vizinhança esconde algo dele, um segredo que parece também envolver Ada. A rememoração de um fato difuso e a presença eventual de uma figura na medida da sua janela contribuem para incorporar ao velho viúvo nuances do Poirot, de Agatha Christie, sempre às voltas com um mistério ligado a um círculo de personagens. A sorte é que, com um romance até então bem construído, a semelhança concreta entre os “investigadores” é apenas a rabugice.
Otto é uma planta que viceja por conta de um cuidado especial da autora, munida claramente de recordações e referências particulares. Vanessa Barbara trabalha com eficiência o que há de mais simples, o encadeamento de ações triviais que dá forma a esses intervalos de tempo chamados de dia, o acúmulo desses dias chamado frugalmente de rotina.
::: Noites de alface :::
::: Vanessa Barbara :::
::: Alfaguara Brasil, 2013, 168 páginas :::
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
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