Um romance necessário

Samir Machado de Machado é um roteirista de talento, e seu romance mescla aventura e horror com muita criatividade.


"Quatro soldados", de Samir Machado de Machado

“Quatro soldados”, de Samir Machado de Machado

Oito anos e meio. Foi o tempo que Samir Machado de Machado levou para desenvolver o romance Quatro soldados, lançado há pouco pela Não Editora. A ideia é ousada e incomum para o romance brasileiro, tão avesso a tentativas de voltar os olhos para a própria história: reconstruir os meados nebulosos do século XVIII, época em que as fronteiras do Brasil ainda estavam em grande parte diluídas em inflamados embates políticos e sociais. Samir lança seu olhar para o nosso extremo sul, em particular os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

É lá onde estão os quatro soldados do título. Como as fronteiras do país ainda em formação, também eles desconhecem seu lugar. O Brasil daquela época possui lampejos muito primitivos de uma identidade nacional – está há muitas décadas do utópico 7 de setembro de 1822 – e por ele transitam portugueses, espanhóis, indígenas e toda sorte de desterrados. Licurgo, Antônio Coluna, Andaluz e o quarto soldado, que permanecerá inominado para o bem do leitor, são, como o Brasil, indivíduos ainda sem destino definido que buscam sua posição no mundo, cada um à sua maneira. Mas, diferente dos romances tipicamente pós-modernos, em que a falta de sentido e a autorreflexão correm o risco de produzir narrativas já bastante saturadas e enfadonhas, Samir utiliza as motivações internas de seus personagens para dar ao Brasil do século XXI uma narrativa de aventura que logo no primeiro capítulo remete aos romances clássicos de capa e espada de Alexandre Dumas. E mescla sua boa literatura com a cultura de massa, assumida desde a orelha do livro em que não nega a influência de Uncharted, série de games de aventura ainda recente, mas já clássica.

Na primeira parte, “Mas para trazer a espada”, conhecemos Licurgo, um alferes de apenas dezesseis anos do Regimento de Dragões de Rio Pardo. Ele parte em missão para o entreposto espanhol Calavera Gris, fortaleza monolítica rodeada por um labirinto de sebes que oculta horrores inauditos. Seja por tolice ou bravura, todo aquele que tenta desvendar o mistério do entreposto aparece às margens do rio com a caixa torácica aberta e os pulmões arrancados. E aí Quatro soldados se torna um page turner dos bons, mistério atrás de mistério conduzindo o leitor como um veículo capaz de canalizar o sonho reprimido de homens e mulheres de diferentes gerações em se lançar à aventura e ao desconhecido. O primeiro capítulo possui ainda outro personagem central, Antônio Coluna, um melancólico capitão endurecido pela vida. É dele a terceira parte do livro.

Na segunda encontramos novamente Licurgo, dessa vez em Laguna e proximidades. Encontra Andaluz, um desertor mulherengo que ganha a vida com atividades ilícitas. Uma delas é o contrabando de livros, atividade irônica quando se fala da relação historicamente difícil entre Brasil e leitura. Andaluz irá ajudar Licurgo a encontrar os escravos foragidos em uma mina de ouro, a mando de um coronel de índole duvidosa. Como boa aventura que é, Quatro soldados não facilita para seus protagonistas, e a má sorte dos heróis é a nossa sorte.

E nesse mesmo ritmo seguem o terceiro e o quatro capítulo, mesclas hábeis de aventura, horror e muita criatividade. Samir é um roteirista de talento. A construção dos personagens não mente o esmero que o autor teve ao trabalhá-los, concedendo-lhes características que perambulam entre o fantástico e o insólito: um deles enxerga no escuro como se fosse dia, e em ambientes iluminados é obrigado a usar uma venda que não o impede de se locomover normalmente; outro tem o coração ao lado direito do peito. Labirintos, feras do imaginário brasileiro, batalhas sob a neve, experimentos científicos pouco ortodoxos e expedições fadadas ao fracasso: há em Quatro soldados uma lista de eventos extraordinários em suas mais de trezentas páginas. Cada uma de suas quatro partes daria um livro à parte – ou poderiam ser desenvolvidas como um todo até se tornar um calhamaço de oitocentas páginas ou mais de mil. Quem sabe até mesmo um romance seriado. Mas encerra-se após pouco mais de trezentas páginas, deixando a sensação perene de uma leitura prazerosa e honesta.

Ao fim, cabe ao leitor unir as pontas soltas do romance, que confia em seu intelecto para desenhar o seu desfecho. No outro extremo, em sua epígrafe, Quatro soldados traz uma citação de Mason & Dixon, de Thomas Pynchon: “Como essas mentes frágeis hão de poder julgar? Ai, cada leitor de romances deve ser considerado uma alma em perigo, pois que fez um acordo com o Demo, desperdiçando seu tempo precioso em troca duma excitação mental das mais mesquinhas e ordinárias”.

Pode até ser que para alguns indivíduos do século XVIII a leitura fosse uma excitação mental mesquinha e ordinária, coisa do Demo, como diz Pynchon. Mas em 2013 a literatura é, também, uma excitação mental que não pode prescindir de sua função enquanto entretenimento. Nesse sentido Samir Machado de Machado é mais do que bem sucedido: Quatro soldados serve ao homem contemporâneo, aquele da vida sem aventuras, da mesma maneira que alguns games e filmes do gênero. O deslocamento dos personagens e suas vidas desprovidas de sentido no distante século XVIII fazem deles encarnações literárias dos homens e mulheres infelizes de nosso tempo. Mas o autor oferece a eles – e a nós – a possibilidade de vivenciar, ainda que momentaneamente, uma forma de sublimação que é a cura para a monotonia e a falta de excitação mental – essa sim, capaz de fazer de qualquer um uma alma em perigo.

::: Quatro soldados :::
::: Samir Machado de Machado :::
::: Não Editora, 2013, 320 páginas :::

Amálgama




Douglas Marques

Curitibano, graduando em Psicologia, leitor assíduo e escritor nas horas vagas.


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