Réplicas distorcidas
Em "Reprodução", Bernardo Carvalho nos entrega uma obra desinteressada em apresentar um sentido último para seus procedimentos.
Um dos autores mais consistentes da atualidade, Bernardo Carvalho passou quatro anos sem lançar um novo livro. Depois de um livro bastante desigual e, a meu ver, decepcionante (O sol se põe em São Paulo), e outro criado para a coleção “Amores Expressos”, de boa qualidade, mas distante dos melhores momentos de sua ficção (O filho da mãe), havia uma razoável expectativa sobre o novo livro, anunciado na quarta capa como “um olhar irônico sobre os tempos atuais” – chamada que lembra bastante as quartas-capas de livros dos anos 60 e 70. Apesar de alguns pesares, trata-se de seu melhor livro desde Mongólia.
Nos anos 2000, a obra de Carvalho passou a um modelo menos intrincado, deslocando a instabilidade ficcional para o plano mais imediato da narrativa. Se isso representou, à primeira vista, uma simplificação dos enredos e o abandono das dificuldades interpostas ao leitor sobre a construção do sentido dos romances, na prática tornou sua escrita mais enxuta e autoconsciente, capaz de transitar entre variados registros sem se deixar contaminar por eles – aspecto mais bem exemplificado por Nove noites. É esse aprendizado o que mais persiste em Reprodução na comparação com seus últimos livros; nos outros sentidos, o livro parece efetuar um retorno muito bem-vindo ao estilo e aos temas que marcaram o melhor de sua produção nos anos 90, em especial o subestimado Teatro.
Construído por monólogos enormes, o livro apresenta um personagem bastante sui generis. Embora Carvalho e o marketing sobre o romance digam que se trata de um típico “comentarista de blogs e portais”, é forçoso reconhecer que há diferenças muito grandes entre o estudante de chinês de Reprodução e a maioria dos, por assim dizer, seres que frequentam as caixas de comentários na internet brasileira. O estudante parece muito mais ciente de que suas ideias são vistas como anormais e não aposta tanto no senso comum quanto o comentarista típico. Além disso, parece mais inteligente do que a média, é capaz de articular discursos (ainda que profundamente paranoicos e desconectados da realidade). O que personagem e realidade têm em comum é certa insensibilidade para com os oprimidos e seu tom de “pronto, falei”, escondendo o desejo de autoritarismo combinado com uma terrível sensação de inferioridade em relação aos chineses. Enfim, um personagem mais complexo do que a propaganda do livro faz parecer.
Falando em paranoia, distúrbio recorrente nos livros de Carvalho, o livro mimetiza em sua segunda parte a sensação desconfortável que o personagem tem, ao nos apresentar uma fala truncada e entreouvida sobre eventos que não ficam totalmente claros ao final do romance. Nesse tipo de construção monologada, alguns defeitos inerentes acabam se destacando (especialmente a repetição, pelo personagem, do que acabou de ouvir, deixando a impressão de “voice over” excessivo sobre a narrativa), mas, no todo, a estranheza do personagem fornece ao romance a força necessária para ser mais do que apenas um mero “olhar irônico”.
Reprodução merece ser lido mais por sua forma do que por sua posição política, construída por uma espécie de contraponto intrínseco à fala do estudante de chinês. A confusão na qual este acaba inadvertidamente se metendo acaba também servindo como fator narrativo para a deslegitimação de seu discurso, assim como o desfecho da obra. À semelhança de seus primeiros livros, Carvalho nos entrega uma obra desinteressada em apresentar um sentido último para seus procedimentos, deixando ao leitor a tarefa de, relacionando-se com eles, interpretá-los e reposicioná-los de acordo com uma estratégia de leitura construída individualmente. Por isso não é inesperado que muitos rejeitem o livro, pois nem todos estão dispostos a embarcar no mundo paralelo do estudante de chinês para tentar colher alguma recompensa dessa imersão. Nesse sentido, a “reprodução” da realidade operada pelo autor foi bem acurada.
::: Reprodução :::
::: Bernardo Carvalho :::
::: Companhia das Letras, 2013, 168 páginas :::