Hoje é dia de falar do grande Roberto Arlt e suas crônicas escritas em 1930 na capital brasileira da época
Na coleção “Otra língua” da editora Rocco, a única coisa que me desagrada é o projeto gráfico das capas. Fora isso, a iniciativa é das mais necessárias e fecundas no mercado editorial brasileiro, ainda muito pouco permeável a grandes obras escritas por nossos vizinhos. A escolha dos títulos, nada óbvia e com a intenção de preencher lacunas, tem sido muito feliz. Hoje é dia de falar do grande Roberto Arlt e suas crônicas escritas em 1930 na capital brasileira da época: o Rio de Janeiro.
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O avião pousa no aeroporto Santos Dumont, deixando entrever pelas janelas redondas uma parte da paisagem de sua cidade. Voltar ao Rio não deveria ser algo tão especial quanto foi na minha primeira vez, uma Semana Santa durante a qual a praia de Copacabana foi minha religião. Mas o sentimento é sempre o mesmo, a quase incredulidade de estar chegando a um lugar que conhecia antes de conhecer, paulista que sou. Não chego a me sentir como Roberto Arlt, temos estadias com propósitos diferentes, épocas e prazos distintos – ainda assim, fico imaginando o que ele diria do Rio que é, comparando com o Rio que visitou na década de 30.
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O jornalista argentino ficou conhecido por suas crônicas chamadas “aguafuertes”, uma referência à técnica de artes visuais. Nelas, com um humor ferino e uma capacidade quase inesgotável de compor tipos e situações representativas, Arlt escreveu algumas de suas melhores páginas. Mais um fator que torna ainda mais surpreendente o fato de suas crônicas cariocas serem praticamente desconhecidas no Brasil, mesmo para o público mais especializado.
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Sento-me em um daqueles bancos na orla, fumo um cigarro e contemplo o horizonte de prédios, como a estátua de Drummond. É possível pensar que os edifícios cariocas, embora tenham suas diferenças arquitetônicas em relação aos paulistanos, evocam o mesmo tipo de cidade que São Paulo se esmerou tanto em tentar construir. Mas não se sustenta essa ideia ao ouvir o barulho das ondas, receber a brisa na nuca e constatar a areia nos chinelos – um prédio de frente para o mar, mesmo que seja uma réplica perfeita de outro no meio da cidade, é outro tipo de prédio, que nos olha de volta enquanto fazemos parte transitória da paisagem.
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Foram quase quarenta crônicas escritas no Rio de Janeiro, enfatizando os aspectos da vida cotidiana na cidade e ignorando quase completamente questões maiores como a crise política e econômica nos estertores da República Velha. Não obstante, há páginas deliciosas sobre assuntos tão variados quanto o jornalismo praticado no Brasil e na Argentina, questões e diversidades culturais e o espanto de Arlt frente à fraca vida cultural e política na capital brasileira.
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Arlt fala diversas vezes sobre o jeito de ser do carioca. Quero pensar que esse jeito não mudou, pois sua visão é bastante generosa. Tenho confirmações disso aqui e ali. Mas viajo nos dias em que a cidade se assemelha mais a um canteiro de obras. Derrubam a Perimetral, a mesma via que usei na minha primeira viagem para chegar a Copacabana vindo da Rodoviária. A região inteira do Centro degradado me é diversa. As pessoas de fora tendem a considerar o Rio apenas o conjunto de sua imagem externa: o Pão de Açúcar, as praias, as favelas nos morros, os edifícios históricos. Arlt, correto ou não, buscava apreender parte do ser carioca. Quando tento localizar algo semelhante, fico apenas mais confuso.
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É aí que mora o maior interesse do volume, que ainda compila alguns textos do argentino sobre sua técnica de escrita. O contraste entre o que imaginamos, o que conhecemos e o que Arlt vê, tendo Buenos Aires como parâmetro, cria conflitos de expectativas conduzidos por seu estilo enfático e bastante direto, chegando ao ponto do grosseiro às vezes, como na crônica em que narra seu espanto com a carga de trabalho que os negros precisam suportar (de um modo que aos olhos de hoje é bastante racista).
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Um tempo atrás, o Rio foi a capital do Brasil em todos os sentidos: governo, cultura, identidade. Passaram-se as décadas; Brasília é agora a capital política e os outros sentidos parecem ter abandonado pouco a pouco a cidade. Agora, pressinto no carioca uma vontade de se definir a partir do que ama e o rodeia, mas sem saber exatamente quais aspectos deve conservar e quais emular de outros lugares. Há aqueles que vislumbram uma nova Barcelona, sob o influxo das Olimpíadas; há os ansiosos por uma transformação no que existe de bom em São Paulo; há ainda poucos tentando viver o que resta de uma cidade que não existirá em breve. Nos pontos de ônibus, vejo assalariados, atrasados como os de São Paulo, ainda que o sotaque denuncie sua nobreza antiga.
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Outro contraste decisivo para compor o espírito das Águas-fortes cariocas está em dois fatores: o primeiro é a reflexão do jornalista sobre a inexistência de teatros e sindicatos no Rio de Janeiro, em comparação com a capital argentina (“melhor uma vida cultural medíocre do que vida cultural nenhuma”), mais um documento de nosso atraso relativo em relação aos vizinhos americanos, ao menos em algumas esferas culturais. O segundo está nos vários pontos positivos que Arlt encontra no Rio: o povo como ele vê é extremamente gentil, quase nobre em suas virtudes, e muito honrado e honesto. O autor chega a expressar seu espanto com as garrafas de leite colocadas à porta das casas pelo leiteiro, nenhuma sendo roubada. Aparentemente alguns males do progresso ainda não haviam chegado ao Rio naquele momento.
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Ir embora do Rio depois de alguns dias é como mudar de vida, e ainda assim permanece a ideia de que o Brasil deixou para trás uma parte boa do que o Rio já foi, já significou. Ao chegar em São Paulo, penso no que foi perdido, não apenas por mim, mas pelos cariocas. Talvez Arlt não devesse mesmo conhecer a cidade de hoje.
::: Águas-fortes cariocas :::
::: Roberto Arlt (trad. Gustavo Pacheco) :::
::: Rocco, 2013, 256 páginas :::
Vinícius Justo
Mestre em Teoria Literária pela USP.
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