Poderiamos dizer que o vampiro espiritual é um estágio intermediário entre o guru e o líder de seita
“À meia noite levarei a tua alma”, dizia o título do primeiro filme de Zé do Caixão em 1963. O ser das trevas brasileiro encarnava um comportamento similar ao de um vampiro – não à toa, a caracterização do personagem se inspirava no Drácula de Bela Lugosi e no Nosferatu de F. W. Murnau. Em comum entre os personagens vampirescos, a obsessão por impor o seu poder sobre as pessoas por meio do terror espiritual.
O vampiro espiritual de que trata este ensaio não é um personagem de ficção. Antes, é uma construção teórica de um “tipo ideal sociológico”, definido por Weber como um fenômeno social no qual é possível exprimir de forma pura o sentido racional da ação social. Por ser o isolamento de uma relação de sentido pura, ele não é encontrado na vida real tal como descrito no tipo ideal. Mas um fenômeno social concreto pode ser explanado por meio de sua decomposição em diversos comportamentos “tipico-ideais”. No nosso caso, o vampiro espiritual não existe da forma como o descreveremos, mas é possível encontrar elementos de vampirismo espiritual na forma como diversos pregadores conduzem seu rebanho religioso.
Apesar de ser uma construção típico-ideal, este ensaio se apresenta como uma etnografia. Marconi e Lakatos definem o método etnográfico como a “análise descritiva das sociedades humanas, primitivas ou ágrafas, rurais e urbanas, grupos etnicos etc., de pequena escala”. Ou seja, trata-se da observação de um pequeno grupo social específico. Um estudo etnográfico não pretende analisar, por exemplo, todas as comunidades religiosas cristãs, mas uma comunidade religiosa específica.
Via de regra, um fenômeno social específico compõe-se de diversos tipos ideais concomitantes. Por isso, falar na etnografia de um tipo ideal como o vampiro social parece ser um contra-senso metodológico. Ou melhor, pareceria, se este fosse um trabalho científico rigoroso. Não temos esta pretensão. O que este ensaio se pretende é descrever um tipo ideal comum a diversas denominações religiosas por meio da observação de um caso típico: uma determinada paróquia católica, cujo nome e referências preservarei para não expor seus membros. Desta forma, isolaremos os elementos que caracterizariam o vampirismo espiritual, tal como definiremos a seguir.
Definindo o vampiro espiritual
O vampiro espiritual é uma liderança religiosa cuja relação estabelecida com seus seguidores se constrói em termos de dependência psicológica leve. É diferente do líder de seita, que estabelece uma relação de dependência psicológica profunda. O líder de seita aposta no fanatismo exacerbado para obter obediência absoluta de seus seguidores.
O vampiro espiritual não chega a tanto. Ele também precisa dominar corações e mentes, mas em um nível mais leve que o líder de seita. O seguidor de um vampiro espiritual não precisa entregar a vida inteira nas mãos do seu líder, mas apenas determinados aspectos – em geral, sua vida de oração, as relações familiares ou o orçamento pessoal.
O vampiro espiritual se confundiria naturalmente com uma espécie de guru ou líder espiritual respeitável. Mas com uma diferença fundamental: ele não aposta no desenvolvimento espiritual de seus seguidores. Enquanto um líder espiritual espera que seus liderados apresentem níveis cada vez mais elevados do carisma místico que marca aquela corrente religiosa. O vampiro não: ele aposta na mediocridade mística de seus fiéis. É como se João Paulo II se sentisse ameaçado pela fama de Madre Tereza de Calcutá, ou Ravi Shankar se incomodasse com as iniciativas de George Harrison.
Poderiamos dizer que o vampiro espiritual é um estágio intermediário entre o guru e o líder de seita. Mas ele causa seus próprios problemas para os seguidores. Isto torna este perfil diferente qualitativamente dos extremos que o cercam. Se não busca a escravidão total proposta por um líder de culto, tampouco é o vampiro espiritual um amante da liberdade. Pelo contrário: a relação que ele estabelece com seus seguidores é de prolongada submissão.
O nome com o qual o batizamos demonstra isso: um longo e tenebroso parasitismo, por meio do qual suga as forças de seu rebanho e depois o abandona. Colocando em termos do Evangelho: o vampiro espiritual não busca a ovelha perdida (Lucas 15, 4), esmaga a cana quebrada e apaga o pavio que ainda fumega (Mateus 12,20), fecham o Reino dos Céus para os homens, nem entram e nem deixam entrar (Mateus 23,13). Jamais caberia a um vampiro espiritual chamar sua comunidade de amigos, e não servos (João 15,15).
A comunidade
Estamos em uma comunidade católica que espera o início da missa. Comunidade é o nome que os fiéis católicos dão a si quanto estão reunidos. Serve como uma tradução livre do grego Ecclesia, que deu origem ao português Igreja. A comunidade abarca fiéis leigos – pessoas comuns, que não recebem uma consagração especial – consagrados – frades e freiras – e sacerdotes – padres, bispos e diáconos. A palavra comunidade se disseminou no pós Concílio Vaticano II, como uma forma de dar significado à visão de si mesma que a Igreja Católica se propunha – não restrita à hierarquia, mas abarcando todo o Povo de Deus (Lumen Gentium).
Esta comunidade em especial se caracteriza por reunir dois grupos sociais diferenciados. Um deles é o que o sociólogo Jessé Souza denominou, em seu A construção social da subcidadania, a “ralé estrutural”. Esta se define como “uma classe inteira de indivíduos não só sem capital cultural e econômico em qualquer medida significativa, mas desprovida, este é o aspecto fundamental, das condições sociais, morais e culturais que permitem esta apropriação”. O que nos interessa na pesquisa de Jessé Souza é a relação entre as disposições de classe da ralé estrutural e o pentecostalismo: a “oferta de serviços mágicos relacionados às demandas imediatas da vida cotidiana e voltados para os setores carentes da população”.
O outro grupo que se destaca é um mix de classe alta e média, uma massa de aburguesados em boas condições de vida. Estes não tem as necessidades primárias da ralé estrutural, antes precisam legitimar sua condição social, e encontrar saídas para dilemas humanos de outra ordem: os rumos da família ou dos negócios. Weber afirmava que as camadas privilegiadas buscam em geral uma religião de legitimação, enquanto as negativamente privilegiadas procuram uma religião de salvação. Veremos mais à frente, ao analisar o discurso do vampiro espiritual, como ele consegue atender a ambas as demandas.
Em alguns anos de observação, destaca-se um aspecto pouco usual neste comunidade: o seu elevado turn-over. Geralmente, os fieis se aproximam ao identificarem no discurso do vampiro as respostas às suas necessidades cotidianas – problemas na família, desafios financeiros etc. Como caminho natural, aderem à comunidade de forma mais orgânica, e se tornam agentes de pastoral, isto é, um tipo de fiel leigo católico que assume responsabilidades na paróquia, com a catequese, cursos de batismo e de noivos, coleta do dízimo e distribuição da comunhão, entre outros. O agente de pastoral tem um comprometimento maior de tempo e recursos com a comunidade que o fiel comum.
Como as paróquias se organizam territorialmente, o vínculo do agente de pastoral com a sua comunidade costuma se prolongar no tempo. Um agente de pastoral só muda de paróquia quando muda de endereço, ou quando entra em crise de fé. E aí entra a especificidade do vampiro espiritual: sua comunidade apresenta um alto índice de desistência de agentes de pastoral. Em um intervalo de apenas dois anos, pastorais inteiras mudam seus membros. É mais comum que a média haver, apesar da igreja cheia, falta de agentes para esta ou aquela atividade.
Outra coisa que chama a atenção é a ausência dos movimentos de leigos, comuns em outras paróquias. Enquanto os agentes de pastoral nas outras paróquias se vinculam a movimentos como Encontros de Casais com Cristo, Renovação Carismática Católica, Caminho Neocatecumenal ou Focolaris, ali não há movimentos. Estes movimentos, impulsionadores do que os últimos papas chamaram de nova evangelização, costumam oferecer ao fiel leigo uma espiritualidade mais aprofundada e organizada que aquela que se obtém nas paróquias. Desta forma, eles avançam na espiritualidade, crescem em comprometimento com a comunidade e se capacitam para oferecer um serviço espiritual de maior qualidade.
A ausência de movimentos de leigos na comunidade do vampiro está diretamente relacionada ao alto turn-over de agentes de pastoral. Os agentes que mudaram de paróquia ou se afastaram da Igreja Católica reclamam de dificuldades para tocar o trabalho a partir do momento em que se vincularam a um determinado movimento. São inúmeras as descrições de boicotes, reclamações, boatos e mentiras espalhados pelo próprio vampiro, que como líder da comunidade deveria servir como um agente pacificador de conflitos. Pelo contrário, o padrão descrito é o do fomento de conflitos como estratégia de gestão: desta forma, peneiram-se os elementos mais autônomos e fidelizam-se os mais submissos.
A submissão cega, quase similar à de uma seita, carateriza os agentes que se mantém fiéis por mais tempo. Eles são incapazes de pensar o ser católico de outra forma que não a apresentada pelo vampiro. Em um certo caso, um dos mais submissos enfrentou uma crise financeira séria. Ao invés de encontrar conforto espiritual do seu líder-vampiro, encontrou o mesmo tipo de boato negativo que enfrentam os agentes que “pecam” por autonomia: o vampiro espalhou para seu séquito mais próximo que aquela pessoa havia cometido alguma fraude financeira, e por isso estava em dificuldades. A quebra de confiança pesou mais do que deveria: como toda a sua experiência espiritual estava vinculada ao vampiro, ele sentiu como se toda a sua fé católica desabasse.
Os círculos mais próximos definem este vampiro em especial como muito bom em falar com o público, e péssimo no trato pessoal. Na prática, isto se dá por ele constrói uma dupla relação com sua comunidade: uma de admiração completa dos fiéis comuns que frequentam suas missas em busca de respostas, e outra de submissão do círculo de agentes de pastorais. Neste ambiente, só cabe um tipo de santidade, isto é, de padrão espiritual máximo do ponto de vista católico: aquele que suporta níveis elevados de humilhação e sofrimento.
A missa do vampiro
Em uma missa, o momento fundamental é a chamada liturgia eucarística, na qual se reproduz a cena da Última Ceia de Jesus com os apóstolos. João Paulo II, na encíclica Ecclesia de Eucaristia, enfatiza este aspecto ao lembrar de quando celebrou a missa no local onde a tradição afirma ser o local em que a Última Ceia foi realizada, em Jerusalém, por conta do Jubileu de 2000. Ao afirmar isso, o papa afirma o vínculo de continuidade que a doutrina católica identifica entre a ceia de Jesus e a missa. O teólogo norte-americano Scott Hahn afirma que a missa é o Banquete do Cordeiro, imagem pela qual os evangelhos se referem diversas vezes ao Paraíso.
Pois bem, na missa do vampiro isto não é relevante. Esqueça a doutrina católica sobre a missa, porque aquilo que a Igreja trata como fundamental passará rapidamente, às pressas. Isto é, a não ser que seja uma missa festiva. Mas aí, o que se destacará não é a reprodução da ceia de Jesus, mas o elemento estruturante da missa deste vampiro em particular: a música.
Antes afirmamos que a Renovação Carismática Católica não tinha espaço enquanto organização, ou seja, não havia grupo de oração da RCC nesta comunidade. Contudo, a primeira impressão que ele causa ao chegar é justamente que se trata de um padre carismático. Isto porque a música que se toca em sua celebração é toda com origem neste movimento. Contudo, a afinidade entre o vampiro e a RCC para aí.
Se analisarmos, por exemplo, o que a Canção Nova, associação de fiéis que experimenta e difunde a espiritualidade carismática, tem a dizer sobre o dia de Finados em seu site, teremos esta nuvem de tags:
Como veremos mais à frente na análise do discurso do vampiro, jamais as palavras Morte e Vida apareceriam com o mesmo destaque em uma nuvem de tags sobre Finados. A espiritualidade da Renovação Carismática é otimista, aposta na ação do Espírito Santo para valorizar a pessoa, que deve se sentir escolhida por Deus. Algo longe da lógica de submissão do vampiro.
Contudo, a música entra na missa, como elemento de catarse. Na liturgia que acompanhamos, há dois elementos estruturantes: a música e a homilia (nome que se dá ao sermão do padre). Em todo momento, a música pontua o discurso e traz ao ambiente o elemento emocional, que fala às necessidades imediatas de legitimação e salvação da audiência. Os elementos estruturais da missa católica – a leitura da Bíblia e a Eucaristia – perdem espaço. Falamos acima que a parte eucarística é feita às pressas: isso também é válido para as leituras. Pulam-se algumas, omite-se partes do Salmo. Em contagem de tempo, podemos afirmar que a homilia ocupa cerca de 40% do tempo da missa. Somada à música, chegamos perto de 80%.
O discurso do vampiro
Música e homilia também são as plataformas nas quais se estrutura o discurso vampiresco. Ele é um arrazoado construído com o objetivo de obter submissão e atender às demandas de uma audiência heterogênea, formada por desgraçados em busca de solução para seus problemas imediatos e privilegiados em busca de legitimação. O resultado é uma variante específica da teologia da prosperidade, que podemos chamar teologia da prosperidade na desgraça.
Todo o discurso apela aos temas cotidianos: família principalmente, mas também trabalho e negócios. Na maior parte do tempo, o vampiro se dedica a descrever as mazelas da família moderna, e chamar à responsabilidade os pais, tratados como indiferentes, e os filhos, descritos como seres à beira do abismo das drogas e do sexo fácil. De repente, as mesmas mazelas são transferidas à descrição da comunidade, na qual predominam principalmente a preguiça e a má vontade de agentes de pastoral pouco comprometidos, especialmente com o pagamento do dízimo.
Chama a atenção a ausência de elementos positivos na descrição da família ou da comunidade. Quando há alguma alegria relatada no relacionamento entre marido e mulher ou pais e filhos, geralmente ela é resultado de uma luta contra um cenário de desgraça. Usa-se a todo momento frases construídas e repetidas:
- “Pense no seu filho adolescente que te dá problema”, sem a ressalva de que a adolescência é uma época de conflitos
- “Pense na sua esposa/seu marido que não te entende”, de novo, ignorando que um relacionamento é também um campo de conflitos e mal-entendidos – as prateleiras de auto-ajuda nas livrarias estão aí para provar isso
- “Aquele casal encontrou a felicidade, depois que colocou o filho de castigo ao descobrir maconha em sua bolsa”
- “Seus filhos e suas filhas andam com os namorados por aí, e você não sabe o que eles estão fazendo”
Ao apresentar as situações de conflito que existem no dia a dia de qualquer família, mas sem ressalvas nem saídas, o vampiro cria em seu fiel uma situação de desespero. Os cenários terríveis estão a espreita de qualquer família. Qualquer um na audiência é capaz de se identificar com os problemas descritos. Logo, ao carregar nas tintas da desgraça, o que ele faz é inserir o medo em situações cotidianas que exigiriam serenidade. Desta forma, o medo serve como elemento catalisador da submissão.
Deus, para o vampiro, não apresenta saídas. Deus é um ser distante, que exige uma atitude do fiel para se afastar do mal. Esta atitude é a obediência ao padre vampiro. Sem esta obediência primeira, que passa pelo pagamento de um dízimo polpudo e por amoldar a própria vida de oração às determinações do vampiro, independente de qualquer interferência externa de um movimento de leigos, não há saída para o cenário de desgraça. Uma história de tragédia pessoal é a prova de que aquela pessoa não realizou a vontade de Deus – descrita, aqui, como a vontade do vampiro. Recusar-se a submeter-se em obediência a um diretor espiritual que não ele é crime de morte.
Estamos longe do cenário otimista de uma Renovação Carismática, por exemplo, capaz de colocar vida e morte com a mesma enfase ao tratar do dia de Finados. Pelo contrário, estamos diante de uma espiritualidade cruel. Às vezes acontece um milagre. Em uma missa de cura, alguém se “liberta” de um câncer. Mas o câncer volta, não por culpa das metástases, mas porque a pessoa se mostrou ingrata e afastou-se da comunidade – ou seja, afastou-se de seu campo de poder.
Um discurso de teologia da prosperidade é geralmente um discurso de legitimação: visa legitimar o sucesso material como resultado de um esforço pessoal abençoado por Deus. Em certo sentido, é uma espiritualidade otimista. Vejamos, por exemplo, o discurso de R.R. Soares, pregador televisivo e fundador da Igreja Internacional da Graça de Deus, sobre a prosperidade:
Vejam que as palavras mais citadas pelo pregador neopentecostal são Jesus e Senhor. Em diversos textos Soares afirma que “os crentes em Jesus têm direito às bençãos, neste mundo e no vindouro”. Assim como na análise que fizemos sobre a Canção Nova, destaca-se uma abordagem otimista e positiva da espiritualidade.
Não é o caso do nosso vampiro. Sim, ele também fala nas bençãos e graças – “você precisa tomar posse da benção, meu irmão” – mas como algo a ser conquistado a custa não de sacrifícios e penitências, mas de se tornar parte de seu séquito, de ser vampirizado. A prosperidade é uma possibilidade, mas o tema predominante de seu discurso é a desgraça. Se você é da ralé estrutural, entregue-me sua alma e terá pão. Se você é um aburguesado, entregue-se sua alma e terá sucesso. Caso contrário, sua vida e sua família estarão em desgraça para sempre. Porque Deus não é misericordioso com os fracos.
Conclusão
Embora este tipo de vampiro espiritual aqui descrito tenha um perfil mais comum no meio cristão, creio que com adaptações sejam possível identificá-lo em outras denominações. Basicamente, o que caracteriza o vampiro é um tipo de liderança mais soft que a de um líder de culto, mas também ciumenta em relação a influências externas e demandante de submissão, ainda que parcial. O vampiro não atrai fanáticos, mas dependentes. Neste sentido, é um tipo de liderança espiritual negativa que caberia em qualquer agrupamento religioso.
A melhor defesa para o vampirismo é, ao identificar-se um caso, retirar o seu poder antes que cresça. Sem poder, o dano que um vampiro pode causar a uma comunidade religiosa torna-se menor. Como não sou psicólogo – meu foco foram os aspectos sociais do vampirismo espiritual – não posso afirmar se o vampiro tem cura. Mas posso dizer que uma comunidade vampirizada, submetida a um tipo sadio de liderança, pode melhorar.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
[email protected]