Manoel de Barros morreu muitas vezes antes de ontem, mas a verdadeira morte foi em 1949
Dizem que Manoel de Barros morreu no dia 13 de novembro, às 08 horas da manhã. No dia 19 próximo, completaria 98 anos, mas bastou um suspiro cansado do seu coração, uma breve pausa, para que o corpo desistisse da vigília insensata que observava nos últimos tempos. A vida se segurava no poeta, instável, teimosa, e nunca o verso “dói-me a vida, doutor” fez tanto sentido.
Mas também dizem que Manoel de Barros morreu seis meses atrás, quando entrou no hospital para nunca mais sair. Foi ele próprio quem disse para o irmão, Abílio Leite de Barros: não era mais capaz de ler e de escrever e, assim, não via razão para continuar vivendo. Depois dessa constatação, bastou esperar o momento em que a morte viria buscá-lo, mas já se considerava acabado. Viver e escrever são dois atos muito ligados. Retirar de um poeta a capacidade de escrever é retirar o motivo que lhe faz prosseguir na jornada.
Muitas pessoas dizem que metade de Manoel de Barros morreu em 2007, quando seu filho João Wenceslau de Barros morreu em um acidente aéreo, e a outra metade morreu em 2013, quando faleceu seu outro filho, Pedro, que sofreu a vida toda com a esquizofrenia, ficou cinco anos na cama sendo cuidado por Manoel e pela sua esposa Stella, e sofreu três derrames consecutivos. Desde estas mortes, ele não conseguia mais pensar em poesia da mesma forma. A realidade lhe atropelara.
Como acontece com todos, a vida foi matando Manoel de Barros aos poucos, um naco de cada vez. A última respiração no dia 13 de novembro não passou do apagar das luzes de uma peça já encerrada. No entanto, a voz do poeta ainda ressoa no salão vazio, e o público continua entrando no teatro para escutá-la. A sua obra se sustenta sozinha, atraindo interesse sempre renovado.
Considerado como “o poeta das insignificâncias”, teve a sua obra classificada como “o apogeu do chão” por causa da temática ligada à terra, ao musgo, aos seres que rastejam. Por mais criativos que pareçam ser os seus epítetos, todas as imagens poéticas que tentam classificá-lo são insuficientes diante das poesias que ele próprio escreveu. Manoel de Barros descrevia o pequeno, as miudezas, as simplicidades que se escondem no dia a dia, usando versos diretos que exploravam ao máximo as potencialidades dos substantivos.
Lendo seus poemas, a realidade acaba se modificando, e é inevitável o pensamento de que o poeta viu a verdadeira essência da coisa, algo que estava ao alcance dos nossos olhos, mas nunca éramos capazes de ver. Pegar o comum e transformar em extraordinário, este é o maior objetivo da poesia. Não espanta que Carlos Drummond de Andrade, ao ser chamado de “maior poeta vivo do Brasil”, apressou-se a dizer que este título pertencia a Manoel de Barros. Os dois poetas eram capazes de pinçar a poesia de dentro do cotidiano, utilizando a linguagem como mola mestra para redescobrir o mundo. Nas suas palavras, “desconfio do verso que fulgura; em poesia, o opaco é mais luminoso que o brilhante”. Em tempos que a poesia é mais artifício e forma do que conteúdo poético, é um alívio ler versos escritos sem a pretensão da eternidade ou a ilusão simples dos sentimentos. Versos escritos com a inocência de quem descobre o mundo.
No ensaio “A função social da poesia”, T. S. Elliot afirma que “para além de qualquer intenção específica que a poesia possa ter, tal como foi por mim exemplificado nas várias espécies de poesia, há sempre comunicação de alguma nova experiência, ou uma nova compreensão do familiar, ou a expressão de algo que experimentamos e para o que não temos palavras – o que amplia nossa consciência ou apura a nossa sensibilidade.” A obra poética de Manoel de Barros se encaixa neste objetivo: ao tentar explicar o mundo para si mesmo, o poeta acabou comunicando suas experiências, revelando novas facetas para o que imaginávamos familiar e expressando aquilo para o qual não temos palavras. Quando escreve que “pensa em renovar o homem usando borboletas”, ele também pretende revelar todas as potencialidades poéticas que se escondem no interior de cada pessoa.
Devemos diferenciar escrever sobre assuntos simples de escrever com simplicidade. Buscar o equilíbrio entre a palavra e o sentimento sem descambar para o lirismo extremado é tarefa das mais árduas para um poeta, pois é grande a tentação de embelezar a ideia. Contudo, a verdadeira beleza é tocar o universal com dedos leves, sem demonstrar o esforço feito para chegar ao máximo de sentido através da mínima energia.
Manoel de Barros morreu muitas vezes antes de ontem, mas a verdadeira morte aconteceu em 1949. Foi quando seu pai faleceu e ele herdou uma fazenda de mais de 10.000 hectares no Pantanal. Durante dez anos, parou de escrever e dedicou-se ao trabalho na fazenda. Passava seus dias ajeitando cercas, cavalgando e cuidando do gado. Podia estar sem escrever, mas a poesia não lhe abandonava, e passava seus dias e suas noites observando o mundo ao redor, chegando na essência das coisas, revisitando as palavras. Não precisamos imaginar os seus pensamentos, pois, ao sair da fazenda, Manoel de Barros escreveu O livro das ignoraçãs, mostrando ao mundo todas as maravilhas que enfim entendera.
O homem Manoel de Barros morreu naquela fazenda, mas o poeta veio ao mundo. Se existe algo em que podemos acreditar, é que os verdadeiros poetas não morrem. T. S. Elliot diz que “o poeta não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é também individualmente distinto de outra pessoa, assim como de outros poetas, e pode fazer com que seus leitores partilhem conscientemente de novos sentimentos que ainda não haviam experimentado”. Manoel de Barros continua trazendo novas sensações para seus leitores, pois conseguiu transferir sua visão de mundo para o papel, e ele mesmo nos tranquiliza: “Somos dois. Um é biológico, o outro letral. Ambos somos verdadeiros. Um é de sangue. Outro é de palavras. O de sangue é comum: come, bebe água e até quebra copos. O ser letral gosta de fazer imagens para confundir as palavras. E gosta de usar palavras para destroncar as imagens.” O poeta Manoel de Barros morreu ontem, mas a eternidade da sua obra acaba de começar.
Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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