A escolha de Patenaude em sua biografia tem a vantagem de oferecer um quadro intimista em que podemos perceber traços da personalidade de Trótski.
1.
Depois de uma eleição tão cheia de surpresas e viradas, seria irresponsável não se planejar para uma possível vitória do PSTU ou do PCO em 2018. Diante desse cenário, vale a pena conhecer um pouco sobre o trotskismo que inspira os dois partidos. Se a falta de conhecimento sobre o trotskismo te faz perder o sono (e deveria fazer, como vimos), uma boa ideia é ler Trótski: Exílio e assassinato de um revolucionário, de Bertrand Patenaude. Outros motivos menos interessantes para ler o livro seriam a grande influência que os trotskistas tiveram sobre o PT, os estudos que indicam que 90% da população mundial é ex-trotskista, e o fato de ser um livro excepcionalmente bem escrito.
O livro de Patenaude não é uma biografia completa de Trótski. A narrativa se concentra no exílio mexicano do fundador do Exército Vermelho, com flashbacks de episódios anteriores de sua vida e uma trama paralela sobre os planos da GPU (ex-NKVD, futura KGB) para assassinar o “Velho”.
A escolha de Patenaude tem a vantagem de oferecer um quadro intimista em que podemos perceber traços da personalidade de Trótski, como suas dificuldades de relacionamento com seus aliados (segundo Lunacharski, era completamente incapaz de formar um grupo com aliados poderosos; não dá a impressão de que fosse bom de formar grupo com quem quer que fosse), sua irascibilidade, seus problemas familiares (indiscutivelmente agravados pelas circunstâncias dificílimas de seu banimento), suas obsessões intelectuais, sua paixão pela literatura e sua rejeição à vida boêmia. Quando não estava subvertendo completamente a geopolítica mundial, liderando exércitos, discutindo teoria ou enchendo o saco de Stalin, Trótski gostava de caçar, pescar e criar coelhos. Uma febre forte contraída durante uma caçada o levou, inclusive, a estar ausente de Moscou durante o funeral de Lenin, oportunidade que Stalin não perdeu para se projetar como liderança.
Por outro lado, o livro não é muito útil para as discussões quase inevitáveis em todo trabalho sobre Trótski (“Teria sido diferente se Trótski, e não Stalin, tivesse sucedido Lenin?”). Não há quase nada sobre as divergências ideológicas entre os trotskistas e outros bolcheviques, ou, aliás, sobre o que diferencia o trotskismo de outras correntes marxistas (sim, menti no primeiro parágrafo). A ascensão de Stalin aparece como consequência de sua inegável superioridade como articulador de bastidores e manipulador de facções (duas coisas em que Trótski era, aparentemente, péssimo), mas não é dito como essas facções se formaram a partir de problemas concretos da União Soviética nos anos 20.
O máximo que se vê de reflexão sobre a experiência soviética é um vislumbre (nos flashbacks, e nos momentos em que Trótski é confrontado por seus interlocutores a respeito de sua participação na repressão bolchevique) do triste processo pelo qual Trótski, o orador eletrizante que fez a revolução de Outubro, criou o Exército Vermelho e ganhou a Guerra Civil, vai sendo superado por Stalin, o homem de partido opaco que se sai muito melhor quando todos os espaços de participação política fora do partido são fechados pelos bolcheviques; o que quer dizer por Lenin, mas também por Trótski e pela velha guarda bolchevique que seria fuzilada nos processos de Moscou. Trótski foi um dirigente bastante autoritário, o que, em parte, pode ter sido consequência de ter sido comissário de guerra, mas dificilmente terá sido só isso. Assim, construiu ativamente o sistema em que Stalin jogava melhor que ele.
Para conhecer esses processos, há livros melhores; mas isso não diminui em nada o valor da obra de Patenaude.
2.
Trótski conseguiu asilo no México graças à intervenção do pintor Diego Rivera, marido da pintora Frida Kahlo, que se tornou amante do velho bolchevique (aparentemente, Rivera tampouco era lá o mais fiel dos maridos; o que é difícil é não sentir um pouco por Natalia, que acompanhou Trótski na glória do Kremlin e na catástrofe do desterro). O diálogo político difícil entre Trótski e Rivera, que como pensador político era um grande muralista, é um dos pontos interessantes do livro, bem como a interação bem menos civilizada que outro grande nome da pintura muralista, David Siqueiros, teve com Trótski (leiam o livro; essa realmente vale a pena). O grau de politização da arte nos anos 30 é muito difícil de compreender hoje em dia, e é natural que essas tensões fossem agudamente sentidas ao redor de de Trótski, cuja atitude sofisticada (quando comparada ao oficialismo bolchevique) sobre as artes naturalmente atraía intelectuais e artistas.
Por menos que o livro se concentre na história da União Soviética, a dimensão do terror stalinista é sempre visível. No bolso de Stalin estava, por exemplo, Mark Zborowski, braço direito do filho de Trótski na direção do movimento trotskista em Paris (Zborowski, a propósito, estudou etnologia em Paris e em Columbia, sempre como agente da GPU). Durante todo seu exílio, Trótski esteve sob observação muito próxima de agentes stalinistas. As campanhas dos comunistas (pró-URSS) mexicanos para expulsar Trótski (o que queria dizer, na prática, entregá-lo a Stalin) parecem ter sido especialmente deprimentes, entre outras coisas pelo fato de que as pichações de Trótski com suásticas tiveram que ser substituídas após o pacto Hitler-Stalin.
Na verdade, a repressão política durante o “alto stalinismo” dos anos 30 era tão intensa que a partir de certo ponto os próprios agentes da GPU no exterior começaram a ser chamados de volta para serem executados como traidores (o que também era queima de arquivo das armações que basearam os Processos de Moscou). Alguns deles notaram o que estava acontecendo, se recusaram a voltar, e chegaram a fazer contato com os trotskistas (o que levou alguns à morte). Um deles, aparentemente sem perspectiva de vantagem pessoal, escreveu anonimamente para Trótski para alertá-lo sobre a infiltração stalinista entre seus seguidores. O relato de Patenaude sobre o processo de infiltração do assassino Ramon Mercader, que na verdade era o plano B após o fracasso de uma ofensiva armada stalinista sobre a casa de Trótski, é bastante impressionante (e algo freudiano).
Outro aspecto interessante tratado no livro é a relação de Trótski com os Estados Unidos. Paris e Nova York eram os dois grandes centros de intelectuais trotskistas (no mundo sindical, os caminhoneiros de Minneapolis eram trotskos particularmente ativos). Com a invasão da França pelos nazistas, Nova York ganhou importância ainda maior. Os trotskistas americanos eram os responsáveis por manter Trótski no México, era entre eles que eram recrutados seus secretários/seguranças (a história deles é um dos pontos fortes do livro), e era entre eles que se levantava dinheiro para blindar o refúgio mexicano do Velho.
Vários desses intelectuais trotskistas, muitos dos quais orbitavam em torno da Universidade de Nova York e do célebre filósofo John Dewey (que participou do julgamento alternativo de Trótski no exílio, um protesto contra os processos de Moscou), se destacariam na vida intelectual americana à esquerda e à direita. Uma das melhores coisas do livro são os momentos em que Trótski tem que lidar com as dissidências dentro do trotskismo americano, como quando intelectuais defendiam o abandono da dialética por seu caráter “místico”. A dificuldade de lidar com a divergência dentro do partido diz muito sobre o que a experiência como Comissário do Povo fez com Trótski. Fiquei pensando aqui o que teria acontecido se Trótski tivesse se convertido ao pragmatismo americano. Podia ter dado certo.
A divergência política com os intelectuais americanos foram bem mais agudas que as teóricas. Trótski morreu acreditando na União Soviética, acreditando que, por exemplo, a invasão da Finlândia ou da Polônia por Stalin poderiam (quando a burocracia stalinista fosse derrubada) adquirir um caráter “progressista” (o que apavorava os trotskistas americanos; e não devia entusiasmar os trotskistas torturados pela NKVD na guerra civil espanhola). Havia um certo nacionalismo soviético em Trótski, o que não deixa de ser irônico no crítico do “socialismo em um país só”. No processo de se distanciar dessa posição, alguns ex-trotskistas acabaram por se tornar defensores de uma política externa agressivamente anticomunista, formando um dos núcleos do neoconservadorismo americano atual.
No fim da vida Trótski (em A URSS na Guerra) lançou um desafio que assombrou os trotskistas após sua morte: acreditava que a segunda guerra mundial, como a primeira, daria início a um novo ciclo revolucionário, tanto no Ocidente quanto na URSS, que levaria o fim da “degeneração” do Estado Soviético. Mas dizia também que, se nada disso ocorresse, seria necessário enfrentar a hipótese de que o ideal socialista foi apenas uma utopia:
A alternativa histórica, levada até o fim, é a seguinte: ou o regime de Stalin é uma recaída detestável no processo de transformação da sociedade burguesa em uma sociedade socialista, ou o regime de Stalin é o primeiro estágio de uma nova sociedade exploradora. Se a segunda hipótese mostrar-se correta, então, logicamente, a burocracia se converterá em uma nova classe exploradora. Por mais custosa que seja a segunda perspectiva, se o proletariado se mostrasse realmente incapaz de cumprir a missão que lhe impõe o curso dos acontecimentos, restaria somente reconhecer que o programa socialista, baseado nas contradições internas da sociedade capitalista, acabou sendo uma utopia. E, por si só, estaria evidente que seria necessário um novo programa “mínimo” para a defesa dos interesses dos escravos da sociedade burocrática totalitária.
Decidam aí como interpretar tudo que aconteceu desde o pós-guerra à luz dessa chave: o regime stalinista não se mostrou estável, nem foi substituído por uma alternativa socialista superior.
3.
O historiador Robert Service afirmou que, no século XX, o único escritor político que se compara a Trótski foi Winston Churchill. Quaisquer que tenham sido suas culpas, seria injusto se Trótski fosse biografado em um livro mal escrito, e Patenaude nos protege desse risco.
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PS: o pai de Richard Rorty, grande filósofo pragmatista americano, era um importante trotskista, o que o levou a escrever o belo Trótski e as orquídeas selvagens.
PSTU: Alec Nove tem uns artigos sobre o pensamento econômico do Trótski que são interessantes; não consegui encontrá-los na net, mas não deve ser difícil encontrar em bibliotecas.
PSTUdoB: Saul Bellow, romancista americano, por acaso estava com uns estudantes no México para conhecer Trótski quando ele foi assassinado. Bellow chegou a ver o corpo no hospital.
LER-QI: infelizmente, as acusações de traição lançadas pelos stalinistas levaram o trotskismo a uma compulsão por provar suas credenciais leninistas, o que os levou a enfatizar os aspectos radicais de Trótski (que existiam), e acabaram por gerar uma dinâmica de disputa por pureza que levou à hiper-fragmentação já anedótica dos trotskistas nas últimas décadas.
Movimento Negação da Negação: muitos conservadores importantes e sofisticados foram trotskistas. O Reinaldo Azevedo também foi.
Quarta Internacional Posadista Seção Alfa-Centauri: Christopher Hitchens debatendo Trótski com Robert Service na BBC4 aqui, aqui e aqui.
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bombaytalkie
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Renato A. Gimenes