Livro de Martim Vasques mostra como o esteticismo na literatura, de Machado de Assis ao "Carandiru intelectual" de hoje, contamina toda a sociedade.
“E tomou um pão, deu graças,
partiu e deu-o a eles, dizendo: “Isto
é o meu corpo que é dado por vós.
Fazei isto em minha memória”. E
depois de comer, fez o mesmo com
a taça, dizendo: “Essa taça é a Nova
Aliança em meu sangue, que é
derramado por vós.”
Evangelho de São Lucas, 22: 19 – 20
1.
O escritor Osman Lins costumava dizer que a literatura é uma arte capaz de unir símbolos e imagens em diferentes níveis temporais. Se assim o é, a escrita literária cria e compacta um imaginário popular, pintando uma experiência rica em contrastes. Por condensar um conjunto de situações em símbolos e imagens, as obras literárias exploram nuances do imaginário nacional e de suas sensibilidades, como da própria experiência do escritor.
Não há literatura sem experiência. Para Agostinho, o ponto de partida da elaboração do conhecimento é a experiência que a alma tem de si própria. A experiência implica não apenas a aparência das sensações, mas conhecer com a alma em sua inteireza o “Verbo de Deus”. Assim, a escrita literária deve estar a serviço da experiência para não silenciarmos o nosso fundo insubornável, aquele “eu profundo” de que fala Ortega y Gasset, a adequação entre o externo e o íntimo.
Em busca desse “eu profundo” na escrita de alguns medalhões de nossa literatura, Martim Vasques, em A poeira da glória, trata a literatura como objeto de crítica cultural, desejando revelar o falseamento da realidade, o desajuste de experiência, a inadequação entre o externo e o íntimo na alma brasileira. Mais do que uma história da literatura em sentido estrito, Martim toma alguns autores para analisar a experiência cultural do país, desvendar nosso imaginário e sensibilidade. Tirar a poeira da glória de alguns autores significa olhar o que há de perigoso e o que contribuiu para o “Carandiru intelectual” de hoje.
Por todo livro, perpassa o julgamento de que deformamos nossa alma num processo de imanentização do eschaton, através de projetos políticos e ideológicos, resultando no barbarismo cultural de nossos tempos. Martim sugere que a causa de nossa danação, a deformação das almas e da experiência, é um pacto com o demônio no impulso fáustico de guiar o futuro da História, deformando a experiência da realidade.
Essa ideia geral de Martim dá sentido a sua realização ambiciosa numa releitura de alguns medalhões da literatura brasileira. Ele faz questão de começar o livro dando nome aos bois. O primeiro capítulo, “Entre Dissimulados e Degenerados (Ou: A deformação das almas)”, apresenta-nos os primeiros autores que ele considera responsáveis pelo imaginário de que vivemos em meio à perfídia e à loucura. Machado de Assis e José de Alencar são seus alvos principais.
Depois da exasperação, há uma busca em Euclides e Lima Barreto pelo real e pela verdade do literato, o que Martim chama de “despertar distante da realidade que nos constitui”, ou pesadelo do paradoxo. Para compreender isto, ele recorre a Mario Vieira de Mello, autor de Desenvolvimento e cultura: O problema do estetismo no Brasil. Há o Bem, o Verdadeiro e o Belo; a junção dessas três entidades é o objetivo da bem-aventurança. O esteticismo surge quando há uma separação entre elas e o Belo é colocado acima ou contra o Bem e o Verdadeiro.
Na intuição de Vieira de Mello, o agir do brasileiro dirige-se de acordo com a estetização da realidade. Nada é se não aparenta ser. A supremacia da aparência suplanta o fundo insubornável do ser, aquele “eu profundo” que nos dá a integridade do íntimo com o exterior e que possibilita a unidade do conhecimento na unidade da experiência como dito desde Platão e Agostinho. O imaginário e a sensibilidade do brasileiro dirigem-se ao disfarce e à simulação. E essa busca pelo real e pela verdade que encontramos em Euclides e Barreto não é feita pela integridade dessas três entidades (Bem, Belo e Verdadeiro), mas pelo esteticismo.
Assim, a literatura será tratada por esses escritores como uma missão de alterar a realidade, criar um novo país e uma nova cultura, redescobrir o real pela estética. A escrita literária não estará a serviço da experiência, nem da busca pela integridade da autoconsciência, falseando a realidade na instrumentalização da palavra e do imaginário para transformar o país. Essa busca por transformações simula, através de procedimentos literários, a fragmentação do eu e seu falseamento na figura do país. A experiência é captada como uma fantasmagoria de tensões, num pesadelo do paradoxo como percepção da condição humana.
O esteticismo na literatura quer cumprir a missão de mudar a realidade, mas sua missão é cumprida quando contamina toda a sociedade, transformando a culpa em perseverança, o ressentimento em virtude. Esse ressentimento nos leva ao terceiro ato de Martim, o seu melhor capítulo, “Sementes do desterro”, que dá enfoque a Sergio Buarque de Hollanda e Cecília Meireles.
Exorcizar o passado é o que nos leva a Sérgio Buarque. O seu objetivo é ler o passado brasileiro para exorcizá-lo e mudar os rumos do presente. A história, com seus pés no presente, se volta contra os mortos, contra a tradição, contra a ideia de criação, e se guia a meu ver por uma cultura do repúdio que se explica simbolicamente pelo ódio ao Pai Criador.
O relativismo do método de Sérgio Buarque, vindo do idealismo alemão, coloca-lhe em contraste com Gilberto Freyre:
(…) Se Freyre preferiu fazer, em suas investigações, um passeio memorialístico pela sociedade patriarcal brasileira, apontando que um dos motivos de o país se encontrar nesses tempos de indecisão nacional é justamente o fato de que a família foi abandonada, Sérgio Buarque vê na mesma casa patriarcal uma das causas do abismo em que a unidade nacional se encontra dependurada. (p. 182/183)
Buarque deseja exorcizar o passado a partir de uma leitura historista do real, onde os seus tipos ideias perdiam “o mistério da abertura ou do fechamento da alma ao confrontar o mistério da ‘novidade no mundo’”. A respeito disso, Martim faz uma boa observação:
Ao analisar a realidade concreta por meio dos tipos ideias, Sérgio Buarque ficou na via de mão única, preferindo estudar a História como um processo em que a estrutura é indefinida e cujo sentido está dentro dela. Como sua visão é imanente (dentro do próprio objeto que está sendo estudado) à História, sua noção sempre será de mudança com unidade, não de mudança na unidade e unidade na mudança. Por isso ele não consegue ver além das representações ideais, ocultando o verdadeiro problema da ordem que seus livros querem expressar, ao observar a via simbólica como mero artefato que o homem produz, para dar algum sentido a seu irracionalismo e também para fugir constantemente das portas da morte. (p. 221)
Martim aponta que há em Buarque uma passagem consequente da utopia, dessa tentativa de melhorar o país de acordo com a marcha do progresso, para um Estado mobilizador que solucione os problemas nacionais, simulando a incompletude da existência. Esta trilha cai numa espécie de totalitarismo cultural que destrói a consciência individual e deforma as almas. Assim, para o autor, a “mentalidade do círculo dos sábios” formou-se no abismo entre passado e presente, no falseamento deste fundo insubornável do Ser.
O niilismo esteticista nega a soberania do Bem e nos leva ao quarto ato, a “Crônica de uma Morte Anunciada”, que representa o nosso modernismo e os seus ventos de destruição. Mario de Andrade criou um país que só existia em sua mente por causa “do medo de ter descoberto que recusara ser um servo do rio escuro que preenchia sua alma”. Entre o “fascínio feérico de São Paulo e o natural selvagem do Tietê”, escolheu a fuga do destino.
Os modernistas queriam mobilizar a sociedade brasileira por meio de um projeto estético que acompanhava um projeto político. Um exemplo disso, podemos encontrar na obra de Paulo Prado, que sugere uma resolução estética para nossos problemas através de uma guerra ou de uma revolução. Isto simboliza a crença num poeta ou numa liderança para integrar Estado e o resto da Sociedade, dar unidade imanente a nossa experiência.
Continuando nossa descida ao inferno, invadimos o abismo com Nelson Rodrigues e Antonio Candido. Para Martim, fechados à realidade transcendente, os escritos de Cândido nos mostra a revolta do Homem contra a Criação, a substituição de Deus por um Demiurgo, que ora se apresenta pela Ideia, ora pela História, ora pela luta de classes. Cândido submete ainda mais nossa literatura à ideologia e ao poder do “Deus selvagem” do Estado.
Finalmente, chegamos a Guimarães Rosa e o seu Grandes Sertões: veredas. Para o autor, a alma é o palco do livro e ele vai à raiz do comportamento nacional e o aprofunda. Paradoxalmente, ele é o romance de formação do Brasil, o registro poético da “transformação do caos de experiências e conhecimentos em uma estrutura orgânica”. O sertão se transforma, assim, numa forma de pensamento de um país que só pode ser descoberto em seu interior.
Diferente de Euclides, que tomou o Sertão como um “deserto particular”, Rosa transformou-o em nossa experiência metafísica. A elaboração deste Sertão é um “labirinto de palavras que, no seu centro, protege um Minotauro aterrorizante”. Ao contrário de Otto Lara Resende, Rosa não optou pelo “princípio ético da existência, que consiste na união do Bem com o Belo, tendo o Verdadeiro como norte”. Desvelando na escrita literária o diabolismo que tortura o país, Rosa foge – como Mario de Andrade – do seu destino, pois “não quiseram navegar na terceira margem do rio porque tiveram medo de atravessar o pesadelo do paradoxo para perceberem o que havia do outro lado da noite escura da alma” (p. 469).
Esta descida finaliza-se no “Carandiru Intelectual” de nossos tempos, uma união entre inconsciência, falseamento e apatia em todas as camadas sociais. Junto com isto, há um totalitarismo cultural que permeia toda vida social brasileira. Este conceito é assim explicado por Martim:
(…) O totalitarismo cultural não é um governo ditatorial, mas é algo muito pior: trata-se de uma forma muito precisa, quase mecânica, de querer alterar o que reconhecemos como ser humano, modificando o que sempre soubemos por meio de relatos históricos e literários, em um discurso aparentemente político que resolveria todos os nossos problemas graças ao desejo de perfeição aqui neste planeta que já foi chamado por nossos avós e pais de “vale de lágrimas” (p. 492)
Nisto, revela-se o grande interesse de Martim que levou a feitura deste livro: procurar os desdobramentos que levaram ao totalitarismo cultural dos nossos tempos no Brasil. Eles podem ser encontrados, segundo o autor, na poética da dissimulação de Machado de Assis, na prisão dos floreios barrocos de Gregório de Matos, na frustração de Padre Antônio Vieira, na retórica do rancor de Euclides da Cunha, nos tipos ideias de Sérgio Buarque e mesmo na língua impossível de Guimarães Rosa. A literatura serve assim o autor para crítica cultural da alma brasileira.
2.
Durante o período moderno, com a afirmação de uma moral laica civil como império da lei, o processo crítico que imanentiza o absoluto se autojustifica. Cada um se torna soberano em relação a todos e sujeito ao juízo de todos. O antigo sermão particular do padre se transforma em crítica que todos exercem e se sujeitam como expiação dos próprios pecados. Cada pessoa torna-se então juiz que, em virtude do esclarecimento alcançado, processa todas as questões.
Uma das maiores ilusões no uso da crítica (intensificada desde o Iluminismo) é achar que se pode opor-se a algo como um todo. Se assim o fosse, o objeto tratado não poderia sequer ser pensando. Por exemplo, podemos repudiar a violência, mas há algo nela que sempre nos cerca, seja como reação imediata ou como reciprocidade. Quando ela é exercida, não há fuga, não há outro mundo possível, pois é uma situação colocada que exige uma resposta, moldando as possibilidades desta.
Como mostra Koselleck em Crítica e crise, as bases ideológicas do mundo moderno residem nas transformações do século XVIII com o Iluminismo, e a sua dinâmica interna é fruto da ascensão, agonia e queda dos Estados absolutistas. O liberal do século XVIII critica o absolutismo, propõe a emancipação da consciência privada na esfera pública como uma moral laica civil e, no fim, quando pensa estar em completa oposição àquela situação, é ela que molda suas respostas e ele adquire as formas daquilo que se opõe a partir da reciprocidade. O que Koselleck revela no tecido histórico do mundo burguês, as reciprocidades dentro de uma oposição, René Girard apresenta em sua antropologia, quando nos mostra que numa rivalidade se imita as formas do adversário porque o objeto desejado é o mesmo.
Nos últimos anos, foram publicados diversos livros buscando reavaliar toda nossa história em diversas áreas contra a hegemonia cultural de esquerda. Um livro sobre como toda nossa história política é feita de escolhas erradas, um livro sobre como toda nossa cultura foi feita de perigosos envenenamentos, etc. Em geral, parte-se do princípio que vivemos à beira do abismo no presente e que isto ocorre por escolhas erradas no passado que foram se acumulando. Nossos antepassados viram caricaturas culpadas pelos problemas de hoje em nome de escolhas ruins, mas estas foram dessituadas de suas condições históricas. O país e o seu passado é quase sempre tratado de maneira caricatural e retórica, em busca da afirmação de outras ideologias que se camuflam na crítica à ideologia hegemônica de outrem.
Em busca de respostas simples para a inadequação do presente, resumem-se questões muito mais complexas que envolvem modernidade e escatologia em problemas nacionais. Sobre o barbarismo cultural em todo o mundo, basta ver os ensaios de Roger Scruton e Theodore Dalrymple. Querendo acertar as contas com os mortos, recai-se no maior perigo à alma que nossa experiência em ser brasileiro oferece: sucumbir à cultura do repúdio, odiar o Pai. Poucas características são tão comuns à experiência de ser brasileiro do que transformar a pátria no próprio denominador da incompletude humana. O Brasil substitui o pecado que atormenta. Dona dos sermões, a crítica revela nossos defeitos, nossos problemas e, principalmente, nossas perigosas tentações. Todavia, nunca se pensa neste necessário outro: aquilo que nos traz uma fraqueza nos traz ao mesmo tempo uma fortaleza.
Martim tem talento e leitura, o que motiva o seu livro é uma ótima intuição, mas há problemas na maneira como sua ideia geral vai se resolvendo na construção do argumento. Além de necessária, ninguém pode negar a sua boa crítica cultural contra as mazelas que podem deformar as almas; mas escorrega na desmedida do desejo que quase sempre se revela naquele tom perene de autocomiseração: antes que me acusem de ser um ninguém, irão me caçar depois desse livro, etc.
No fundo, com ou sem razão, são seiscentas páginas de amargura a respeito do povo brasileiro. Penso numa senhora que aperta a medalhinha do Cristo crucificado quando o coração aperta pensando no filho viciado, na alegria ingênua do humilde que não se angustia diante das tormentas do mundo, na esperança e humildade do desgraçado, na fé autêntica e sem esteticismo do sertanejo que desconhece as frescuras burguesas, na nossa completa abjeção ao aborto e a outros sacrifícios pagãos; olho para o livro e vejo uma inadequação, uma alma nacional tão em suspensa quanto os índios dos modernistas.
Diz Martim que “o mundo infernal que invadia a sociedade brasileira era, antes de tudo, o resultado de uma série de decisões erradas originadas do nosso anseio de cobrir-nos da poeira da glória” (p. 324), mas o problema é quando tirar a poeira da glória se torna a nossa própria glória, e nesse labirinto da reciprocidade a crítica se torna um disfarce do mesmo objeto desejado. Talvez, esse mundo infernal não seja as pessoas lá fora, pois nem o apocalipse é de todo mau, mas apenas um niilismo mal resolvido.