Há o Glucksmann que deixou de crer na revolução, mas que jamais deixou de se enraivecer.
Bernard-Henri Lévy, Le Monde, 10 de novembro
Desde o início desta manhã, em minha cabeça, todos os Glucksmann que eu conheci se precipitam e me chamam nas zonas da memória que não imaginava ter que revisitar tão cedo.
Há o belo jovem interpelando um conjunto de trabalhadores e estudantes, deve ser uma dezena, a cena se passa na rua do Bourg-Tibourg, em Paris, 1969 ou 70, em um apartamento emprestado por um “camarada progressista” para esse encontro “clandestino” organizado por uma célula da Esquerda Proletária.
Há o Glucksmann estrategista e tático que revejo tomando de assalto uma sala do Louis-le-Grand para desenhar, com giz, no quadro onde ainda havia alguns caracteres de grego antigo, as grandes linhas da ofensiva do Tet e as recomendações que ele dirige, com a maior seriedade, através de nós alunos, ao general vietnamita Giap.
Há o Glucksmann de tempos abençoados, onde ainda se podia acreditar que o fogão necessariamente tem razão contra o devorador de homens, e que o olho do povo sempre enxerga correto.
Há o Glucksmann que dava um pouco de medo em Raymond Aron, na medida em que seu conhecimento de Clausewitz era a um só tempo perfeito e implacável, exaustivo, mas com o objetivo de mudar o mundo: lembrança de um café da manhã em 1978, em um pequeno restaurante da rua Dragon que parecia um vagão de trem – e, lá, um senhor bastante velho, bastante cortês, que, tomando conhecimento do uso revolucionário que um de seus melhores estudantes em breve faria de seus ensinamentos, parecia tomado do mesmo terror sagrado de Gide quando encontrou pela primeira vez Bernard Lazare e percebeu que se podia colocar qualquer coisa acima da literatura.
Há o Glucksmann que encantava Michel Foucault, que via, em suas fúrias, a tradução exata de seu axioma segundo o qual no princípio existe, não o poder, mas o espírito de resistência: o riso de Foucault; a alegria de Foucault; e esse outro café da manhã, mais ou menos à mesma época, onde, André tendo acabado de casar diante dele Sartre e Soljenítsin, o espírito da resistência francesa e aquele dos refratários do Gulag, o autor de Vigiar e punir escreve num canto de mesa o esboço de um artigo sobre Os mestres pensadores que intitulará “A grande cólera das coisas” e que enviaria ao que ainda se chamava Le Nouvel Observateur.
Há o Glucksmann que deixou de crer na revolução, mas que jamais deixou de se enraivecer.
Há esse estado de cólera que lhe era como uma segunda natureza e que dava à menor de suas declarações um tom de anátema e raiva.
Há o Glucksmann estrategista e enraivecido, os dois andavam juntos, era como uma respiração dupla que ia do coração ao cérebro e vice-versa – eu nos revejo, uma noite de maio de 1977, andando pela rua Cognac Jay, em Paris, rumo ao estúdio de Bernard Pivot: estavam lá Françoise Verny, nossa editora; um Maurice Clavel no final de suas forças, titubeante, e prestes a lhe passar o bastão; estou convencido de que foi lá, andando pela rua, que lhe ocorreu a famosa fórmula que, antes de rodar o mundo, faria soprar um vento de revolta inédito sobre o campo da emissão literária de referência: “as tribunas do programa comum estão vazias”.
Há o Glucksmann fiel a seus pais imigrantes, atravessando a Europa em chamas, devastada pelos nazistas – sempre pensei que ali residia seu laço de fidelidade e de vida.
Há o Glucksmann intratável sobre os direitos dos humildes, não menos que sobre o orgulho dos poderosos e dos sabichões que lhe causava horror – sem uma pitada de populismo, mas tomando partido do homem que tinha, segundo ele, a verdadeira grandeza.
De certos escritores, diz-se que eles inventam um clichê: o dele foi um povo que eu tive a impressão, num dia de 1995, que ele estava inventando – porque quem, a parte os leitores de Tolstói, já havia na época realmente ouvido falar do povo checheno e da nova temporada no inferno na qual estavam entrando? Ele não tinha o estranho hábito, ademais, de lhe agradecer quando você escrevia “checheno” em um artigo, assim como outrora me enviava um telegrama quando eu citava Soljenítsin?
Eu o revejo, em um anfiteatro no México, explicando a uma multidão de estudantes ainda castristas que era Castro que devíamos comparar a Pinochet: a multidão o repreende; começam insultos; projéteis se aproximam da bancada, e ele tem a ideia de propor a instauração de um “soviete de recinto” com tempo de palavra igual e alternado entre nós e eles; na fileira da frente, estava sua esposa Fanfan, que eu não sabia se recebia suas palavras ou lhes assoprava.
Escuto zombadores dizendo que ele se ocupava demais com chechenos, bósnios, líbios, ucranianos, georgianos e outros amaldiçoados do mundo atual – e o revejo considerando com tristeza e perplexidade aqueles de seus pares que pareciam acreditar, de fato, que o mundo girava em torno de nossas eleições regionais e cantonais, da identidade francesa ameaçada, ou de um cosmos reduzido às fronteiras da província galesa.
Há o Glucksmann que tinha razão e o Glucksmann que acabava, com o mesmo fervor e o mesmo sentimento de estar certo, se enganando – a grande diferença para outros, muitos outros, é que ele o dizia, que ele tinha a religião do erro posteriormente pensado, meditado: eu tenho as minutas de nossa conversa, um dia de janeiro de 2007, onde ele me anunciou sua decisão de apoiar Nicolas Sarkozy; e tenho aquelas de nossa outra conversa, alguns anos mais tarde, quando a causa dos ciganos e de outros povos o fez mudar de opinião.
Há o Glucksmann que nenhum contratempo, nenhuma derrota, nenhuma verdade pretensamente revelada por pretensos especialistas dissuadia de permanecer fiel a causas justas: também tenho sob os olhos o magnífico texto que ele me confiou para projetarmos na praça Maidan, em Kiev – “me chamo André Glucksmann, dizem que sou filósofo; só a doença me impede de estar com vocês; mas eu lhes enviei o que tenho de melhor, meu filho Rafael, que permanece ao lado de vocês, em suas barricadas, e que atualmente está com vocês, próximo a vocês, para os acompanhar nesse admirável caminho rumo à independência, à liberdade e à democracia”.
E tenho essas imagens dele, tão comoventes, junto a um Mikhail Khodorkovski recém saído do Gulag putiniano: há muito eu não o via, e o achei frágil, emaciado, caminhando a passos pequenos, um pouco triste – mas belo, sempre belo, e, sobretudo, com essa revolta intacta, essa cólera fria e vigorosa contra os novos sabujos de Moscou, a direita europeia, e a vergonha que eles nos inspiram.
Há o Glucksmann com quem aconteceu de eu querelar – mas isso nunca passou, como dizem os mestres, de uma outra maneira de vivermos juntos.
Há o Glucksmann que era sem par em desprezar os homens ou mulheres que pareciam, um pouco, com aquele que ele havia sido e pensava ter abandonado – mas será mesmo? Será que essa veemência não era apenas mais uma forma de ser fiel a si mesmo?
De todas essas imagens, não sei qual me emociona mais.
Quando um homem morre, jamais se sabe qual parte dele se evapora, como a parte dos anjos, e qual é a parte que aqui permanece e faz dele um contemporâneo capital.