Para uma experiência de brutalidade inaudita, uma prosa de concentração inaudita

Varlam Chalámov definiu cada conto seu como "uma bofetada no stalinismo".


"Contos de Kolimá - 1", de Varlam Chalámov (Editora 34, 2015, 304 páginas)

“Contos de Kolimá – 1”, de Varlam Chalámov (Editora 34, 2015, 304 páginas)

Detido pela primeira vez em 1929 como “elemento socialmente perigoso”, e com a última sentença encerrada em 1951, Chalámov passou, entre prisões e breves períodos de liberdade, cerca de 20 anos nos campos de trabalho da URSS. A condenação pelo artigo 58 do código penal soviético de 1922, relativo a crimes políticos por atividade cotrarrevolucionárias, levou-o num primeiro momento aos Urais e, mais tarde, à região de Kolimá.

Os Contos de Kolimá, materialização literária de sua experiência nos campos, circularam intensamente na URSS sob a forma clandestina de samizdat, antes de, beneficiando-se da glásnost, finalmente serem editados em 1989, todos os 103 contos – sete anos após o falecimento do escritor que jamais deixara o país, onde atuou como jornalista e conseguiu editar poemas.

Contos de Kolimá representa o mais importante testemunho da tragédia do século XX, e é um fenômeno único na literatura russa. Diz Chalámov:

Por que escrevo contos? Eu não acredito na literatura. Não acredito em sua capacidade de corrigir o homem. A experiência da literatura humanista russa resultou, diante dos meus olhos, nas sangrentas execuções do século XX. Eu não acredito na possibilidade de evitar um fato, de anular sua repetição. A história se repete. E qualquer fuzilamento de 1937 pode ser repetido. Por que então escrevo? Escrevo para que alguém, apoiando-se em minha prosa alheia a qualquer mentira, possa contar sua própria vida, num outro plano. Afinal, um homem tem de fazer algo.

E Chalámov fez. Para escrever seus contos, precisou novamente voltar a Kolimá e reviver todo o terror, a fome, o frio, o confronto com o Estado totalitário. E venceu o inferno com a criação.

Era preciso decidir algo, inventar algo com seu cérebro enfraquecido. Ou então morrer. Potáchnikov não temia a morte. Mas sentia um desejo apaixonado e secreto, como uma última teimosia, o desejo de morrer em outro lugar, num hospital, num leito rodeado de atenção de outras pessoas, nem que fosse uma atenção burocrática, e não na rua, não no frio, não sob as botas da escolta, não no pavilhão, no meio dos palavrões e imundície, sujeito à completa indiferença de todos. Ele não culpava as pessoas pela indiferença. Há muito entendera de onde vinha esse embotamento da alma, esse frio espiritual. O frio cortante, aquele mesmo que transformava o cuspe em gelo no ar, antingia a alma humana. Se ossos podiam congelar, também o cérebro podia congelar e embotar, também a alma podia congelar. No frio intenso, não era possível pensar em nada. tudo fica simples. Com frio e com fome, o cérebro abastecia-se mal, as células cerebrais secavam – um processo material evidente, e só Deus sabe se esse processo é reversível, como dizem na medicina, semelhante ao congelamento dos membros, ou se os danos são permanentes. Era assim com a alma, congelava inteira, encolhia-se e talvez ficasse fria para sempre. [Conto “Os Carpinteiros”]

O leitor de contos de Kolimá não tem tempo para “histórias inventadas”, e a única forma de literatura que poderia satisfazê-lo seria um documento de memória, emocionalmente marcado com a alma e o sangue, onde tudo é documento e, ao mesmo tempo, constitui uma prosa emocional.

Varlam Chalámov definiu cada conto seu como “uma bofetada no stalinismo”. E, como uma bofetada, deve ser curta, sonora.

Amálgama




Alessandra Barcelar

Graduada em História, com atualização em Análise da Conjuntura Política e Econômica, Ética e Finanças (FGV).


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