Varlam Chalámov definiu cada conto seu como "uma bofetada no stalinismo".
Detido pela primeira vez em 1929 como “elemento socialmente perigoso”, e com a última sentença encerrada em 1951, Chalámov passou, entre prisões e breves períodos de liberdade, cerca de 20 anos nos campos de trabalho da URSS. A condenação pelo artigo 58 do código penal soviético de 1922, relativo a crimes políticos por atividade cotrarrevolucionárias, levou-o num primeiro momento aos Urais e, mais tarde, à região de Kolimá.
Os Contos de Kolimá, materialização literária de sua experiência nos campos, circularam intensamente na URSS sob a forma clandestina de samizdat, antes de, beneficiando-se da glásnost, finalmente serem editados em 1989, todos os 103 contos – sete anos após o falecimento do escritor que jamais deixara o país, onde atuou como jornalista e conseguiu editar poemas.
Contos de Kolimá representa o mais importante testemunho da tragédia do século XX, e é um fenômeno único na literatura russa. Diz Chalámov:
Por que escrevo contos? Eu não acredito na literatura. Não acredito em sua capacidade de corrigir o homem. A experiência da literatura humanista russa resultou, diante dos meus olhos, nas sangrentas execuções do século XX. Eu não acredito na possibilidade de evitar um fato, de anular sua repetição. A história se repete. E qualquer fuzilamento de 1937 pode ser repetido. Por que então escrevo? Escrevo para que alguém, apoiando-se em minha prosa alheia a qualquer mentira, possa contar sua própria vida, num outro plano. Afinal, um homem tem de fazer algo.
E Chalámov fez. Para escrever seus contos, precisou novamente voltar a Kolimá e reviver todo o terror, a fome, o frio, o confronto com o Estado totalitário. E venceu o inferno com a criação.
Era preciso decidir algo, inventar algo com seu cérebro enfraquecido. Ou então morrer. Potáchnikov não temia a morte. Mas sentia um desejo apaixonado e secreto, como uma última teimosia, o desejo de morrer em outro lugar, num hospital, num leito rodeado de atenção de outras pessoas, nem que fosse uma atenção burocrática, e não na rua, não no frio, não sob as botas da escolta, não no pavilhão, no meio dos palavrões e imundície, sujeito à completa indiferença de todos. Ele não culpava as pessoas pela indiferença. Há muito entendera de onde vinha esse embotamento da alma, esse frio espiritual. O frio cortante, aquele mesmo que transformava o cuspe em gelo no ar, antingia a alma humana. Se ossos podiam congelar, também o cérebro podia congelar e embotar, também a alma podia congelar. No frio intenso, não era possível pensar em nada. tudo fica simples. Com frio e com fome, o cérebro abastecia-se mal, as células cerebrais secavam – um processo material evidente, e só Deus sabe se esse processo é reversível, como dizem na medicina, semelhante ao congelamento dos membros, ou se os danos são permanentes. Era assim com a alma, congelava inteira, encolhia-se e talvez ficasse fria para sempre. [Conto “Os Carpinteiros”]
O leitor de contos de Kolimá não tem tempo para “histórias inventadas”, e a única forma de literatura que poderia satisfazê-lo seria um documento de memória, emocionalmente marcado com a alma e o sangue, onde tudo é documento e, ao mesmo tempo, constitui uma prosa emocional.
Varlam Chalámov definiu cada conto seu como “uma bofetada no stalinismo”. E, como uma bofetada, deve ser curta, sonora.