Uma prisão de carne e ossos

Alternando capítulos pequenos e longos, o autor erradia uma competência narrativa de raros.


"Corpo sepulcro", de Mike Sullivan (Confraria do Vento, 2015, 220 páginas)

“Corpo sepulcro”, de Mike Sullivan (Confraria do Vento, 2015, 220 páginas)

Existem livros que deixam a impressão a quem os lê de que os autores atenderam aquele conselho de Hemingway. O de que o escritor deve se sentar em frente ao computador (na época da recomendação Ernest falara em máquina de escrever, mas adequemos a ferramenta de trabalho à modernidade) e sangrar. E sangrar, suponho, atende mais do que a uma metáfora; atende a, literalmente, escoar sangue em forma de palavras. Isso é visível (de acordo com o meio empregado melhor seria dizer: sentido) no livro de Mike Sullivan, Corpo sepulcro, em que cenas híbridas de emoção, asco e ternura ganham peso. Muito peso.

A frase acima, do título, é como se autodefine o personagem-narrador inominado do livro (mais uma belíssima edição da Confraria do vento, diga-se de passagem, que eleva, como outras e não poucas editoras nacionais – felizmente –, a outro nível a definição de livro-objeto a suas publicações). A história é entrelaçada em sua doença neurodegenerativa, que o transforma em apenas um ser inerte numa cama – referência às cabeças falantes do universo beckettiano? – em que, enquanto aguarda a morte, rememora sua relação decrépita com os pais após o falecimento (na verdade, desaparecimento) da irmã, Dominique, seus contatos libidinosos e o romance-padrão que tentou empreender antes do avanço da doença que retira de vez seus movimentos, tudo confeccionado numa linguagem enxuta, sem gorduras, apurada mas natural, sem culminar pedante.

Num primeiro instante, o tradutor sem nome ecoa todo o seu desencanto familiar depois do trágico acontecimento fraterno (cuja culpa por não ter conseguido resgatar a filha do lago, rio ou porção d’água em que submerge – a nomenclatura do meio líquido não é bem definida diante do ar rarefeito da memória –, mesmo não descrita, parece nas entrelinhas acompanhar desde então seu pai, e este, também nas entrelinhas, parece implorar com o olhar ao filho para que extinga seu sofrimento – não somente o sofrimento físico em que se vê vitimado e engessado –, somado às palavras e trejeitos desaprovadores de sua mãe tabagista ao rebento restante), posteriormente, quando solto momentaneamente destes laços, procura no sexo promíscuo e no que existe de mais abjeto na questão – diante da boa-e-velha-moral-familiar-recatada – uma derrocada final ou, vai saber?, sua redenção.

Antes disso, contudo, são salientadas as cenas em que um acidente de trânsito tira-lhe o amigo canino, simplesmente chamado de cão (como no dono, o nome é apenas um detalhe menor); difícil é não se comover com a dor do protagonista quando procura socorro ao animal e retorna para casa obrigando-se a conviver com a ausência da única companhia amistosa que parece ter experimentado sem restrições até então (a busca por ajuda médica ao bicho, inclusive, remete a descrições semelhantes feitas por Daniel Galera em seu Barba ensopada de sangue).

Em capítulos alternados a pequenos e longos o autor erradia uma competência narrativa de raros. Tal qual seu personagem, em que as reminiscências transfiguram-se em respiradas breves e outras mais espaçadas, tentando a cada virada de página sopros a mais de vida, embora transpareça rançosas nostalgia e melancolia ao que já passou, sem esquecer de analisar/exaltar suas características menos louváveis, assim como as dos que cruzaram seu caminho, permitindo-se descrever as minúcias de seus encontros sexuais e suas decadentes fantasias (o que, certamente, afastará leitores melindrosos), isso porque, segundo elucida em determinado momento, “a morte à vista me dá liberdade para contar esses segredos”. No decorrer da história, ainda impactado com a degeneração moral que buscou, defronta-se com uma relação dita normal aos olhos de terceiros, enveredando por um caminho em que não pode averiguar o solo que pisa.

Ademais, a narrativa é enriquecida com reviravoltas e pistas. Quando recebe a encomenda de traduzir a primeira edição da obra Orlando de Virginia Woolf, por exemplo, delineia-se uma comparação inevitável (e ainda maior) com sua irmã morta, cuja surpresa fica reservada aos que ainda abrirão as páginas do volume, sem a descrição por parte deste arremedo de crítico literário incorrendo em spoilers. O que se pode dizer é que na obra de Woolf o personagem homem torna-se mulher do dia para a noite, e isso já induz à conclusão implícita do personagem de Sullivan no tocante a trabalhar as ambiguidades de sua identidade masculina com a identidade feminina de Dominique, e, consequentemente, suas relações com a condição humana nos seus aspectos renascentistas e bestiais.

Ao explorar este organismo, a prisão em que o personagem intérprete passa a mastigar lembranças, o reconhecimento, a repulsa e o compadecimento dos demais diante dele vem por vezes em jorros, noutras vezes pingando. Mesmo sem um corpo ativo a memória não desaparece, e talvez não poder usá-lo para construir novas memórias a serem revistas – ou, simplesmente, esquecidas mais adiante – seja o definitivo (e terrível) conceito de morte.

Amálgama




Andrei Ribas

Autor, mais recentemente, de Animais loucos, suspeitos ou lascivos e Cada amanhecer me dá um soco. Vive em Santa Rosa-RS.


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