Caco Ishak estreia no gênero romance com uma obra fora dos moldes, cujo maior trunfo é o estilo narrativo, subversivo e frenético
Carlo Kaddish é um completo idiota. Um babaca de alto calibre. Na história caótica e desregrada de sua vida, somos apresentados às fascinantes tristezas de ser um homem branco pertencente à classe média alta de Belém. Descendente de judeus e artista plástico (provavelmente suas únicas qualidades), o protagonista vê-se rodeado, desde a adolescência, de uma turma de amigos medíocres e fracassados, todos sofrendo de crise de meia-idade em plenos vinte e tantos. Um pobre grupo de homens oprimidos pela sociedade contemporânea, tecnológica, que não lhes dá o valor merecido, ou seja, nenhum, porque eles não merecem nada.
Romance de estreia de Caco Ishak, Eu, Cowboy é uma imersão no submundo de personagens subversivos, tortos, reflexos de uma sociedade doente, fracassada. Kaddish, o protagonista, é o exemplo perfeito de um ser humano dispensável no planeta. Não que seja um grande transgressor — é pai ausente, irresponsável, usa drogas lícitas, sai com meninas menores de idade — de forma alguma; sua rotina é perfeitamente normal e aceitável perante os olhos da sociedade brasileira. Este é o maior problema. Não há nele nada que salte à vista, que mereça mais uma olhada, que mereça qualquer reconhecimento. Para quantos Carlos Kaddishes você já deu de ombros na vida? A banalidade de sua existência é sua própria verossimilhança. Dá até medo de virar a esquina e cruzar com ele por aí.
O maior trunfo da obra, contudo, não está em seus personagens, mas no valor artístico e inovador da narrativa: Ishak joga palavras como se as vomitasse; freneticamente, de forma crua, sem delongas, sem lirismos. A vida não tem nada de poética. O livro tem cheiros, sensações: ele cheira a bile, a cigarro amanhecido; dá dores de cabeça, tontura. É tudo deveras rápido e muitas pontas ficam soltas. É um correspondente literário ao vórtice niilista de Enter the Void. Mas não pense que há empobrecimento narrativo por conta do estilo frenético: a superficialidade das relações, o imediatismo da sociedade, as consequências de uma vida tecnológica, amparada por curtidas e memes, são alguns dos temas abordados por Kaddish em meio a suas elucubrações filosóficas, literárias e artísticas, de cunho menos efêmero (ainda que seja meio difícil acreditar que um adolescente punheteiro de 15 anos se debruçasse sobre Heidegger e Sartre enquanto vivia a fase mais estúpida de sua vida, mas vá lá).
Outro aspecto a ser ressaltado é o surgimento das “Garotas Perdidas” (mas sem dentes de vampiro como no filme de Schumacher), um grupo de meninas adolescentes, “punkecas” ninfetas rebolantes, que dançam sobre cacos de vidro e fazem o amor como coelhos, responsáveis por parte da decadência moral e física de Kaddish e seus amiguinhos, todos tão velhos e tão inexperientes, pois sempre foram adeptos de relações voláteis e passageiras. São elas que lhe conferem o papel de cowboy, dando-lhe um chapéu que utiliza para cobrir a careca, o dedo já no gatilho. A única redenção da vida do protagonista é sua filha, descoberta por ele no meio da infância, por quem nutre um amor verdadeiro e profundo, ainda que a negligencie juvenilmente, por conta de uísques e bolinhas.
No fim das contas, Kaddish é mesmo um cowboy. Só que um cowboy burro: em vez de dar vários passos, virar-se e acertar uma bala no inimigo, ele aponta a arma para a própria cabeça.
Bruna Gonçalves
Formada em Letras pela PUC-Campinas, revisora, tradutora e "semiescritora" nas horas vagas.
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