Elogio ao silêncio

Todos os personagens de "O Caminho Estreito..." são vítimas da grande História: não é só o suplício físico que os acomete, mas a interdição do amor e da vida.


"O estreito caminho para os confins do norte", de Richard Flanagan (Biblioteca Azul, 2015, 430 páginas)

“O caminho estreito para os confins do norte”, de Richard Flanagan (Biblioteca Azul, 2015, 430 páginas)

O silêncio é uma força primitiva que se manifesta, de tempos em tempos, em sua forma mais bruta quando ergue-se acima da linguagem para comunicar aquilo que a ela escapa. O silêncio, diz Camus em Regresso a Tipasa, é indiferente a política e a terceiros, não diz respeito a ideologias ou crenças, enquanto a linguagem é o produto de um mundo socialmente engajado, inclusive politicamente. O verdadeiro desafio de Richard Flanagan em O caminho estreito para os confins do norte foi encher as páginas do romance de silêncio. E a julgar pelo número delas, 430 na edição brasileira, e pela justa premiação no Man Booker Prize de 2014, o autor foi bem sucedido.

Em pronunciamento sobre o prêmio, o presidente do júri, A. C. Grayling, ressaltou a memorável história de amor construída, além do destaque dado ao sofrimento humano e aos laços de irmandade entre homens em guerra. São os três pilares que sustam o romance. Vamos a eles.

Sofrimento

A Segunda Guerra Mundial e seus muitos episódios nefastos constituem um território fecundo para a construção de narrativas, fictícias ou não. De uma maneira ou de outra, os nazistas parecem onipresentes nessas histórias, seja como protagonistas, antagonistas ou em algum ponto incerto do que concebemos por moral. É nesse aspecto que o livro de Richard Flanagan chama a atenção de imediato: O caminho estreito para os confins do norte se passa durante a Segunda Guerra, mas não há nazistas. As únicas menções a Hitler, sempre vagas e espaçadas, são trechos de conversa como o do sujeito que diz “Eu só me alistei para matar Hitler” – nunca mais que isso. São cinco menções em 430 páginas.

As imagens comuns do conflito, aquelas que já fazem parte do imaginário popular, estão lá, no entanto, descritas em minúcias. Os campos de concentração repletos de prisioneiros de guerras esquálidos em estados semi-cadavéricos, preenchendo o ambiente com suas presenças quase inumanas. Cenas de batalha em que seres humanos são despedaçados em questão de segundos. Pessoas doentes, famintas, obrigadas a trabalhar até os limites da exaustão máxima e depois. Tudo isso, porém, está bem longe da Europa.

É na região fronteiriça entre Tailândia e Myanmar que se passa a grande tragédia de Flanagan. Dorrigo Evans, seu herói, é um oficial australiano preso com suas tropas durante uma campanha na Cingapura e transformado em prisioneiro de guerra. No campo de trabalhos forçados para o qual foi encaminhado junto a outros soldados, Dorrigo, cirurgião de formação, goza de certos privilégios que escapam aos demais. Ele faz uso dessa posição para conseguir melhores condições para todos, ainda que geralmente falhe em sua busca fadada ao fracasso.

É no jângal, a floresta tropical tailandesa, que o núcleo principal da drama se desenvolve. Sob torturas, castigos e a severa escassez de condições básicas para uma sobrevivência digna – passa-se fome, faltam instrumentos médicos e medicações, não há anestesia para amputações, as horas de descanso são ínfima – o sofrimento torna-se o eixo ao redor do qual tudo gira enquanto se constrói a chamada Ferrovia da Morte, empreendimento do exército japonês para ligar o Sião à Birmânia no meio de uma das florestas mais úmidas do mundo e de rochas quase inquebráveis apenas com instrumentos manuais. A construção considerada impossível pelos britânicos, contou com a mão de obra de 60 mil prisioneiros em condições de escravidão, dos quais cerca de 15 mil morreram de doenças como disenteria, malária, beribéri, cólera ou leishmaniose.

Todos os personagens de O caminho estreito… são vítimas da grande História: não é só o suplício físico que os acomete, mas a interdição do amor e da vida. As doenças, a desnutrição e as frequentes infecções levam os escravos mais afortunados a se tratarem num hospital miserável, em geral o último lar dos moribundos. A sentença de morte é quase feliz na medida em que a pausa nos trabalhos forçados possibilita a evocação de memórias há muito obstruídas pela brutalidade dos campos de trabalho forçado. É a última vez que muitos podem se lembrar da família, dos amigos, da sua origem. Depois, a passagem quase certa para a morte.

Os valores dos prisioneiros australianos diferem radicalmente daqueles dos japoneses, mas Flanagan também assinala o sofrimento que o “espírito japonês” inflige aos súditos do imperador. A conclusão é óbvia: onde quer que existam valores morais, haverá também formas de amarras e impedimentos correspondentes. A submissão total aos desejos de um ser supremo, quase divino, que personifica o próprio Japão, anula a vontade individual. Alguns se adaptam, enquanto outros, como Nakamura, vagam por um eterno labirinto moral sem jamais vislumbrar a saída.

Depois de tudo, quando lembram do período, tanto japoneses quanto australianos tentam nomear o que viveram e caem no vazio absoluto da linguagem. A experiência vivida, manipulada pela memória ao longo dos anos encontra apenas sua expressão no silêncio das reminiscências solitárias de cada um.

Amor

Dorrigo Evans jamais conseguiu ser fiel a mulher alguma. Noivo de Ella, uma garota de família financeiramente privilegiada de Melbourne, promete se casar com ela após a guerra. A guerra termina, mas Dorrigo é incapaz de retornar à Austrália durante dois anos. Quando volta, Ella está ao seu aguardo e tem início sua vida de casado, mas não a felicidade.

Antes da guerra ele conhece Amy. O primeiro contato se dá numa livraria, quando uma garota misteriosa chama a sua atenção, uma camélia vermelha se destacando entre as mechas de seu cabelo. Posteriormente ele descobre que Amy é esposa de seu tio Keith, com quem não tinha muito contato e de quem se aproxima antes da partida.

Um amor arrebatador surge entre os dois; e ao mesmo tempo impossível. A infidelidade de ambos chega a um fim prematuro quando Keith descobre e o casal de amantes segue caminhos diferentes. Já casado com Ella, Dorrigo descobre que o amor sempre esteve presente na única mulher que lhe esteve sempre ausente. Em seus relacionamentos extra-conjugais deitou-se com inúmeras mulheres; nenhuma delas chegou perto de Amy. O silêncio de um sentimento do qual não se pode falar só encontra consolo em memórias que retornam clandestinas à superfície.

Fraternidade

À cineasta japonesa Naomi Kawase é atribuída a frase “Eu vejo a beleza do mundo através de homens que chegaram no limite.” O caminho estreito para os confins do norte contém dezenas deles, homens de origens distintas, de classes sociais e repertórios culturais que pouco dialogam entre si, mas coabitando o mesmo destino extremo na Ferrovia da Morte. No campo onde habitam os prisioneiros os laços de amizade e irmandade são tecidos lenta mas verdadeiramente, sendo talvez a única força capaz de manter firmes os poucos homens que suportam o nascer do sol a cada novo dia.

O primeiro impulso a se extinguir é o sexual. Findo o desejo, os pensamentos obsessivos com a pessoa amada, resta a realidade brutal do presente. Os corpos apertados em barracos pouco protegidos da umidade do jângal tailandês facilitam a proximidade, a troca de confissões e histórias que começam com memórias, cedem à esperança e terminam inevitavelmente na forma mais pura de desalento.

Cada um, no entanto, tem sua importância: o desenhista clandestino que retrata às escondidas e com recursos escassos a vida na ferrovia; o corneteiro que toca a canção “Last Post” nos funerais; os garotos imberbes que nem chegaram aos dezoito anos e os veteranos já com décadas a frente. Todos são vitais para a sobrevivência do grupo até onde os limites do corpo suportam.

É por isso que um pequeno número de soldados se reúne após a guerra. Nenhum deles se perdoa por um acontecimento vital no desenvolvimento do romance, bárbaro e doloroso para todos os envolvidos. Eles decidem colocar em prática desejos que não eram seus como uma forma de honrar o companheiro não presente e redimir um erro do passado comum a todos eles. A forma como isso se dá é bastante bela, em mais uma demonstração da proeza narrativa de Flanagan.

No fim de tudo…

Richard Flanagan não é um moralista vazio. Seus personagens odeiam a virtude e o excesso de benevolência. Por outro lado, mesmo após o escoamento quase total dos sentimentos é preciso que reste alguma coisa – e o que resta é o que impele adiante, a força que os mantém vivos mesmo que, como no caso de Dorrigo Evans, essa sobra seja fonte de outro tipo de sofrimento. A lição final é a de que um sofrimento pode fazer com que outro se torne suportável, pode ser o suficiente para manter um homem ou muitos de pé.

Por fim, todo o romance foi escrito levando em conta a experiência do pai do autor, o prisioneiro 335 a quem o livro é dedicado e que foi um dos muitos que participaram da construção da Ferrovia da Morte. A publicação do romance foi marcada pela morte de seu pai no mesmo dia do lançamento – a ironia mais amarga a coroar um livro já essencialmente triste. Mas daí pra frente Flanagan teve apenas alegrias, tendo sido reconhecido como o grande autor australiano do presente e promessa de um futuro prêmio Nobel para o país.

O caminho estreito para os confins do norte, enquanto isso, já está próximo de ser um grande marco da literatura contemporânea. Embora sua prosa não tenha nada de novo – William Faulkner já usava as mesmas técnicas há mais de meio século -, é bem escrito, contundente e humano, demasiado humano em seus múltiplos silêncios.

Amálgama




Douglas Marques

Curitibano, graduando em Psicologia, leitor assíduo e escritor nas horas vagas.


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