O STF furtou-se aos limites da aplicação da lei e inventou um modo de decretar a prisão do senador Delcídio do Amaral.
No dia 25 de novembro, Delcídio do Amaral, senador pelo PT, foi preso em flagrante. Foi a primeira vez na história da República que um senador no exercício de seu mandato foi preso. A prisão foi antecedida de controle judicial pelo STF, que decidiu pela legalidade da prisão e decretou-a. Muitas questões podem ser suscitadas pela prisão, especialmente as dúvidas que surgem pelo seu ineditismo. Como, por exemplo: tendo em vista que o flagrante não pode manter ninguém preso (ele deve ser convertido em liberdade provisória ou prisão preventiva), qual a natureza da manifestação do Senado (pode ele converter o flagrante em prisão preventiva, haja vista que o art. 53, § 2º parece afirmar que os congressistas não podem sofrer prisão preventiva)? Entretanto, este texto não busca enfrentar essas questões.
Se o senador é realmente culpado (e parecem fortes os indícios nesse sentido), somente o devido processo penal poderá dizer. O essencial aqui, parece-nos, é discutir a constitucionalidade da decisão do STF que legitimou a prisão em flagrante, com fundamento no art. 53, § 2º da Constituição. Sendo assim, buscaremos responder a três questões: a gravação ambiental feita por terceiro, sem conhecimento de outras pessoas, pode ser utilizada como prova incriminatória em um processo penal? Estava, realmente, o senador em situação de flagrante delito? O crime a ele imputado era inafiançável?
A gravação ambiental já foi considerada, em outras oportunidades, como prova inadmissível pelo próprio STF. A fundamentação de tal consideração está em que a gravação por um dos interlocutores de conversa pode ser utilizada em seu favor (para sua defesa em juízo, por exemplo). O que estaria vedado seria a utilização da gravação pelo Estado contra indivíduo que não consentiu ou, ainda, sem a devida autorização judicial. Entretanto, em 2009, o Supremo julgou um Recurso Extraordinário sob repercussão geral e decidiu pela licitude de tal espécie de prova. Sendo assim, ainda que muitos possam discordar da decisão sobre a legalidade dessa modalidade de prova, certo é que se manteve a integridade e a coerência do Direito neste ponto.
A segunda questão torna-se menos complicada uma vez admitida a licitude da gravação ambiental realizada pelo filho de Nestor Cerveró como prova incriminatória. A grande dúvida seria se estariam presentes os requisitos para a configuração do crime de organização criminosa (art. 2º c/c art. 1º, § 1º da lei 12.850/2013), afinal não podemos confundir] o conceito de organização criminosa com a mera existência de concurso de agentes (o fato de um crime ser praticado por diversas pessoas). Com a gravação, parece-nos que os requisitos demonstram-se preenchidos. Sendo, então, o crime de organização criminosa um crime permanente, logo o flagrante é possível enquanto durar a prática da conduta (artigo 303, do CPP).
A última questão, entretanto, é a mais problemática. Os crimes inafiançáveis são aqueles que a Constituição ou a lei definem como tais. A constituição traz três casos (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV): o racismo; a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos; e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. O Código de Processo Penal limita-se a repeti-los nos incisos do art. 323. Existem outros crimes inafiançáveis definidos em leis especiais. O que nos interessa aqui é que o crime imputado ao senador (organização criminosa) não é um crime inafiançável. Então, como pode o STF legitimar a prisão em flagrante se o artigo 53, § 2º exige que o crime seja inafiançável?
O STF realizou uma “katchanga”, como diria Lênio Streck, para criar a inafiançabilidade, no caso em questão. Explico. No artigo 324, do CPP, temos um rol não de crimes inafiançáveis, mas de situações nas quais não poderá ser concedida fiança, seja por razões lógicas ou por razões de política criminal. Por exemplo, não pode ser concedida fiança àquele que tiver quebrado fiança no mesmo processo. Entretanto, o fato da lei proibir a concessão de fiança a quem esteja nessa situação, não torna o crime pelo qual essa pessoa esteja sendo processada inafiançável. Isto é, os crimes não se tornam inafiançáveis em determinadas situações: ou eles são afiançáveis ou não são. Pois foi exatamente isso que o STF modificou nesse caso: o crime cometido pelo senador foi considerado inafiançável porque presentes os motivos que autorizavam a decretação da prisão preventiva. O STF furtou-se aos limites da aplicação da lei e inventou um modo de decretar a prisão do senador.
Quem ler a confusa decisão do ministro Teori Zavascki poderá ver que ele utilizou-se de razões teleológicas, sempre apelando para a gravidade da conduta do senador, como modo de justificar sua decisão. Parece que Teori acredita que os fins da decisão, ou a gravidade das condutas, justificam que o STF decida em desacordo com a Constituição. Até por isso, Teori cita voto assombroso da ministra Carmén Lúcia, que faz pensar sobre o estado de exceção:
à excepcionalidade do quadro há de corresponder a excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional
Esse é mais um dos casos que parecem mostrar como a posição institucional híbrida do STF (tribunal de cassação, corte constitucional e chefe do poder judiciário) – e talvez também o modo como a sua composição se dá – é ruim para a tarefa de guardar a Constituição. O tribunal supremo acaba tomando decisões extremamente casuísticas (sem respeitar a integridade e a coerência do Direito) e não consegue manter a posição de afastamento das questões políticas da nação para garantir a defesa e a aplicação da carta magna.
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Júlio Crespo
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Hugo Silva
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Rafael
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