As tensões entre o erotismo e a questão judaica convergem para um terceiro tópico: a corrupção das coisas terrenas.
Well I stepped into an avalanche,
it covered up my soul.
Leonard Cohen, “Avalanche”
Through centuries he lived in poverty.
God only was his only elegance.
Wallace Stevens, “The Good Man Has No Shape”[1]
1.
Dizem que foi um dos momentos mais impressionantes da história da música popular norte-americana. Em 1970, na Isle de Wight, costa sul da Inglaterra, um povoado pacato repleto de iates e de aposentados da marinha britânica, um mar de seiscentas mil pessoas esperavam pela atração que se seguiria à performance explosiva de Jimi Hendrix. Era a terceira edição do festival de rock que até então atraía cerca de cento e cinqüenta a duzentos mil participantes – o auge foi em 1968, quando Bob Dylan voltou a se apresentar após o famoso acidente de motocicleta. Talvez em homenagem a Dylan, alguém resolveu chamar o lugar onde aquelas seiscentas mil pessoas esperavam pela próxima atração de “Desolation Row” – a travessa da desolação –, uma referência à faixa sombria que termina o clássico álbum Highway 61 Revisited (1966).
Ninguém esperava por aquela multidão, muito menos os organizadores do evento. Todos estavam tensos. As pessoas se aglomeravam. Bebidas e drogas eram passadas adiante sem qualquer restrição. Hendrix havia simplesmente tocado fogo no palco e na própria guitarra. Era o auge da loucura da guerra do Vietnam, o ápice do que a chamada contracultura poderia chegar em influência global.
Enquanto isso, a próxima atração simplesmente dormia. Estava em seu trailer, vestido em uma espécie de macacão que poderia servir tanto como pijama e como uniforme de um exército particular. Aliás, era esse o nome da banda que o acompanhava: O Exército. Nada mais incorreto em um momento em que o antimilitarismo era a moda da vez. Como se não bastasse, ao contrário da microfonia e da distorção de Hendrix, o set list das canções que seriam tocadas previa bandolins, coros femininos, violões, violinos e pouca percussão. Sem contar o conteúdo das letras: não haveria nenhuma referência à guerra nuclear, aos políticos corruptos de Washington e ao fim do mundo, mas, sim, a dilemas existenciais, tentativas de suicídio e declarações de amor.
Quando o acordaram, não sabia se ainda sonhava ou se já estava desperto. Talvez fosse o efeito dos quaaludes que tomara antes de tirar a soneca, talvez fosse o fato de que eram três e meia da madrugada. Acordou, olhou para Bob Johnson, o produtor que o acompanhava na turnê, pegou o seu violão e foi para o palco. Kris Kristofferson, que havia sido vaiado algumas horas antes, o olhou apreensivo; Joan Baez, que encantara o público com suas letras pacifistas, não sabia o que poderia acontecer. Ao empunhar o violão, viu as seiscentas mil pessoas que o esperavam. Aproximou-se do microfone e disse: “Não estou vendo vocês. Não estou vendo ninguém. É possível que cada um acenda um fósforo? Assim posso vê-los melhor”. Lentamente, fagulhas de luz foram surgindo na multidão escura. “Isso mesmo, isso mesmo, acenda cada um seus fósforos, assim poderemos conversar melhor”, continuou a dizer, a voz meio sonambúlica, meio hipnótica. E então começou a dedilhar alguns acordes e sem nenhum aviso cantou pausadamente, como se quisesse que cada um ali ouvisse as vogais e as consoantes de cada verso: Like a bird on a wire/ like a drunk in a midnight choir/ I have tried in my way/ To be free[2]. O público ficou quieto durante o resto da apresentação de duas horas e, no final, aplaudiu efusivamente.
Assim como fez na Isle de Wight em 1970, Leonard Norman Cohen impôs elegantemente a sua liberdade ao público que o acompanhou em cinqüenta anos de carreira. É uma liberdade muito peculiar: não se trata de aceitar o que o público queria e sim de se reinventar a cada momento, conforme as necessidades da vida, conforme os obstáculos que encontrava na jornada rumo a um pouco de unidade interior, na aceitação de que tudo passa e nada fica neste mundo. Talvez essa reinvenção tenha uma raiz única – a questão judaica da qual ele não hesitaria em satirizar, chamando a si próprio de little Jew who wrote the Bible (o pequeno judeu que escreveu a Bíblia) – mas é também provável que seja algo que devemos também ter como meta, quiçá como exemplo. Como um pássaro preso no arame farpado, ele tentou ser livre ao seu modo. Mas também adentrou na avalanche em que quase perdeu o que lhe era mais precioso. A sorte é que viveu o suficiente para acompanharmos sua vitória.
2.
Poucos sabem, mas antes de Leonard Cohen cantar sobre Suzanne, as irmãs da misericórdia e embalar a nossa melancolia, ele foi considerado o James Joyce do Canadá. Não é um epíteto qualquer, principalmente para um país que já nos deu Neil Young, Joni Mitchell, David Cronenberg, Cowboy Junkies, Bernard Lonergan, Marshall McLuhan, Glenn Gould, Modris Ekstein, Feist e Saul Bellow. Nascido em 1934, Cohen começou a publicar poemas muito antes de entrar na prestigiada McGill University – o que lhe deu a fama de ser uma espécie de wunderkind literário. Apesar disso, o leitor não deve ficar muito entusiasmado com seus versos. Mesmo mostrando conhecimento técnico de rima e de versificação, quando lemos as primeiras poesias de Cohen – publicadas em 1957 com o título de Let us compare mythologies (Vamos comparar mitologias) – temos de admitir que ele é apenas de um bom poeta, com alguns grandes momentos, limitado em seu escopo estilístico e restrito a poucos temas.
São eles as tensões entre o erotismo e a questão judaica, que convergem para um terceiro tópico, futuramente desenvolvido nos romances e nos álbuns posteriores: a corrupção das coisas terrenas. O poeta se vê em um mundo onde a precariedade e a violência dominam todos os aspectos das relações humanas; não há outra solução exceto criar suas mitologias particulares, que, por sua vez, também não dão certo. Há também o fato de ser um expatriado, um sujeito que não encontra o seu lugar porque simplesmente seu povo foi exterminado há alguns anos. Ainda assim, é a missão do poeta espalhar a Palavra, mesmo que seja no meio do deserto, especialmente se este é uma cidade repleta de prédios e neve como Montreal.
Cohen guarda alguns trunfos na sua poesia, como se pode ver nos seguintes versos:
LOVERS
During the first pogrom they
Met behind the ruins of their homes –
Sweet merchants trading: her love
For a history-full of poems.
And at the hot ovens they
Cunningly managed a brief
Kiss before the soldier came
To knock out her golden teeth.
And in the furnace itself
As the flames flamed higher,
He tried to kiss her burning breasts
As she burned in the fire.
Later he often wondered:
Was their barter completed?
While men around him plundered
And knew he had been cheated.*
(AMANTES
Foi no primeiro pogrom que eles
se encontraram, atrás das ruínas de suas casas –
doces mercadores em troca: o amor dela
por uma História repleta de poemas.
E nos fornos quentes eles
conseguiram astuciosamente
dar um breve beijo antes que o soldado
extraísse o dente dourado dela.
E dentro da fumaça,
enquanto as chamas subiam,
tentou beijar seus seios fumegantes,
enquanto ela queimava no fogo.
Depois se perguntaria:
será que o escambo foi completado?
enquanto o espancavam
e sabiam que ele tinha sido enganado.)[3]
É uma mistura de e.e.cummings e de Primo Levi que comove, como também deixa o gosto de déjà-vu. Para Cohen, o erotismo – algo muito diferente do amor, representado pela palavra agape em grego – está em constante união ou conflito com a morte. E esta só ocorre em um único lugar: nos campos de concentração. Contudo, aos poucos, o jovem poeta também perceberá que ela se ramificará em outros ambientes do cotidiano moderno:
My lady was found mutilated
In a Mountain Street boarding house.
My lady was a tall slender love,
like one of Tennyson´s girls,
And you always imagined her erect on a thoroughbred
In someone´s private forest.
But there she was,
Naked on an old bed, knife slashes
Across her breasts, legs badly cut up:
Dead two days.
(“Ballad”)*
(A minha dama foi encontrada mutilada
Na pensão da Rua da Montanha.
Minha dama era um amor alto e elegante,
Como as garotas de Tennyson,
E você sempre a imaginava montada em um puro-sangue,
Em alguma floresta particular.
Mas lá estava ela,
Nua em uma cama antiga, os ferimentos de faca
Entre os seios, as pernas mal cortadas:
Morta há dois dias.)
(“Balada”)
Já podemos ouvir o eco do Cohen de canções como “Seems so long ago, Nancy” e “Famous Blue Raincoat”, mas o trecho acima também poderia ter saído das páginas macabras do Cormac McCarthy de Child of God (1974), terrível romance sobre um psicopata necrófilo. Na mitologia poética de Cohen, a violência e o sexo caminham de mãos dadas, e muito raramente consegue-se uma celebração da vida:
CELEBRATION
When you kneel below me
And in both your hands
Hold my manhood like a scepter,
When you wrap your tongue
About the amber jewel
And urge my blessing,
I understand those Roman girls
Who danced around a shaft of stone
And kissed it till the stone was warm.
Kneel, love, a thousand feet below me,
So far I can barely see your mouth and hands
Perform the ceremony,
Kneel till I topple to your back
With a groan, like those gods on the roof
That Samson pulled down.*
(CELEBRAÇÃO
Quando você se ajoelha para mim
E segura em ambas as mãos
O cetro da minha masculinidade,
Quando você enrosca sua língua
Na jóia de âmbar
E pede a minha benção,
Entendo aquelas garotas romanas
Que dançavam ao redor da fonte de pedra
E a beijavam até ela ficar quente.
Ajoelha-te, meu amor, mil pés abaixo de mim,
Até não poder ver mais tua boca e tuas mãos,
Realizar a cerimônia,
Ajoelha-te até eu alcançar tuas costas
Com um grunhido, como aqueles deuses no teto
Que Sansão ajudou a desmoronar.)
Não se pode esperar nenhuma comemoração porque, quando ela ocorre, tudo certamente desmoronará como o templo que Sansão destruiu com as próprias mãos. Há um fatalismo no relacionamento do poeta com a mulher amada que o isola cada vez mais, numa impossibilidade de retorno ao mundo tal como conhecia, que o aproxima do judeu errante que estava em Dachau:
For you
I will be a Dachau jew
And lie down in lime
With twisted limbs
And bloated pain
No mind can understand.
(“The Genius”)*
(Por ti
Serei um judeu de Dachau
Estendido na lama
Com os membros deformados
E uma dor infectada
Que ninguém pode compreender)
(“O Gênio”)
Além de ser o judeu errante, Cohen também personificará as figuras dos profetas Ezequiel e Isaías, do patriarca Jacó e de muitos outros personagens do Velho Testamento (ele próprio dizia em entrevistas que sua família o havia informado que talvez fosse descendente direto do sacerdote Aarão). Nada disso será suficiente – nem mesmo o fato de acreditar que seus poemas são “flores para Hitler”, como afirmou em um título da sua coletânea mais célebre. A descoberta de que a perda é a única constante na trajetória terrena se torna uma experiência que poucos conseguem suportar. A avalanche já enterrou o que havia de humano no poeta. O que resta agora é encontrar os rastros na neve:
AS THE MIST LEAVES NO SCAR
As the mist leaves no scar
On the dark green hill,
So my body leaves no scar
On you, nor ever will.
When wind and hawk encounter,
What remains to keep?
So you and I encounter,
Then turn, then fall to sleep.
As many nights endure
Without a moon or star,
So will we endure
When one is gone and far.*
(ASSIM COMO A NEBLINA NÃO DEIXA MARCAS
Assim como a neblina não deixa marcas
Na colina verde-escura
Meu corpo também não deixa marcas
No seu, nem nunca deixará.
Quando vento e uivo se encontram,
O que sobra?
Assim é o nosso encontro,
Depois nos viramos, e pegamos no sono.
Assim como há noites que ficam
Sem lua, sem estrela,
Assim ficaremos
Quando um de nós tiver partido.)[4]
Para isto, a poesia não será mais suficiente. O que Leonard Cohen precisava agora era transformar isto em drama, passar por uma versão melhor de si mesmo. Para atingir tal intento, ele deveria ser um romancista.
3.
Apesar de ter lançado mais três coletâneas de poesia entre as publicações dos dois romances que lançou na década de 60, Cohen sempre se considerou um ficcionista, não um poeta. A brincadeira favorita (The favourite game, 1963), seu primeiro romance, veio à luz entre The spice-box of the earth (1962) e Flowers for Hitler (1965); e Beautiful Losers (1966), o segundo romance, surgiu entre Parasites of Heaven (1967) e The Energy of Slaves (1969).
É o seu período mais criativo, se contarmos que, na mesma época, ele também lançaria os primeiros álbuns, Songs of Leonard Cohen (1967) e Songs from a room (1969). Mas é também a época em que a sua criatividade parece dar sinais de desaparecer da maneira mais dramática.
Isto começa a ficar evidente em A brincadeira favorita. Estruturado como um “romance de formação” (bildungsroman), o livro tem justamente como epígrafe o poema “As the mist leaves no scar”, exibido na segunda parte deste texto. Não é uma autoreferência aleatória: o romance dramatiza os fatos que originaram os poemas que Cohen escreveria no futuro. Esta nova perspectiva dos versos, que antes pareciam um tanto obscuros, abre a possibilidade para o leitor entrar em comunhão com a experiência original que levou o poeta a recriar os lampejos de algo permanente em um mundo repleto de perda e destruição.
O drama gira ao redor de Lawrence Breavman, o alter-ego de Cohen, construído como uma espécie de Stephen Dedalus canadense. Ambos tentam ser artistas em lugares paralisados pelo provincianismo local, ofendendo a tudo e a todos, em especial os amigos, as namoradas e os antepassados (judaicos e irlandeses, respectivamente), na revolta ao ambiente onde vivem usando da arrogância e de um certo satanismo manqué. Entretanto, se o Dedalus de Joyce consegue escapar da prisão que criou para si próprio, não ocorre o mesmo com Breavman. Nas páginas finais, que lembram muito mais o Albert Camus de O estrangeiro (1948) e o J. D. Salinger de O apanhador no campo de centeio (1952), o jovem artista se vê impedido de tentar o mínimo de comunicação com seus semelhantes. Está completamente isolado – e a salvação, se assim pode chamá-la, surge quando enfim percebe que a tal brincadeira favorita que percorre o livro como um leitmotiv – e que acreditávamos ser apenas mais uma das perversões sexuais que Breavman realizava com uma colega de infância – é a mesma epifania retratada nos versos de “As a mist”.
Breavman é o artista que tenta recuperar o que perdeu nas marcas passageiras do seu corpo marcado na neve. Depois disto, ninguém mais sabe o que pode acontecer com ele. Conseguirá sair de seu isolamento? Escreverá mais poemas? Assim como Stephen Dedalus se transformou anos depois em James Joyce, tornar-se-á o escritor chamado Leonard Cohen?
O que aconteceu de fato é que ele escreveu um segundo romance e assim estava prestes a se tornar o James Joyce canadense. Trata-se de Beautiful Losers (1966), uma das mais experiências mais radicais já feitas na literatura de língua inglesa. Mas o leitor deve tomar cuidado: não é um livro fácil, daqueles que você se orgulhará de dizer que leu no jantar descolado da sua turma. É indigesto, de leitura morosa, exigente, cerrada em duzentas e cinquenta páginas trabalhadas à exaustão. A trama não adianta nada do que vem pela frente: um narrador incógnito relembra o triângulo amoroso bissexual que teve com seu amigo, F., e sua esposa, Edith, que se matou ao se jogar no poço de um elevador. As memórias são interrompidas por delírios homoeróticos (narrados com uma precisão que chocará quem conhece Cohen apenas como um ladies man exclusivamente heterossexual) e por reflexões a respeito de Catherine Tekakwitha, uma índia Mohawk convertida ao catolicismo, que se autoflagelava em busca da santidade e que alegam ser a responsável por uma série de curas miraculosas ocorridas logo após a sua morte. Entre os extremos da danação e da salvação, Beautiful Losers parece ser mais um exercício fútil de virtuosismo literário até o momento em que Cohen volta ao seu velho e bom tema: a corrupção das coisas terrenas.
E ele não hesita em ir ao coração das trevas quando aborda novamente este tópico. Além das orgias panssexuais – com direito a participação especial de Adolf Hitler disfarçado de garçom argentino e estrelando um Vibrador Dinamarquês que ganha vida própria –, temos descrições de fluídos e dejetos humanos, decomposição de corpos, cicatrizes que não param de expelir pus, e outros sintomas indicadores de que não, a coisa não vai nada bem. Como se isto não fosse suficiente para o estômago do leitor, Cohen expõe os opostos em um tamanho choque estético que não sabemos mais se estamos lendo uma alegoria da decadência do Canadá, uma autópsia do mundo ocidental ou uma comédia pastelão influenciada por Henry Miller e Marquês de Sade.
Pode ser tudo isso e muito mais. Ao dar forma a algo que só existe porque não pode ter forma nenhuma – a perda que nos rodeia a cada momento –, Beautiful Losers é também o testamento do romancista e do poeta que julgávamos conhecer. Ao virarmos a última página, temos a nítida sensação de que se trata de um livro que registra o impasse existencial de seu próprio autor. Leonard Cohen deu tudo de si neste romance – usou todo o arsenal disponível, abusou dos truques que tinha na manga.
Só havia uma solução: reinventar-se novamente. Como fazer isso? Ou melhor: como fazer isso aos trinta e três anos, quando se tinha uma carreira promissora pela frente?
4.
A resposta foi literalmente soprada pelo vento. No caso, veio de quem criou esse verso, um dos mais batidos do rock. Leonard Cohen estava com uma amiga em um show de ninguém menos que Bob Dylan quando pensou: “Hum, que coisa interessante, acho que posso fazer isso também”. Anos depois, ao perguntarem por que desistiu da literatura para ser cantor, respondeu candidamente: “Fiz isso pelo simples motivo de que cheguei à conclusão de que escrever canções dava mais dinheiro e me ajudava a ir para a cama com as garotas”.
Não é o que parece quando se escuta os primeiros acordes de Songs of Leonard Cohen (1967). Quando ouvimos a voz grave cantar Suzanne takes you down to her place near the river [Suzanne te leva até o seu lugar perto do rio], sabemos que temos ali uma personalidade completa, profunda, com nada a acrescentar, muito menos a tirar. Estruturado como um livro de poemas – característica que será constante por toda a sua discografia –, Songsdesenvolve com mais lirismo o mesmo tema que já existia na poesia e na ficção, com a diferença de que agora vem embrulhado em acordes doces e suaves, um coro feminino que ecoa alguma nostalgia lá longe e, principalmente, um humor agridoce que desconhecíamos existir no jovem Cohen.
O álbum ficou conhecido por faixas como Suzanne e Sisters of Mercy, mas guarda outras pérolas, como The Master Song, The Stranger Song e Teachers, que podem ser lidas como continuações cifradas do triângulo amoroso narrado em Beautiful Losers. Todavia, a impermanência volta com força total na dilacerante Hey, that´s no way to saygoodbye, em que o eu-lírico não encontra forças para se separar da mulher amada:
I’m not looking for another as I wander in my time,
walk me to the corner, our steps will always rhyme
you know my love goes with you as your love stays with me,
it’s just the way it changes, like the shoreline and the sea,
but let’s not talk of love or chains and things we can’t untie,
your eyes are soft with sorrow,
Hey, that’s no way to say goodbye.*
(Não procuro por outra enquanto perco meu tempo,
Ande comigo até a esquina, nossos passos rimarão,
Você sabe que o meu amor vai com o seu até o seu ficar com o meu,
É sempre assim que as coisas mudam, como a maré e o mar,
Mas não vamos falar de amores ou correntes ou do que não podemos unir,
Seus olhos estão suaves com a tristeza,
Hei, isto não é como se deve dizer adeus.)
Em contraponto a toda a sensação de perda, Cohen começa a questionar o que seria uma religiosidade adequada para suportar uma experiência tão dolorida. Começamos a perceber os primeiros indícios em Suzanne (And Jesus was a sailor/ When he walked upon the water/ And he spent a long time watching / From his lonely wooden tower/ And when he knew for certain / Only drowning men could see him [E Jesus era um marinheiro/ quando ele andou sobre as águas/ E ele passou um bom tempo observando/ de sua solitária torre de madeira/ E então soube com certeza/ que apenas os náufragos podiam vê-lo]), Sisters of Mercy (Yes you who must leave everything that you cannot control./ It begins with your family, but soon it comes around to your soul. [Sim, você deve abandonar tudo o que não possa controlar/ Começa com a sua família, mas logo terminará com a sua alma]) e The Stranger Song (He was just some Joseph looking for a manger [Ele era apenas mais um José em busca de uma manjedoura]).
Isto continuaria no álbum seguinte, Songs from a room (1969), em especial com a canção Story of Isaac, em que novamente aborda a questão judaica que parecia ter sumido do seu trabalho. Ao personificar o ponto de vista de Isaac, o filho de Abrãao que seria imolado em sacrifício agradável ao Deus israelense, Cohen resume todas as suas preocupações que o guiaram desde que seguiu a trilha de ser um membro do “povo escolhido”:
You who build these altars now
to sacrifice these children,
you must not do it anymore.
A scheme is not a vision
and you never have been tempted
by a demon or a god.
You who stand above them now,
your hatchets blunt and bloody,
you were not there before,
when I lay upon a mountain
and my father’s hand was trembling
with the beauty of the word.*
(Você que constrói esses altares
Para sacrificar nossas crianças,
Não deve mais fazer isso.
Um sistema não é uma visão
E você jamais foi tentado
Por um demônio ou por um deus.
Você que se ergue sobre eles,
Com seus machados repletos de sangue,
Não esteve aqui antes,
Quando eu me deitei sobre a montanha
E a mão de meu pai tremia
Com a beleza da Palavra.)
A questão judaica não é apenas um problema que envolve raça ou predestinação. Envolve, sobretudo, o fato de que todos são Isaacs em potencial, todos podem ser sacrificados nos seus respectivos altares históricos e que todos estão tentados a ouvir a voz de um deus ou de um demônio. O que permanece é a beleza da palavra, mesmo que ela seja proferida com o temor e o tremor de um pai que matará o próprio filho para que sua descendência perdure na eternidade.
Cohen se vê como um exilado dentro de um mundo inóspito para o que ele acredita que realmente vale a pena. É também o partisan que vaga pela Europa e que escuta o uivo do vento avisando a todos que em breve a liberdade chegará para quem quiser tê-la; ou então a pobre Nancy, que, por não suportar o fato de que existe a Casa do Mistério, resolve dar um tiro de espingarda na cabeça sem avisar ninguém; e a única vitória é quando ele confronta a Dama da Meia-Noite, uma mulher sombria que nos remete à morte e se rende ao ouvir dos lábios do poeta a sua verdadeira natureza – “Oh, Lady Midnight, I fear that you grow old,/ the stars eat your body/ and the wind makes you cold.” [Dama da Meia-Noite, temo que você cresça velha,/ as estrelas devoram o seu corpo/ e o vento a faz ficar fria.]
Ainda assim, a vitória é também passageira. A desolação chega às raias do insuportável no terceiro álbum, Songs of Love and Hate (1971), um disco tão sombrio que o próprio Cohen disse jocosamente que ele deveria ser vendido pela gravadora junto com um par de giletes. Ele não estava brincando: a primeira canção que ouvimos é a hipnótica Avalanche, que, entre dedilhados circulares de um violão flamenco e os acordes graves de um naipe de violinos e cellos, escutamos o seguinte –
Well I stepped into an avalanche,
it covered up my soul;
when I am not this hunchback that you see,
I sleep beneath the golden hill.
You who wish to conquer pain,
you must learn, learn to serve me well.*
(Bem, adentrei em uma avalanche,
Cobriu a minha alma;
Quando não sou este corcunda que você vê,
Durmo sob um monte dourado.
Você que quer conquistar a dor,
Deve aprender a me servir bem.)
Muitos afirmam que Avalanche pode ser decifrada como a ars poetica do Cohen cantor. A partir de agora, tudo se resume a isto: Como conquistar a dor. De certa forma, Songs of Love and Hate é um manual para atingir tal meta. Assim como Beautiful Losers tinha na figura de Catherine Tekakwitha como uma possível representante de uma salvação que poucos conseguem, Songs tem Joana D´Arc como a pedra angular desta nova fase. Entre a passagem da avalanche do desespero para o fogo que queima, mas liberta o corpo da santa, o ouvinte constata, entre toques esparsos de humor negro, que ninguém mais o procura, nem para enviar uma carta de cobrança (Diamonds in the mine), sequer consegue cometer um suicídio decente (Dress Rehersal Rag); confirma novamente as dores de estar apaixonado (as assustadoras Famous Blue Raincoat e Love calls you by your name) e só no fim ele se lembrará que deve cantar uma nova canção porque a que existia já está velha e gasta (Sing another song, boys), para, enfim, celebrar as chamas que purificam a Donzela de Orléans (Joan of Arc).
O uso de imagens de santas católicas que conquistam a dor por meio de um sofrimento atroz – Tekakwitha através de autoflagelação; Joana tendo uma morte terrível na fogueira, condenada como “herética” pela própria Igreja que depois a canonizaria – mostra como as preocupações de Cohen chegavam novamente a um impasse. É o sentimento que predomina quando escutamos uma faixa como A singer must die, sétima faixa do álbum seguinte, New skin for old ceremony (1974) –
Now the courtroom is quiet, but who will confess.
Is it true you betrayed us? The answer is Yes.
Then read me the list of the crimes that are mine,
I will ask for the mercy that you love to decline.
And all the ladies go moist, and the judge has no choice,
a singer must die for the lie in his voice.And I thank you, I thank you for doing your duty,
you keepers of truth, you guardians of beauty.
Your vision is right, my vision is wrong,
I’m sorry for smudging the air with my song.*
(Agora a corte está quieta, mas quem confessará?
É verdade que você nos traiu? A resposta é Sim.
Então leia a minha lista de crimes,
Pedirei pela clemência que você ama me negar.
E todas as damas choram, e o juiz não tem escolha,
Um cantor deve morrer por causa da mentira na sua voz.
E eu agradeço-te por fazer o teu trabalho,
Protetores da verdade, guardiães da beleza.
Seu ponto de vista está certo, o meu está errado,
Desculpem-me por sujar o ar com a minha canção.)
Esta percepção irônica de que Cohen se vê como um traidor da “causa” (e que jamais saberemos se política ou estética) continua no cruel auto-retrato Field Commander Cohen, em que se descreve como o “santo patrono da inveja e o merceeiro do desespero” (the patron saint of envy and the grocer of despair), mesmo que isso implique ter algumas vantagens em relação a outros pobres mortais, como ganhar um blowjob de Janis Joplin no famoso Hotel Chelsea de Nova York (uma indiscrição que ele depois se arrependeria, talvez por reconhecer que não havia vantagem alguma nisso).
A traição a si mesmo é mais séria do que a traição a um país ou até mesmo a uma pessoa, parece nos dizer Cohen. Afinal, há uma guerra se aproximando e ninguém sabe quando o fogo consumirá a todos nós (como canta nas apocalípticas There is a war e Who by a fire, inspiradas em glosas do Talmud). E o seu velho companheiro, eros? Ele continua a atiçá-lo, mas agora reconhece que tudo que envolvia a beleza da amada era apenas mais um disfarce da perda –
You’re faithful to the better man,
I’m afraid that he left.
So let me judge your love affair
in this very room where I have sentenced
mine to death.
I’ll even wear these old laurel leaves
that he’s shaken from his head.Just take this longing from my tongue,
all the useless things my hands have done,
let me see your beauty broken down,
like you would do for one you love.
(“Take this longing”)*
(Você é fiel a um homem melhor,
Temo que ele tenha ido embora.
Então deixe-me julgar o seu caso de amor
Neste mesmo quarto onde decidi
O meu à morte.
Até uso essas velhas folhas de louro
Que ele derrubou de sua cabeça.
Apenas retire esse desejo da minha língua,
Todas as coisas inúteis que as minhas mãos fizeram,
Deixe-me ver a sua beleza destruída,
Como você faria com aquele que amou.)
(“Retire este desejo”)
O desejo é fútil e tem uma lógica de destruição muito peculiar. Será esta a nova pele para uma antiga cerimônia? E quem seria sacrificado nela? A capa de New skin é um desenho famoso do livro Rosarium philosophorum, do século XVI, que mostra a união das almas em uma celebração alquímica. Mas Cohen demoraria a encontrar a sua pedra filosofal. Ele teria que provar algo que ninguém supôs que poderia ser: pop.
5.
Com quatro álbuns impecáveis (este escriba os considera “obras-primas”), Leonard Cohen alcançou uma reputação de dar inveja aos seus pares: ele era um “compositor para compositores”, um dos poucos que seriam chamados de “poetas do rock”, junto com uma galeria ímpar como Bob Dylan, Lou Reed e Neil Young, com seus versos sofisticados, feitos com precisão poética e riqueza de imagens.
Poderia ter parado no quarto disco, mas decidiu continuar, talvez por puro chutzpah, a arrogância sublime que envolve todos os messias possuídos pela questão judaica. Mesmo com um público relativamente fiel e crescendo a cada ano que passava – com uma ajuda de Robert Altman, Warren Beatty e Julie Christie, que emolduraram algumas canções suas dos dois primeiros álbuns no western crepuscular McCabe & Mrs. Miller (1971) –, Cohen nunca foi um sucesso de vendas, ao contrário dos seus companheiros do Olimpo do cancioneiro popular.
Um dia, Cohen foi apresentar a um executivo da gravadora Columbia uma fita demo de Various Positions, o álbum que provava que ainda estava vivo para a indústria musical após os fracassos que foram Death of a Ladies Men (1977), produzido por ninguém menos que Phil Spector, e Recent Songs (1979). Quando terminou a última faixa, Cohen foi obrigado a ouvir o seguinte: “Leonard, sabemos que você é um grande cantor. Agora precisamos saber se você é bom”.
Foi o suficiente para mostrar o fundo do poço em que se encontrava sua carreira artística. Tudo havia começado quando decidiu, sabe-se lá a razão, trabalhar com Phil Spector, o produtor temperamental que já havia destruído um disco póstumo dos Beatles (Let it be, de 1970), colocado um carburador no meio de uma canção de George Harrison (Wah-wah, faixa hilária de All things must pass, também de 1970) e estava prestes a impor o estilo twist and shout no próximo álbum dos Ramones (o que aconteceria de fato em End of the century, de 1980).
Cohen gostava de Spector, talvez porque este também se via como um ladies man e pelo fato de que, na época, ambos gostavam de armas de fogo (um detalhe relevante visto que Spector depois seria condenado pelo assassinato da esposa em 2009). Mas a parceria não deu certo: três semanas depois do início da produção do álbum – com participação especial de Bob Dylan e Allan Ginsberg nos backing vocals de Don´t Go Home with your Hard-On (é, isso mesmo, você leu correto: Não vá para casa de pau duro) – Spector impediu a presença de Cohen no estúdio usando uma de suas pistolas favoritas.
O resultado foi uma “catástrofe”, nas palavras do próprio cantor-compositor. De fato, Death of a Ladies´ Man era um disco vergonhoso para quem já havia feito Suzanne ou Avalanche. Cohen também resolveu lançar um novo livro de poemas com o mesmo título, alterando apenas o lugar da apóstrofe. As canções e os versos eram fraquíssimos, como Memories, que tem um refrão de fazer corar qualquer poeta amador: In solemn moments such as this I have put my trust/And all my faith to see/ Her naked body [São nestes momentos solenes que coloco a minha confiança/ E toda a minha fé para ver/ O seu corpo nu].
Ele retornaria ao velho estilo com Recent songs (1979), que, apesar de não atingir a mesma qualidade anterior, tem cinco canções que nos fazem reviver o Cohen que conhecemos: The guests (com um solo de bandolim que nos remete às influências orientais que inspiraram o poeta enquanto vivia na Grécia), The window (lirismo erótico aliado à riqueza de imagens e de aliterações), Came so far for beauty (o título parece ser um claro manifesto pessoal), The traitor (uma releitura dos temas de Field Commander Cohen) e The gypsy´s wife (declaração de amor a uma vida de exílio e isolamento).
Ainda assim, os temas do desejo e da corrupção terrena continuavam à espera de um desenvolvimento mais maduro. Quando apresentou a demo de Various Positions (1984) ao executivo da gravadora Columbia, talvez nem o próprio Cohen notou que ali havia uma canção que abria a porta para uma possível solução de um dilema que já durava dez anos. Tratava-se de Hallelujah, letra que imitava claramente os salmos do rei Davi, obviamente com Cohen colocando-se na pele do próprio monarca da tribo de Judá –
Your faith was strong but you needed proof
You saw her bathing on the roof
Her beauty and the moonlight overthrew you
She tied you
To a kitchen chair
She broke your throne, and she cut your hair
And from your lips she drew the Hallelujah.*
(Sua fé era forte, mas precisava de provas,
Você a viu se lavando no telhado,
Sua beleza e a luz da lua o ofuscou,
Ela o amarrou
Em uma cadeira da cozinha,
Destruiu o seu trono, e cortou o seu cabelo,
E retirou de seus lábios o Aleluia.)
Partindo do episódio bíblico em que Davi fica fascinado com a beleza de Betheseba – e, por isso, manda seu esposo Uriá em uma missão suicida de batalha para assim casar com ela o mais rápido possível –, Cohen sintetiza algo que sempre buscou nos poemas, livros e discos do passado: a união entre a questão judaica e os dilemas provocados por um Eros tirânico, que não hesita dilacerar quem tenta compreender as suas regras. Para quem antes tinha sido Isaac, agora ser o rei Davi era um passo considerável de auto-controle na forma como vislumbrava a permanência da perda. E talvez, com quase cinquenta anos, uma idade improvável para qualquer um que permanecesse no mundo da música pop, repleto de adolescentes e de analfabetos emocionais, Leonard Cohen se visse como uma espécie de Davi ou até mesmo de Salomão. A dúvida era se iria para o campo de batalha ou se dividiria alguma criança ao meio para provar o amor de uma mãe. Ele decidiu não ser nenhum dos dois.
6.
O que decidiu é que Leonard Cohen seria nada mais nada menos que o nosso homem. Em 1988, lançava I´m your man, um recado dirigido não só às mulheres que ele ainda desejava, mas também aos homens que perdiam um pouco da sua sensibilidade para resolver alguns assuntos implacáveis: a morte e o esquecimento. Surgia agora alguém que sabia que não havia cura para esta doença chamada “amor”. Havia, também, uma diferença: em vez de arranjos sofisticados de violão e de orquestras, teríamos a sonoridade de uma banda de fundo de quintal, com baterias eletrônicas e teclados Casio de churrascaria. Sim, Cohen havia se reinventado novamente; o detalhe é que ele se tornou um Barry White atormentado, um Barry Manilow angustiado, um Neil Diamond repleto de dúvidas, um Wando existencialista.
A voz também ajudava na comparação. Ela sempre foi de um timbre grave; agora era apenas um sussurro mais grave ainda, dois oitavos abaixo do normal. Para uns, pode ser a voz da sedução, como parece ser em Dance me to the end of the world ou em Take this waltz (inspirada por um de seus ídolos, o poeta espanhol Frederico Garcia Lorca); para outros, é a voz do anúncio do juízo final, desta vez declamado como se estivesse no meio de um cabaré de quinta categoria, como em Everybody knows –
And everybody knows that the Plague is coming
Everybody knows that it’s moving fast
Everybody knows that the naked man and woman
Are just a shining artifact of the past
Everybody knows the scene is dead
But there’s gonna be a meter on your bed
That will disclose
What everybody knows.*
(E todos sabem que a Peste está chegando,
Todos sabem que ela se aproxima depressa,
Todos sabem que o homem e a mulher nus
São artefatos brilhantes do passado,
Todos sabem que tudo está morto,
Mas haverá um medidor na sua cama
Que revelará
O que todos sabem.)
Todos sabem que o mundo acabou – e que atacar a cidade de Manhattan é só o primeiro passo para depois dominar Berlim (na profética First we take Manhattan, que antecipa os ataques de 11 de setembro com uma incrível precisão psicológica). O problema é que ninguém mais sabe se foi com um estrondo ou um suspiro. Para Leonard Cohen, é possível que tenha terminado com uma leve gargalhada, de preferência dentro de uma torre onde seu vizinho é ninguém menos que um Hank Williams tuberculoso:
Well my friends are gone and my hair is grey
I ache in the places where I used to play
And I’m crazy for love but I’m not coming on
I’m just paying my rent every day
Oh in the Tower of SongI said to Hank Williams: how lonely does it get?
Hank Williams hasn’t answered yet
But I hear him coughing all night long
A hundred floors above me
In the Tower of SongI was born like this, I had no choice
I was born with the gift of a golden voice
And twenty-seven angels from the Great Beyond
They tied me to this table right here
In the Tower of Song.*
(Bem, meus amigos sumiram e meu cabelo ficou grisalho,
Choro nos lugares onde costumava tocar,
Estou louco de amor, mas não vou entrar nessa,
Estou apenas pagando todo dia o meu aluguel
Na Torre da Música.
Disse a Hank Williams: Você suporta quanto tempo ficar sozinho?
Hank Williams ainda não me respondeu
Mas eu o escuto tossindo por toda a noite
Cem andares acima
Na Torre da Música.
Nasci assim, não tive escolha
Nasci com o dom de uma voz de ouro
E vinte e sete anjos do Grande Além
Me amarram nesta mesa
Na Torre da Música.)
Existem pessoas que preferem a velhice em um condomínio fechado próximo à praia. Cohen prefere envelhecer fazendo a única coisa que sabe fazer: cantando. Pouco a pouco, recuperava o seu prestígio na indústria musical – mesmo que isso não o fizesse dissipar a preocupação em relação aos velhos problemas. Quatro anos depois de I´m your man, lançava o seu álbum mais explicitamente político, The future (1992). A persona do profeta bíblico é assumida sem nenhuma vergonha. Cohen não antecipa mais o futuro. Ele o viu e diz o que será com todas as letras: é assassinato –
Give me back my broken night
my mirrored room, my secret life
it’s lonely here,
there’s no one left to torture
Give me absolute control
over every living soul
And lie beside me, baby,
that’s an order!Give me crack and anal sex
Take the only tree that’s left
and stuff it up the hole
in your culture
Give me back the Berlin wall
give me Stalin and St Paul
I’ve seen the future, brother:
it is murder.*
(Devolva a minha noite frágil
Meu quarto com espelhos, minha vida secreta,
É muito solitário aqui,
Não há ninguém para torturar
Dê-me controle absoluto
Sobre qualquer alma viva
E deite ao meu lado, querida:
Isto é uma ordem!
Dê-me crack e sexo anal,
Tire a única árvore que sobrou
E enfie no buraco
Da sua erudição
Devolva-me o Muro de Berlim,
Stálin e São Paulo
Eu vi o futuro, irmão:
É assassinato.)
O que adianta acreditar em uma ordem moral se ela explodiu há tempos – e ninguém nos avisou? Cohen também nos avisa de que não é uma atitude inteligente esperar por algum milagre que nos salvará. Esqueça, ele jamais aparecerá – o melhor a se fazer é lembrar a última vez que você ficou feliz (provavelmente, no fim da Segunda Guerra Mundial, como sussurra em Waiting for the miracle). Mas como ainda estamos vivos, o que sobrou? A democracia? Outro erro: o navio do Estado só vai importuná-lo ainda mais, fazendo exigências que você jamais cumprirá, enquanto tudo o que queria era ver televisão, sem se importar de ser da direita ou da esquerda (Democracy). O que pode nos salvar? Uma esbórnia em que Deus e o Diabo apostam as nossas almas enquanto as mulheres tiram as suas blusas e os homens dançam polca. (Closing Time)
Obviamente, Cohen não está falando do assassinato físico, mas de uma morte mais séria: a do preço que a alma paga pelo progresso da técnica e da política. A impermanência terrena atinge agora a sociedade até os seus fundamentos. Entretanto, o laughing Lenny (como ficou conhecido entre seus fãs) não resmunga pelos cantos; em uma atitude surpreendente para quem o conhecia durante estes trinta anos de atividade, decide aceitar a imperfeição do que está ao seu redor, como explicita na belíssima Anthem –
Ring the bells that still can ring
Forget your perfect offering
There is a crack in everything
That’s how the light gets in.*
(Toquem os sinos que ainda ressoam
Esqueça a sua oferenda perfeita
Há uma rachadura em tudo
É assim que a luz consegue entrar.)
Talvez tenha sido esta súbita iluminação que levou Cohen a abandonar a música por nove anos. Neste tempo, foi morar em um mosteiro budista em Los Angeles. Apesar de continuar na religião judaica, Cohen disse em entrevistas que o pensamento zen o ajudou a superar os frequentes ataques de pânico e de depressão que o acompanhavam desde a juventude. Pela primeira vez, abriu-se com sinceridade à imprensa sobre os seus problemas psicológicos. Afirmou que as inúmeras mulheres que teve não aliviaram os tormentos que sofria (e olhem que Cohen passou um bom tempo com ninguém menos que Rebecca De Morney); que viajava sempre com uma mala repleta de remédios para dormir e depois para ficar desperto (um belo dia decidiu jogá-la na valeta de um aeroporto porque tinha percebido que não resolviam nada); e que, depois que se retirou da vida pública, ficou em paz com certos traumas que teve durante toda a sua vida.
Esta nova serenidade está em cada faixa de Ten new songs (2001), disco feito em parceria com a cantora Sharon Robinson e gravado nos quartos de fundo da sua casa. O teclado Casio continua firme e forte, obrigado, as vozes femininas também, e Cohen parece cantar de forma cada vez mais profunda, como se estivesse no fundo de um rio acolhedor. Mesmo assim, é um álbum que nos leva a reviver alguns grandes momentos da primeira fase da sua carreira: das duas primeiras canções – In my secret life e A thousand kisses deep –, passando pela sombria By the rivers dark, até a tranquilidade encontrada em The land of plenty, o tema principal é o confronto derradeiro com a morte e nada mais. Afinal, é um assunto evidente para quem se encontrava com sessenta e seis anos.
Todavia, não pensem que ele aceitará a indesejada com gentileza. O ápice de Ten new songs ocorre com Alexandra leaving, uma meditação sobre as coisas que perderemos quando a derrota inevitável nos atinge, baseada nos versos de O deus abandona Antonio, do poeta grego Konstantinos Kaváfis:
As someone long prepared for the occasion;
In full command of every plan you wrecked –
Do not choose a coward’s explanation
that hides behind the cause and the effect.And you who were bewildered by a meaning;
Whose code was broken, crucifix uncrossed –
Say goodbye to Alexandra leaving.
Then say goodbye to Alexandra lost.*
(Como alguém que se preparou há muito tempo para a ocasião;
Em total controle de cada plano que destruiu –
Não escolha a explicação do covarde
Que se esconde na causa e no efeito.
E você que ficou intrigado por um sentido;
Que teve o código decifrado, o crucifixo quebrado,
Diga adeus à Alexandra que se despede,
Depois diga adeus à Alexandra que perdeu.)
O conselho que Leonard Cohen nos dá é o mesmo que Shakespeare transmite no final de Rei Lear: Ripeness is all. A maturidade é tudo. E é mesmo: sem a maturidade, ele não conseguiria se preparar para o seu próximo desafio.
Se o mundo tivesse alguma lógica, Ten new songs deveria ser o testamento do bardo canadense. Mas não foi: enquanto Cohen meditava no mosteiro zen, seu empresário, Kelley Lynch, simplesmente desapropriou todas as suas economias. Um processo judicial foi aberto, o ganho da causa foi para Cohen, mas, por motivos que só a dama cega conhece, não conseguiu reaver o dinheiro. Logo, a solução foi voltar a trabalhar.
O que foi cansaço para ele, foi uma benção para nós. Aos 77 anos de idade, doze anos a mais que a idade média de aposentadoria de um canadense normal, Leonard Cohen finalmente celebrou a sua trajetória com uma turnê mundial e dois novos álbuns: Dear Heather (2004) e Old Ideas (2012). E o melhor – sem nenhum prejuízo de qualidade.
Não seria exagero afirmar que Cohen se encontra no topo da sua forma artística – e as gravações ao vivo dos shows que deu entre 2008 e 2010 provam isso. Tanto em Leonard Cohen – Live in London (2010) como em Songs from the Road (2011) mostram um cantor à vontade com a banda e o público, brincando com a persona que construiu durante anos e desmontando a seriedade de sua obra com a desenvoltura de uma criança. Neste último disco, contudo, Cohen mostra também que continua a olhar de esguelha para a perda que sempre o perseguiu. Em uma interpretação contida, mas emocionante, de Avalanche, ele volta a usar o dedilhado do flamenco e canta sozinho, sem acompanhamento da banda. É um outro Leonard Cohen, apesar de ser o mesmo. Desta vez, parece que ele realmente conseguiu conquistar a dor que tanto o atormentou há mais de quarenta anos. Adentrar na avalanche não é mais um problema; ele conseguiu atravessá-la e quer que façamos o mesmo. Pode continuar a ser um “velho preguiçoso vestido em um terno”, como afirma em Going Home, faixa que abre Old Ideas, mas também reconhece que as trevas continuarão a acompanhá-lo até o fim (afirmação dita com sublime ironia em The darkness, do mesmo disco).
Aristóteles dizia que quem tinha a sorte de chegar a ter uma personalidade completa no final da vida era um spoudaios, o homem maduro que consegue conduzir os outros naturalmente porque já tinha ido ao fim do poço e de lá voltou para contar a sua história. Cohen preenche a todos os requisitos. Em um mundo onde a velhice é vista como um problema insolúvel, ele prova que ainda é o nosso homem. Afinal, durante anos, quiçá séculos, viveu na pobreza, seja material ou espiritual. Se alguma coisa permanente foi conquistada, foi à custa de muito esforço e, sobretudo, da perseverança de se reinventar conforme as circunstâncias exigiam. Tudo feito com a elegância de quem sabe que aqui nada dura por muito tempo.
______
NOTAS
[1] Em traduções aproximadas: “Bem, adentrei em uma avalanche, ela me cobriu a alma” (Leonard Cohen, Avalanche); “Ele viveu na pobreza através dos séculos. Somente Deus foi sua única elegância” (Wallace Stevens, O Homem Bom Não Tem Forma).
[2] Em tradução aproximada: “Como um pássaro preso no arame/ como um bêbado no coral da meia-noite/ tentei da minha forma/ ser livre”.
[3] As traduções dos poemas e das letras de Leonard Cohen são uma tentativa aproximada de ajudar o leitor a seguir o raciocínio do texto. Portanto, não possuem nenhuma intenção artística ou poética. Qualquer erro ou imprecisão, estamos abertos a críticas e sugestões.
[4] Tradução de Alexandre Barbosa de Souza, retirada da edição nacional de A Brincadeira Favorita, publicada pela Cosac Naify em 2012.
Martim Vasques da Cunha
Autor de Crise e utopia: O dilema de Thomas More (Vide, 2012) e A poeira da glória (Record, 2015). Pós-doutorando pela FGV-EAESP.