Leopardos, Behemots e Leviatãs

por Fabrício de Moraes (07/11/2016)

No século XX deparamo-nos com a deformação da liberdade religiosa em tolerância religiosa.

Estátua de Frederico o Grande (Berlim)

Estátua de Frederico o Grande (Berlim)

Numa de suas parábolas, Franz Kafka narra:

Leopardos irromperam no templo e esgotaram os vasos sagrados; isto se repetiu sempre. Enfim, é possível imaginá-lo, torna-se parte da liturgia.

A irrupção da bestialidade torna-se, com o decorrer do tempo, parte da própria experiência do sagrado; ou, dito de outro modo, a hostilidade com a qual a “Natureza”, ou a própria realidade, nos confronta somente deixa de ser temida quando incorporada a um rito que, sendo uma representação da ordem cósmica, é capaz de lhe atribuir sentido e propósito. A liturgia, pois, é uma estrutura referencial na qual se integram, num todo harmonioso, as experiências humanas frente ao transcendente, inclusive aqueles elementos impetuosos que, dispersos dessa teia conceitual, são hostis ao homem[1]. Como já disse Ratzinger, em seu Introdução ao Espírito da Liturgia, o culto visa um mundo de liberdade, no qual “o cosmos não é uma espécie de edifício fechado em si mesmo, nem um recipiente inerte no qual a história pode se desenvolver. Também ele está em movimento, de um ponto inicial rumo a uma meta” – e esta meta é “a reunificação do ser humano e da criação com Deus”.

Nassim Nicholas Taleb, num breve ensaio, já apontou não para as dificuldades, mas para a própria incapacidade de compreensão, por parte da atual intelligentsia ocidental, no tocante à religião. No Brasil, diga-se de passagem, dada a predileção aparentemente congênita de nossos intelectuais pela deformação, hiperbolismo ou teratologia, o termo religião é hoje apenas mais um elo nas suas cadeias analógicas que são acionadas, por assim dizer, quando tratam sobre superstição, pensamento mágico ou, mais frequentemente, psicopatologias. Taleb, portanto, assinala:

As pessoas raramente querem dizer a mesma coisa quando falam sobre “religião”, nem percebem que não querem dizer a mesma coisa. Para os judeus e muçulmanos primitivos, religião era lei. Din significa lei, em hebraico, e religião, em árabe. Para os judeus primitivos, a religião era também tribal; para muçulmanos primitivos, era universal. Para os romanos, religião era eventos sociais, rituais e festivais – a palavra religio contrapunha-se à superstitio, e, embora presente no zeitgeist romano, não havia conceito equivalente no Oriente greco-bizantino […] Para os cristãos católicos e ortodoxos, religião é estética, pompa e rituais, alguns crenças a mais ou a menos, e em geral decorativa. Para a maioria dos protestantes, religião é crença sem estética, pompa ou lei. No Extremo Oriente, para budistas, xintoístas e hindus, religião é filosofia prática e espiritual, com um código de ética (e, para alguns, uma cosmogonia). Portanto, quando o hindu fala sobre “religião” hindu, [o termo] não significa a mesma coisa para um paquistanês como significaria para um hindu, e certamente significa uma coisa diferente para um persa.

Destarte, toda referência ao termo religião por parte da intelectualidade midiática ou acadêmica brasileira (que se retroalimentam – asnus fricat asnum) merece, ao menos em princípio, não apenas nosso descaso complacente, mas em especial nossa suspeita. A expressão “tolerância religiosa”, como de hábito, tornou-se uma das fórmulas mágicas das distinções de emergência que impõe fim abrupto sobre todo debate; um axioma que interdita, por sua própria natureza, qualquer contradição ou questionamento. Em suma, mais um encantamento em nossa lista de hocus pocus.

Aparentemente, os proponentes da redação do ENEM, com seus “caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”, já partiam do pressuposto de que os candidatos assumissem a realidade de tal mazela em nossa sociedade (caso contrário, conforme dito, correriam o risco de notas menos gloriosas) e, é claro, propusessem a maior intervenção do Estado como resolução par excellence de todos os conflitos ou aflições humanos – desde o tunga penetrans às relações entre homem e transcendência.

Dificilmente qualquer cidadão brasileiro médio pensaria – ou redigiria na redação do ENEM – que há, no Brasil, intolerância religiosa em relação ao cristianismo (embora a fé cristã seja considerada, hoje, a mais perseguida no mundo)[2], em especial numa população majoritariamente católico-romana e, em segundo lugar, protestante, evangélica (sim, há diferenças), pentecostais, etc. De modo que, a julgar por noticiários, a “problemática” subjacente é a discriminação para com religião de matriz afro. Há, de fato, toda uma narrativa no imaginário brasileiro, potencializada por obras como O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, sobre a repressão dessas religiões, especialmente nos locais onde o sincretismo atinge seu ponto mais crítico (na Bahia, por exemplo). Atualmente, porém, num mecanismo de bode expiatório, atribuem-se aos grupos pentecostais até mesmo apedrejamentos (sic!) contra adeptos de religiões animistas.

Todavia, nosso interesse presente é delinear, ainda que de maneira superficial, as dificuldades inerentes ao discurso pronto dos “equalizadores da religião”. Ao que parece, o objetivo último é a negação de qualquer critério avaliativo ou hierárquico das religiões – um nivelamento grosseiro que nenhum cientista da religião sóbrio estaria disposto a levar a cabo. Invariavelmente, o Estado e sua moral posicionam-se como juízes e deliberam acerca da legitimidade e “igualdade” das religiões.

Conforme já disse Rousas J. Rushdoony, no século XX deparamo-nos com a deformação da liberdade religiosa em tolerância religiosa; neste último caso, o Estado “reivindica para si o direito de governar e controlar a religião, declarando qual igreja ou religião têm o direito de existir”. Portanto, “a tolerância coloca o poder nas mãos do Estado”[3]. E, por definição, mesmo a tolerância religiosa absoluta é uma impossibilidade per si. O próprio Rushdoony cita o caso Reynolds x Estados Unidos (1878), quando George Reynolds, membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (cujos congregantes são popularmente conhecidos como mórmons), afirmou que seus direitos garantidos pela Primeira Emenda da Constituição foram violados com a proibição da poligamia. A Suprema Corte, todavia, decidiu contra Reynolds, declarando “que, virtualmente, todos os crimes são, em algum lugar, praticados por determinado grupo religioso. Dentre os aspectos de algumas religiões estão ou estiveram o sacrifício humano, canibalismo, prostituição ritual, bestialidade, assassinato, homossexualismo e outros. A liberdade absoluta de consciência e de prática religiosa destruiria toda ordem jurídica e social, impossibilitando, pois, o governo civil”.

Dificilmente alguém está inclinado a aceitar a implementação de religiões como Christian Identity, supremacistas brancos que creem que a etnia nórdica e anglo-saxã são descendentes dos patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, de modo que todas as demais etnias jamais podem alcançar a salvação de suas almas; ou a seita fundamentalista de Warren Steed Jeffs, o qual se casou com mais de sessenta mulheres e garotas, algumas das quais contando apenas com doze anos, e promovia o trabalho escravo infantil, misoginia e estupro. Isto somente para citar alguns grupos religiosos que se encontram em atividade no mundo ocidental.

Desse modo, a nivelação estatal de todas as religiões é simplesmente uma declaração, embora tácita e supostamente neutra, da superioridade da moral do Estado sobre todas as religiões. Destarte, ele detecta a intolerância para, subsequentemente, saná-la. Um passo seguinte é a seleção ou triagem dos elementos religiosos que são ou não ofensivos à sensibilidade cada vez mais fragilizada do indivíduo moderno. Afinal, alguém pode afirmar, a doutrina do Pecado Original é uma ofensa à minha autoimagem, e a predestinação calvinista é uma doutrina essencialmente aristocrática! Em suma, pois, o que se pretende é que burocratas opinem e decidam sobre assuntos religiosos, o que, via de regra, culmina numa divinização do Estado[4]. Portanto, no quesito religião, intolerância, é uma palavra-valise, que, dada seu deslocamento referencial, abarca situações as mais díspares. Os exemplos anteriormente citados não se definem essencialmente como intolerância religiosa: um energúmeno – para utilizar o vocabulário teológico – que apedreja um indivíduo por causa de sua crença religiosa é um agressor, um criminoso; dogmaticamente, não obedece às palavras do Cristo que recomendou a lapidação de outrem somente aos que não possuíam pecado.

Mas os intelectuais, indivíduos aos quais temos o péssimo hábito de dar ouvidos, preferem a platitude da ideologia em detrimento da rugosidade do real; de modo que buscam elencar um conjunto de valores que, segundo seu julgamento, constitui a base ou denominador comum das religiões: em geral, amor, paz, solidariedade, respeito mútuo e bondade. Místicos de todas as tradições já se lançaram na tarefa de esboçar uma doutrina unificada ou ao menos uma fonte original que fossem capazes de subsumir, numa estrutura apreensível, todas as religiões. Desnecessário reafirmar o fracasso dessas tentativas levadas a cabo por gnósticos como René Guenón ou cientistas da religião como Gerardus van der Leeuw.

De semelhante modo, não existe uma linha de valores que perpassem todas as religiões, até mesmo nas religiões monoteístas abraâmicas, como o judaísmo, cristianismo e islamismo há elementos inconciliáveis. Ora, o islamismo, sendo antes uma ordem social do que propriamente uma religião, não conhece nem, portanto, admite o conceito cristão de fé (a certeza das coisas que não se veem); pelo contrário, a conversão ao islamismo é definida pela subscrição e prática aos chamados Cinco Pilares do Islamismo – a confissão da veracidade do testemunho de Mohammed e do Corão (Chahada); a oração (al-salat); a caridade mediante contribuição financeira (zakat); o jejum durante o Ramadão (siyam) e a peregrinação (hajj), ao menos uma vez durante a vida, e se possível, a Meca.

A ideia cristã de uma igualdade de crentes e incrédulos perante a lei de Deus (ou seja, Deus julga objetivamente por meio de sua lei, sem favoritismo), assim como a doutrina da criação de todos os homens à imagem de Deus[5], são elementos desconhecidos aos islâmicos, de maneira que em sociedades governadas pela sharia, judeus e cristãos são considerados como dhimmi (“o povo do contrato), cidadãos destituídos de certas liberdades e direitos gozados pelos muçulmanos e, portanto, obrigados a pagar a Jizya (“a compensação”) (ver a 9ª Surata, At Tauba, verso 29).

Nesse sentido, numa ordem social islâmica, as demais religiões monoteístas são toleradas – e isto porque compartilham da mesma origem histórica e são, semelhantemente, receptoras da revelação divina, ainda que, no seu entendimento, o Corão seja o ápice do desvelamento da lei de Deus e a Torah e o Injil (Evangelhos) sejam revelações incompletas e, hoje, textualmente corrompidas. Paz, para o islâmico, significa, pois, a submissão de todos à expansão da pregação corânica, ainda que seja levada a cabo mediante a guerra[6]. Em resumo, os valores celebrados pelos progressistas como sendo um núcleo compartilhado entre as religiões nada mais são do que valores da tradição judaico-cristã secularizados e esvaziados de seus fundamentos últimos. A liberdade religiosa é um conceito tardio, surgido no seio das sociedades cristãs, e somente possível numa atmosfera espiritual na qual a liberdade de consciência é domínio acessível somente a um Deus perscrutador.

Cabe lembrar que um dos precursores da ideia da “igualdade das religiões” remonta já ao século XVIII. Foi Frederico, o Grande, da Prússia, que, em 1740, declarou: “Todas as religiões são iguais e boas na medida em que aqueles que as professam são homens honestos, e se os turcos [os muçulmanos] e pagãos vierem e desejarem povoar o país, devemos estar prontos para construir suas mesquitas e templos” – até aqui um discurso perfeitamente cabível na redação do ENEM. O problema, no entanto, é a finalidade e legitimação dessa igualdade, pois Frederico complementa: para que as religiões “vivam em paz e trabalhem em conjunto e em igual medida para o bem do Estado”. Frederico, o Grande, é passível de receber, anacronicamente, a pontuação máxima na redação do ENEM.

Dessa forma, a afirmação de que não há diferença de valor entre as religiões é não somente cinicamente vaga, pois, como visto, há religiões que impossibilitam a própria ordem social, mas também historicamente falaciosa. Arnold Toynbee e outros elencaram as grandes religiões, especialmente as monoteístas, como grandes forças históricas, dinâmicas que influenciaram e formaram civilizações que, de certo modo, ainda permanecem sólidas. A leitura mais superficial da obra Progresso e Religião, de Christopher Dawson, por exemplo, não permite a proliferação, na mente de um indivíduo devidamente instruído, de metáforas como o “vírus da fé” urradas por neoateístas.

Por fim, ouvimos ad nauseam a assertiva etimológica de que religião vem do verbo latino religare, isto é, religar, reconectar o homem à Divindade, ao cosmos, a si mesmo. Embora filósofos como Giorgo Agamben declarem que religio provém de relegere, isto é, reler, atentar-se para as prescrições, o que indica uma sistematização ou aspecto legiferante da religião.

O filósofo holandês Herman Dooyeweerd, por exemplo, define que todo pensamento, filosofia ou sistematização é antecedido e fundamentado num compromisso religioso pré-teórico, e o coração humano – “o ponto de concentração da existência humana, o foco supratemporal de todas as funções temporais do homem” e núcleo indiviso da personalidade humana – necessariamente se apega a uma “certeza última” que dá sentido e direção ao toda da realidade. Para ele, portanto, não há neutralidade no âmbito da religião, elemento inescapável ao coração humano; a “religião não é uma área ou esfera da vida, mas a raiz abrangente e orientadora dela… é o impulso inato da individualidade humana, direcionado para a Origem absoluta, verdadeira ou falsa, de toda a diversidade temporal de sentido”[7].

A reunião do homem com a transcendência jamais resulta num privatismo ou num onanismo místico como o discurso progressista, com o velho ideal iluminista de uma mente desancorada das circunstâncias, nos leva a crer. A atual intelligentsia deseja impedir a destruição de nossos vasos sagrados por parte dos leopardos, para que, em seguida, a adoração aos seus Behemot e Leviatã sejam integradas em nossa liturgia.

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NOTAS

[1] Há, também, na parábola de Kafka, uma possível referência ao Shevirat ha-Kelim, a quebra dos dez vasos que, de acordo com o cabalista Isaac Luria, supostamente continham a emanação da luz divina. A quebra dos vasos é, como na tradição gnóstica, uma espécie de catástrofe cósmica que dá origem ao mundo. O trabalho de reconstrução (o Tikkum) se dá mediante a gnose, a ascese e a ascensão espiritual.

[2] As instituições de suporte e caridade aos cristãos perseguidos cunharam o termo “janela 10×40”, a fim de designar a área geográfica onde ocorre, de maneira sistemática, a perseguição e morte de cristãos.

[3] Cristianismo e Estado, Brasília, DF: Monergismo, 2016.

[4] Ver a obra A Religião Civil do Estado Moderno, de Nelson Lehmann da Silva.

[5] Amiúde, os teólogos islâmicos interpretam o conceito judaico-cristão de imago Dei da maneira mais rudimentar possível, como se os pensadores do judaísmo ou do cristianismo advogassem que a Divindade é antropomórfica, possuindo braços, pernas, carne e sangue (ver a Surata 112ª, Al Ikhláss [A Unicidade ou A Sinceridade], espécie de anti-Credo Niceno). Todavia, é lícito dizer, os islâmicos creem que Allah também insuflou seu Espírito no homem (Surata 15ª, 29).

[6] Lembremos também que a liberdade de expressão não é um conceito que faça sentido para sociedades regidas pela Sharia. Lembremos do acontecimento citado até à exaustão – e sempre convocado como exemplo de islamofobia – da fatwa (a setença de morte) declarada por Aiatolá Ruhollah Khomeini, líder do Irã, em relação a Salman Rushdie, devido ao conteúdo blasfemo de seu livro Versos Satânicos.

[7] Herman Dooyeweerd, Raízes da Cultura Ocidental: as opções pagã, secular e cristã. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2015.

Fabrício de Moraes

Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).

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