O movimento não se restringe à velha polarização esquerda x direita.
As mais de mil escolas de ensino médio ocupadas no país estão conseguindo atrair a atenção do distinto público. Mesmo aqui nesta Amálgama. De um lado, a esquerda que apanhou das urnas vê no movimento, que se opõe a medidas do governo Temer, uma fonte de sobrevida. De outro, conservadores e liberais atacam o movimento, seja por suas bandeiras, seja pela suas táticas.
O parágrafo acima esconde uma cortina de fumaça ideológica que nos impede de entender exatamente o que está acontecendo. Digo isso com toda a tranquilidade de quem também não consegue identificar, mas que se sente incomodado por intuir, ainda que não claramente, que há algo mais nesse processo do que um grupo de garotos instrumentalizado por ideologias derrotadas. Este ensaio é a expressão deste incômodo. Mais do que luzes, busca um caminho em meio às trevas da incerteza.
Bases do incômodo
O que exatamente me incomoda? Alguns elementos me chamaram a atenção desde o começo da onda de ocupações de escolas, iniciada em São Paulo contra a reestruturação proposta pelo governo Alckmin:
* Fator geracional: as ocupações podem não ter o apoio do “cidadão médio estatístico”, mas é inegável que atraem a simpatia dos mais jovens. Aliás, esta clivagem parece-me maior, e interfere em diversos aspectos da opinião pública. Veja, por exemplo, o alto percentual de eleitores jovens que apoiou Freixo e Haddad.
* Hegemonia: é evidente que a esquerda tradicional está tentando pilotar o movimento, mas não parece tão evidente que o comando venha dela. Pelo contrário, no dia a dia do movimento aparecem críticas às entidades, movidas por grupos da extrema esquerda, mas também movidas pelos próprios ativistas.
* Recusa da política tradicional: tanto nas ocupações quanto nas “desocupações” promovidas pelo MBL, transparece uma recusa das instâncias tradicionais de se fazer política. Os ocupantes recusam as tentativas de reforma do ensino médio promovidas pelos governos, os desocupantes recusam a liderança da esquerda tradicional. E esta recusa os leva à ação direta e à política pela negativa, ou seja, ações radicais puramente defensivas, e refratárias ao diálogo e à construção de consensos.
Olhando os três tópicos acima, vemos que estamos lidando com algo profundamente relacionado à relação dos mais jovens com a política, e especialmente com a política tradicional. Curioso que isso alimente a oposição direita x esquerda, cerne da mesma política tradicional que se nega na prática.
Algumas hipóteses
A geração que está concluindo o Ensino Médio em 2016 nasceu na virada do século. Mal se lembra do final do governo Fernando Henrique Cardoso. Cresceu, portanto, durante o longo período de prosperidade e pensamento único movido pelo consumo, característico do lulismo. Não vivenciou o drama da hiperinflação, a crise da dívida ou mesmo os choques especulativos que atingiram o segundo mandato de FHC. É a geração da promessa do Brasil grande. Esta é sua primeira crise.
Este mesmo período se caracterizou pela indigência das políticas educacionais. Neste período as principais políticas foram direcionadas ao ensino superior – Fies, Prouni, Reuni. O ensino básico teve financiamento, por meio do Fundeb e do antigo Fundef, mas, fora a inclusão da antiga pré-escola no ensino fundamental não houve políticas estruturantes para a faixa. O ensino médio foi abandonado.
Ao mesmo tempo, houve a expansão da tecnologia. Estudantes mal formados tiveram acesso a conteúdo interessante mais fora da escola, em seus smartphones coreanos e chineses, que dentro dela. E não só a escola, perderam também a família, as igrejas e a mídia tradicional. Pesquisa realizada pela Fundação Victor Civita e o Cebrap em 2011 apontou alguns insights interessantes sobre o jovem que chegou ao ensino médio nesta década:
* A escola é um lugar para tirar o diploma em 20% dos casos
* Menos de 50% dos entrevistados usam computador nas escolas (mencionam professores que não conheciam o Facebook e Orkut)
* Para 80%, escola é lugar de “zoeira”
* Professores estão ausentes em 49% dos casos
* Gramática e Matemática são consideradas as disciplinas mais importantes para mais de 70% dos alunos. Apenas 19% se interessa por literatura
Vamos ligar os pontos acima: uma geração protegida, com menos “agentes estressores” que as anteriores – ou seja, mais frágil, na definição de Nassim Taleb¹ – e conectada, tendo acesso a conteúdos sem o adequado desenvolvimento da capacidade crítica por uma escola frágil. Aí talvez esteja uma luz. Estamos diante da geração “Kéfera é melhor que Shakespeare”.
Malditos millennials
No começo da década essa geração, batizada de Millennials, foi saudada como a salvação da lavoura. Conectada, disruptiva, disposta a mudanças, ela vinha para mudar o mundo do trabalho e da política. Vídeos motivacionais vendiam essa tendência como o futuro.
Nos últimos meses, estamos em pé de guerra com os Millennials. O resumo pode ser visto em entrevista recente de Mário Sérgio Cortella: a nova geração é impaciente, não se submete a prazos e metas, é mimada e mal educada.
Revolucionários ou autoritários? Mimados ou inconformados? Provavelmente o gap desta nova geração com a anterior seja maior e mais complexo do que parece. Fato é que, para compreender fenômenos como as ocupações de escola ou a “direita transante”, como se definiu um dos líderes do MBL, precisamos sim entender que há uma mudança geracional em andamento, e não estamos sabendo compreendê-la bem.
A crítica aos millennials e tudo o que eles trazem se assemelha, em certos aspectos, às críticas feitas por Ortega y Gasset ao homem massa: alguém que se desconectou do passado, que está rompido com as tradições, e que por isso perdeu o sentido da vida e o respeito por aquilo que nos permitiu chegar seguros até aqui, ou seja, a tradição democrática.
Contudo, Ortega y Gasset não era simplesmente um pessimista. Entre os fatores que davam origem ao homem massa, ele via um potencial incrível de expansão dos limites da existência:
Mas agora me importa somente fazer notar como cresceu a vida do homem na dimensão da potencialidade. Conta com um círculo de possibilidades maior que nunca. Na ordem intelectual, encontra mais caminhos de concepção possível, mais problemas, mais dados, mais ciências, mais pontos de vista. (…) Nos prazeres acontece coisa parecida (…) É um fato constante e notório que no esforço físico e esportivo realizem hoje performances que superam enormemente todas as que se conhecem no passado. (…) Porque na ciência acontece algo similar (páginas 110 e 110 de A Rebelião das Massas)
E a conclusão do filósofo espanhol não poderia fazer mais sentido:
Vivemos em um tempo que se sente fabulosa capaz para realizar, mas não sabe o que realizar. Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo. Sente-se perdido em sua própria abundância. Com mais meios, mais saber, mais técnicas que nunca, o mundo atual acaba sendo o mais miserável que já houve: à deriva, nada mais (página 113)
A combinação de potencial e vazio de propósito pode ser explosiva, e dar substrato a ideologias perigosas. No passado recente, esta combinação alimentou o fascismo, o comunismo e toda concepção fordista que sustentou o pós-guerra em suas estruturas burocráticas matriciais, da ONU às multinacionais.
Por outro lado, um propósito claro combinado a um elevado potencial pode ser transformador pela positiva. Esta foi a receita que moveu os jesuítas no Brasil ou os puritanos da Nova Inglaterra. Ou mesmo os mercadores italianos, navegadores portugueses e empreendedores capitalistas da Revolução Industrial.
No nosso caso, isso está em aberto.
Millennials na base da pirâmide
Se é verdade que estamos ignorando a clivagem geracional, é ainda mais verdade que não temos a menor ideia de como isto se dá na base da pirâmide. Pensemos juntos: mais do que no restante da população, foi ali que as promessas lulistas de ascensão social calaram mais fundo. Estes foram os mais transformados pela expansão pelo consumo vivida entre 2003 e 2013. Foram os que mais receberam os benefícios do aumento do salário mínimo, crédito consignado, Minha Casa Minha Vida, Prouni etc.
Ao mesmo tempo, são os que agora têm seu potencial abortado tanto pela crise quando pela educação ruim. São os que chegam ao ensino superior sem saber entender um texto ou fazer contas. Cuja formação é feita mais pelas redes sociais que pelo ensino formal, considerado inútil.
No final de Como matar a borboleta azul, a economista Monica de Bolle calcula o “índice de mal estar” da população brasileira, uma soma aritmética de inflação e desemprego. Em 2015, o índice de mal estar geral do Brasil estava em 19,7, acima da Colômbia (13,8), México (6,9) e Estados Unidos (5,3). Quando isolados os mais pobres, contudo, este índice subia para 27,7, ou seja, 40% superior à média nacional.
Potencial abortado, promessas quebradas, vazio de propósito, descrença. Um caldeirão fervendo, que está desaguando nas ocupações. Curiosamente, a esquerda responsável por este cenário é justamente quem busca capitalizar o movimento para si, direcionando-o contra o novo governo. Ajuda isso o caráter gerontocrático do governo Temer, formado por tudo o que há de mais distante dos millennials mais pobres: velhas raposas políticas.
O desafio que temos pela frente
Lendo os comentadores dos fatos recentes, inclusive aqui na Amálgama, tenho a impressão de que o velho esporte de olhar para o passado ao invés de construir o futuro continua em voga. Não é à toa que somos sempre surpreendidos. Diante de uma surpresa, ao invés de desafiarmos nossas crenças a partir de um olhar para o abismo da realidade, ficamos editando a realidade para caber em nossa vã ideologia. É o que a esquerda vem fazendo, com sua Narrativa de Golpe. É o que críticos das ocupações de escola vem fazendo, ao atrelá-las ao PT agonizante.
No fundo da gritaria ideológica que perpassa as ocupações, há um pedido: que os estudantes sejam ouvidos. De fato, o diálogo entre as instâncias institucionais tradicionais e essa geração não é só difícil: é nulo. Alckmin experimentou isso ao fazer uma reestruturação de cima para baixo. Temer passa por isso com sua reforma por Medida Provisória. Ambas as propostas são ótimas. Mas ambas seguiram o jeito tradicional de se fazer política pública no Brasil: os burocratas discutem e a sociedade simplesmente acata.
O afã da esquerda em liderar esse movimento tampouco ajuda. Em busca de legitimação, acaba deslegitimando algo que lhe é maior, e em cuja origem está ela própria, praticante do modelo top-down durante o período lulista.
Precisamos olhar a nova geração. Entender seu potencial e sua fragilidade. Ajudá-la a amadurecer. Ou seremos surpreendidos novamente.
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¹ Em Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos, Nassim Taleb defende que o desenvolvimento das pessoas e das sociedades vai melhor quando submetidos a condições agudas de estresse elevado. Por exemplo, pessoas que sobrevivem a guerras, crises econômicas e revoluções costumam estar mais preparadas para resolver problemas que quem vive ao baixo stress cotidiano de um escritório. Deste ponto de vista, nossa conclusão é que a geração criada sob o lulismo tenderia a ser mais frágil, ou seja, menos apta a enfrentar os desafios da crise, que aquelas que cresceram sob a hiperinflação dos anos 1980, por exemplo.
Paulo Roberto Silva
Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.
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