Presenciei os debates que decidiram sobre a adesão da escola onde leciono a uma greve geral.
Em algumas crônicas de Nelson Rodrigues que li por estes dias, o escritor criticava os artistas, principalmente do teatro, por não serem mais indivíduos, mas sim uma “classe”, uma coletividade. Não sabia como devia chamar, por exemplo, uma atriz como a Cacilda Becker: “Cada ator, ou atriz, ou autor, ou diretor, ou cenógrafo é um misterioso ser impessoal, rumoroso, coletivo. E eu teria que saudar Cacilda assim: — ‘Olá, Comissão’, ‘Olá, Assembleia’, ‘Olá, Passeata’”. Todos participavam de manifestações em grupo, de abaixo-assinado, e não faziam o papel que lhes cabia:
Os atores não representam, e também o romancista não faz romance, nem o poeta, poesia, nem o pintor, pintura, nem o cineasta, filme. Sim, as coisas que devem ser feitas, ninguém as faz. Cabe então a pergunta: — e por quê? Primeiro, porque tanto o teatro, o romance, a poesia, a pintura ou a música vivem de umas tantas ou quantas individualidades fortes, crispadas, miguelangelescas. E hoje o artista prefere ser ninguém, isto é, ele morre em classes, assembleias, discursos e passeatas. O artista é um cadáver.
O ano das crônicas? 1968. Fazem parte da coletânea A cabra vadia. Parece, porém, que Nelson fala sobre os dias de hoje. Ele era um profeta ou nada mudou? Os artistas hoje também não escrevem, não atuam, não pintam. Ou por outra, se o fazem, não é mais uma expressão pessoal que transmitem. Querem ser a voz do povo, mesmo que este não esteja nem aí para as questões políticas; querem falar por um grupo, querem ser aceitos por este grupo. E quem anda diferente, quem não quer participar de uma coletividade, ter seu próprio pensamento é um alienado, reacionário, fascista, golpista, uma marionete. Falam isso sendo eles mesmos manipulados. Bonecos sem vontade própria, repetindo palavras de ordem, frases prontas e acreditando em informações de segunda mão.
Curiosamente, na mesma semana em que li as crônicas do Nelson Rodrigues, debates sobre a decisão da adesão da escola onde leciono a uma greve geral aconteceram na sala dos professores. Num primeiro momento, seguindo a maioria, a coletividade, “a onda”, acabei concordando com a paralisação, tendo em vista o atraso e o parcelamento de salários a que estamos sendo submetidos pelo governo estadual. No fundo, porém, me senti constrangido por ter desejado tão-somente não destoar de todos, de dançar conforme a música, mesmo que ela não soasse bem nos meus ouvidos, porque sabia que havia questões políticas e ideológicas por trás do movimento, encabeçado por centrais sindicais e siglas partidárias.
No dia seguinte, resolvemos realizar novas discussões. Expus minha mudança de posicionamento e aleguei justamente que não queria ser manipulado por pessoas que pensam apenas em ser contra o tal governo golpista; que não poderia protestar contra uma PEC cujo texto não li, apenas tomei conhecimento por terceiros, uns contra e outros a favor da proposta de emenda; e que as mudanças no ensino já estavam acontecendo quando o poder estava em outras mãos e poucos se manifestaram contra. Não queria, portanto, ser manipulado por esta gente, tampouco por meus colegas de profissão, muito menos pela minha cabeça confusa.
Lá pelas tantas um professor disse: “nós somos uma classe!” Lembrei logo das crônicas rodrigueanas. Lembrei também dos romances distópicos Nós, do russo Yevgeny Zamiatin, e Hino, da também russa, mas naturalizada norte-americana, Ayn Rand (autora que inspira as geniais letras da banda de rock Rush). São obras que falam sobre a ditadura do “nós” e de como isso tolhe a liberdade de pensamento, retira o direito à individualidade. Pergunto-me: é lógico que tenho que pensar no bem do próximo, porém o próximo, ao pensar coletivamente, também pensa no que é bom para mim?
Por isso não quero fazer parte de uma “classe”. Sou um indivíduo, com meus defeitos, com minhas incoerências (já defendi muito a “classe” e pensei no coletivo), com minhas fraquezas. Classe para mim é a turma na sala de aula, e olha que ela é também formada por indivíduos. É neles que, como professor, tenho que pensar.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.