O poeta Tasso da Silveira concebia a luta espiritual como uma atitude heroica do pecador no mundo.

Tasso da Silveira

Durante o parnasianismo, o poeta brigava com o mármore ou com a ametista engastada numa joia. Na modernidade, passou a lutar também com a pedra das palavras ou pelo engajamento político. Mas semelhante ao escultor, ao ouvires ou ao agitador, nesses casos, o poeta deserda os postos de profeta e vate que lhe exigiriam um embate diferente daqueles da metapoesia e da luta de classes.

A luta do espírito fora essencial para o desenvolvimento poesia de Tasso da Silveira (1895-1968). Em seu primeiro livro, Fio d’água (1918), o poeta já se propõe a lutar contra si mesmo:

CARNE

Para purificar-me eu me faço o verdugo
de mim mesmo, e me obrigo ao cilício da dor.
Luta improfícua! Em vão minhas forças conjugo:
sou vencido na liça… O instinto é o vencedor…

Debalde eu me revolto e os ímpetos subjugo,
à explosão do desejo em vão tento me opor.
Alma! Tu sofrerás do corpo o eterno jugo,
curva-te para sempre ao domínio opressor!

Carne, que me tornaste um rastejante verme!
Ah! Pudera fazer-te impassível e inerme:
– brasa que se apagou, sombra, extinto clarão…

Carne, que matarás o sonho que me exalta!
Negra barreira a erguer-se, intransponível, alta
no caminho lustral da minha Redenção!…

(SILVEIRA, 1962. p. 18)

A evocação mística dessa imagem já fora reinserida na poesia de Baudelaire, com o Heautontimoroumenos. Porém, neste caso, trata-se de um embate diverso. A poesia de Tasso da Silveira é essencialmente ascética. Por isso, sua poética é um exercício de conhecimento de quatro grandes mistérios: a encarnação (a existência), o amor, a morte e Deus.

FORMIGA

É um minúsculo inseto: uma formiga.
Sem que ninguém lhe note a faina obscura,
vai construindo, elevando para a altura
o formigueiro – templo e lar – que a abriga.

No titânico heroísmo em que se apura,
não hesita, sequer. E não a instiga
o ardor da glória: nem a inveja e a intriga
incentivo lhe dão para a aventura.

Que alto exemplo de fé no próprio esforço!
Fosse um de nós, e, instante por instante,
do cansaço abatido à força bruta,

pararia, curvando a fronte e o dorso,
a perguntar, de angústia palpitante,
qual a razão de ser daquela luta…

(Ibidem. p. 20)

Para essa luta, as virtudes do poeta são a humildade de reconhecer-se insuficiente e a coragem do embate. Durante esse prélio, a meditação de Tasso recorre muitas vezes a outros poetas, como Dante Alighieri, no belo poema “Em meio da jornada”:

[…]
E a crença, como o sol que da noite floresce,
Renascerá, talvez, da minha própria dor;
Então, levantarei ambas as mãos em prece
E beberei a vida e o amor…

Ou talvez que esta noite ainda mais escureça,
E mais me oprima o peito, e mais me aflija o olhar…
E mais densa se torne a bruma escura e espessa,
E mais pungente o me penar…

Então, hei de sentir, ante o horror que negreja,
A alimentar-me a vida, em doido frenezi,
O orgulho de ter sido heroico na peleja
E a saudade imortal de tudo o que perdi!…

(Ibid. p. 23)

Tasso concebe a luta espiritual como uma atitude heroica do pecador no mundo. Ele sabe que precisa provar as dores do mundo. Mas faz a força do fracasso. É o que lhe proporcionam outros símbolos, como o sonho, o mar e a escada.

ORGULHO

Subo… Distendo o olhar… O horizonte é amplo e vasto…
Estou mais só, porém mais livre… Ave, Libertas!
Deixei o lodo imundo… E quanto mais me afasto,
Vou sentido mais luz e as asas mais abertas…

Lutei para subir, em passadas incertas,
De fraguedo em fraguedo… É de sangue o meu rasto…
Entretanto, cheguei! E sinto que despertas
Dentro em mim, novamente, oh! Sonho ingênuo e casto!

Orgulho, eu te atingi! Foi um másculo esforço!
Hoje, afinal, descanso os membros fatigados
Das misérias vilãs que carreguei no dorso…

Bendito sejas tu, na amplidão que dominas,
Pois me cerras o ouvido aos pequeninos brados
E me ocultas à vista as coisas pequeninas…

(Ibid. p. 28)

Filho do poeta simbolista Silveira Neto, Tasso da Silveira participou ativamente, ao lado de Cecília Meireles, Murilo Mendes e Andrade Muricy, da literatura brasileira brigando pelo modernismo espiritualista, de continuidade da tradição, não de ruptura. Por conta disso, figurou ainda entre os poetas católicos Jorge de Lima e Augusto Frederico Schmidt. Em certo sentido, esse heroísmo fundamenta-se nessa visão de mundo universalista.

Em seu segundo livro, A alma heróica dos homens (1924), embora adotando outras poéticas, o poeta mantém esse mesmo embate.

GRITO

Meus irmãos, sonhadores, lutadores,
Garimpeiros do Ideal, – pobres de nós!
Quem nos dirá que às eras posteriores
Não chegarão nem pálidos rumores,
Ecos, talvez, de nossa humilde voz?…

Se tudo, tudo, se transforma em poeira,
Que recompensa nessa luta em vão?
Ah! Ter em prêmio, na hora derradeira,
Pelo holocausto de uma vida inteira,
Um momento de sonho e de ilusão…

Oh! Vençamos a horrível contingência,
A montanha que se ergue contra nós…
A morte esquece e apaga? O heroísmo vence-a!
Oh! Ponhamos mais ímpeto e veemência,
Mais doida angústia em nossa grande voz!…

(Ibid. p. 59)

Tecnicamente, o poeta curitibano teve uma maturação lenta. Nos primeiros livros predominam versos polimétricos e sonetos alexandrinos, com dupla adjetivação para fins de rima. Contudo, sua maturação poética acompanhou a sua depuração ascética.

FELICIDADE…

Oh, a luta arrebata para a vida!
A dor exalta como um vinho quente!
Por isto, é herói quem sofre! A dor, somente,
A alma estimula à glória pressentida…

Mas a ventura, a doce paz, a ardente
Felicidade – efêmera guarida… –
Como nos canta na alma comovida
Canções de morte, suaves… suavemente…

Ah! Perpetuar num sono derradeiro
O suspiro de alívio… E à dor do mundo
Fugir, sem mais querer o que se quis…

Ao silêncio entregar o ser inteiro,
Não mais sair desse êxtase profundo,
Para não deixar mais de ser feliz…

(Ibid. p. 64)

Embora não seja uma poesia pessimista, a dor e a melancolia são evocadas na ascese heroica. Segundo Nestor Victor:

o heroísmo de que Tasso nos fala é o do herói-cariatide, extremamente interiorizado, com excessiva consciência do peso que tem sobre os ombros, mas por isso mesmo sem a graça de um homem que vai pelo caminho parece que apenas descuidosamente a cantar. (VICTOR, 1938. p. 63)

Nessa poesia neo-simbolista, maturada posteriormente ao sopro de Whitman e Tagore, assim como os místicos e ascetas cristãos, o poeta coloca-se como sábio, e sua contenda pelo conhecimento se dá no coração da vida, que é o espetáculo sublime e hediondo de nascer, amar e morrer. O uso da alegoria é um reflexo da poesia sapiencial de Tasso da Silveira.

DO AMOR

Os homens puseram-se a bailar vertiginosamente
E a lançar grandes gritos descompassados
E a zabumbar em bombos rombos
Em nome da nova concepção de vida…
… mas eu me recolhi mais dentro de mim mesmo
E vivi ainda mais sofregamente
A história ingênua e comovida do nosso amor…

Do nosso amor que floriu em outras vidas
Que são como a nossa vida
Desprendida de nós…

Do nosso amor que desejou mil vezes
Perpetuar na morte
O seu momento de êxtase…

E chorou de se ver tão pequeninamente humano
E de haver maculado as asas tão brancas
Em lodo tão vulgar.

Do nosso amor que foi, por instante, um desejo saciado,
E teve a nostalgia de si mesmo,
Mas que Deus, por fim, tomou nas suas mãos
Transfiguradoras
E reacendeu, e purificou, para todo o sempre!

(SILVEIRA, 1962. p. 101, 102)

Nesse poema, Tasso parece denunciar os profanadores do amor que preferem “bailar” e “zabumbar” ao prélio. Para o poeta, o amor também faz parte de sua luta interior. É depuração do desejo em amor e a ampliação desse amor que “floriu em outras vidas”, compreendida não como reencarnação, mas como caridade.

Em magnífico estudo sobre a ópera wagneriana, O coração devotado à morte, Roger Scruton diz que:

O amor cortês de fato não era considerado uma força subversiva, nem na sociedade provençal, nem na literatura subsequente. Pelo contrário: era valorizado como idealização do impulso sexual, contribuindo para a estabilidade social por controlar as rivalidades masculinas por meio de um código de honra. [Ele] é a ênfase na vida virtuosa e no refreio sexual, e a frequente subsunção do amor sexual no culto mais amplo da Virgem.
[…]
O amor é visto não como expressão do desejo animal, mas como escolha racional, cujo objetivo é alguém digno dele. Essa escolha é uma marca distintiva de nossa condição, uma vez que somos feitos à imagem de Deus. A ‘corte de amor’ é uma representação alegórica disso, e o propósito da cortesia é retardar a união sexual, se não indefinidamente, ao menos até o momento em que ela seja inteira e completamente abraçada por um desejo proveniente da faculdade racional e por ela educado. Assim como o homem deve ser educado para que passe de desejo a amor. Entendido assim, o amor erótico não é um instinto que compartilhamos com os animais, mas um ato de escolha livre, em que os indivíduos se unem pela eternidade. (SCRUTON, 2010, pp. 31 – 33)

Graças a poetas como Dante Alighieri, Petrarca, Chaucer e Camões, o amor cortês, cuja educação do desejo erótico exigia ritos de virtude, encontra a caridade cristã, o amor ao próximo, sendo ainda protegido do mundo secular pelo casamento[1].

A visão que surgia do casamento enquanto sacramento divinamente ordenado pode ser visto como tentativa de cristianizar o erótico – de acomodar o eros em instituições pautadas pela lógica do ágape. O casamento retira o amor erótico do mundo público, limita-o a uma esfera privada, e o sujeita à incumbência da reprodução. […] O caráter sacramental do casamento não é conferido pela convenção. É conferido pelo amor erótico, que contém em si o momento de santificação, o momento em que duas pessoas dão e recebem si mesmas como dons. (Ibid. p. 207)

Além disso, destacando o conflito entre o amor sagrado e o amor profano: o primeiro tem como finalidade a castidade por meio do olhar; o segundo é a perversidade: é o olhar do mercador, do alcoviteiro, que negocia os corpos, Scruton diz que: o olhar erótico corporifica o sujeito, o olhar profano objetifica o corpo.

Neste sentido, ao considerar a dor e o silêncio necessário para a felicidade eterna, a visão amorosa de Tasso é análoga àquela concepção trágica do compositor alemão, ainda que sem seu pessimismo. Participando da tradição poética de Dante, Petrarca e Camões, para o poeta o amor também é um embate de virtude.

Em O empalhador de passarinhos, Mário de Andrade critica a postura benévola do poeta de Canto Absoluto. Talvez Mario esperasse dele aquela atitude profanadora, tão característica de parte da modernidade. A poesia belicosa do poeta de Cantos do campo de batalha (1945), no entanto, era também uma luta contra os iconoclastas e agitadores que, em seu desvario de autossuficiência, ao insurgir contra o Homem, destruíam o Templo da Beleza e do Amor.

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REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário. O empalhador de passarinho. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.

RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante – primeiras confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SCRUTON, Roger. Coração Devotado à Morte – O sexo e o sagrado em Tristão e Isolda, de Wagner. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2010.

SILVEIRA, Tasso. Puro Canto: Poemas Completos. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1962.

VICTOR, Nestor. Os de hoje: figuras do movimento modernista brasileiro. São Paulo: Cultura Moderna, 1938.

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NOTA

[1] Como atesta o mito de Tristão e Isolda, o casamento veio posteriormente a proteger a destruição do amor pelo mundo secular. Nelson Rodrigues diz que: “Ninguém suporta o amor alheio. O mundo nunca foi a casa do amor. Os que amam devem ser destruídos. […] Os impotentes do sentimento precisam matar o amor.” Cf. a crônica Ninguém pode saber que você ama.

Wagner Schadeck

Nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.

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