Fico constrangido quando ensino em sala de aula a formatação de escrita que consta no “guia do estudante”.
Chama-me a atenção quando ouço todo mundo se referir aos alunos que vão participar do Exame Nacional do Ensino Médio, carinhosamente chamado de Enem, como candidatos. Antes apenas uma avaliação para ver a quantas andava nosso ensino, a prova tornou-se mais um vestibular em que se disputa vaga em universidades, sendo que é obrigatório para quem necessita de bolsas do governo. E, o pior, vem se tornando a única porta de entrada para o ensino superior. Logo, logo deve-se acrescentar um U à sigla.
As universidades federais sofrem pressão para aceitar esse exame como nota principal ou a única para o ingresso do aluno. Editais para compra de livros didáticos por parte do governo exigem que o material seja elaborado a partir das áreas de conhecimento estabelecidas pelo Ministério de Educação e contempladas nesse exame. Na prova de redação, exige-se que o “candidato” faça uma proposta de intervenção social respeitando os direitos humanos. Pode parecer exagero meu, mas a ditadura adorava obrigar, forçar um pensamento único, pressionar as instituições, impor conteúdos programáticos, incutir sua ideologia.
Lembro ainda que estamos discutindo a BNCC – Base Nacional Curricular Comum, tentativa de unificar o currículo de todas as escolas, temos o SUS – Sistema Único de Saúde, cujo cartão está sendo obrigatório até para atendimentos de planos de saúde particulares, foi criado também o CADÚNICO – Cadastro Único para Programas Sociais, e nos últimos tempos um único partido dominava a mente de milhares de pessoas, foi responsável por mudar a história do país e o único que criou o céu e a terra e viu que tudo era bom. É o que o Enem se tornou nos últimos anos, um aparelho do Estado para conduzir nosso pensamento. Continuará assim no atual governo?
A propósito, este texto receberia uma nota muito baixa na prova do Enem, afinal, não estou seguindo a fórmula que unifica a escrita. Fico constrangido quando ensino em sala de aula a formatação que consta no “guia do estudante”, uma dissertação sem liberdade para se criar e que conduz o pensamento para respeitar os direitos humanos (os revoltadinhos contra os bandidos se dariam mal) e que tenha uma proposta de “intervenção”. É o que o Estado faz em nossas vidas, intervir.
No entanto, podem ficar tranquilos, futuros candidatos. Se as intervenções no ensino seguirem o ritmo que estão seguindo, no futuro não haverá mais dissertação. A redação do Enem será a elaboração de uma mensagem no Whatsapp utilizando apenas emojis.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.