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Amigo da lei, amigo do rei

por Augusto Gaidukas (20/11/2017)

Entre nós, aqueles que fazem a lei ou a executam estão, na prática, acima dela.

No Brasil, tudo é de segunda categoria. Não falo isso com ironia ou sagacidade. As evidências estão aí para quem quiser ver: qualquer um que tenha visitado um país de índices econômicos próximos aos nossos, como a Espanha, a Itália, o Canadá ou a Austrália saberá como as coisas são diferentes: as ruas são devidamente pavimentadas, as calçadas não estão cheias de buracos e falhas, os serviços de toda sorte são melhores, desde comida até manutenção industrial; educação, saúde, ciência e tecnologia, tudo no Brasil não é bom o suficiente.

Mas por quê? Com um PIB nominal entre os dez maiores do mundo, a quantidade de dinheiro na praça deveria abastecer os espaços e relações, dando ao país uma boa infraestrutura. Alguns culpam a corrupção, outros culpam o famigerado “jeitinho”; outros, ainda, a quantidade sufocante de impostos. Todos esses fatores efetivamente contribuem para o quadro desastroso que se pinta por aqui, mas eles são apenas reflexos de uma macroestrutura que existe desde a vinda da família real, que ganhou forma com o Império e assumiu sua forma final na República.

Existe uma estrutura inexorável de poder no Brasil, na forma de classes, que comanda e ordena o metrônomo das relações políticas e econômicas da nação. Os entendidos de história dirão que a sociedade estamental findou-se com a criação do estado moderno e o advento do capitalismo, e os marxistas concordarão comigo com várias ressalvas, embora o grande problema aqui seja esse nosso velho amigo chamado Estado.

A sociedade estamental brasileira divide-se da seguinte forma:

1. Os ricos

A queda do antigo regime destruiu os estados que existiam dentro da sociedade (o clero, a nobreza e a burguesia) e entregou o poder aos detentores da riqueza, que poderiam organizar a sociedade de acordo com seus valores morais e sociais. A figura do grande empresário, do grande industrial capitalista, das corporações em geral, surgiriam todas a partir desse período. No Brasil, embora faça parte de uma legislação oculta, que não está presente em nenhum código, quem detém o poder formal são os milionários e bilionários que aqui vivem, e isso se comprova por meio das relações pornográficas estabelecidas entre iniciativa privada e Estado desmascaradas na operação lava-jato. A forma fisiologista pela qual o aparelho de governo funcionava – e funciona em conjunto com empresários, e como era produzida verdadeira riqueza a partir disso, num ganha-ganha onde só quem perde é o povo, é fato inegável e escancara a forma como nossos políticos conseguiram criar um mirabolante Capitalismo de Estado mais eficiente do que o chinês na hora de fazer dinheiro a partir de nada. Embora boa parte dessas relações, no exemplo dado, sejam ilegais, não há dúvidas de que onde está o dinheiro, está o poder.

Façamos um exercício simples de pensamento: imagine dois candidatos, A e B, concorrendo ao congresso em época de eleições. O candidato A é formado em direito, possui uma pós-graduação em finanças públicas e vários cursos de extensão no exterior em teoria política e assuntos afins. Ele conta apenas com o apoio de familiares, amigos e simpatizantes e quer levar ideias realmente relevantes ao debate no congresso. Seu caixa para gastar com a corrida eleitoral é de 25 mil reais. O candidato B possui fundamental completo e vem de uma cidade do interior, onde um grande conglomerado agroindustrial gera 75% da riqueza do município. Ele conta com o financiamento privado da empresa – que, embora a minirreforma de 2015 tenha proibido, ainda pode ser realizado por pessoa física, o que na prática não muda nada –, de 250 mil reais. Quem possuirá mais votos ao final da eleição? Não é difícil imaginar.

Depois de eleito, o candidato B, então, representará da melhor forma possível os interesses do conglomerado, traduzindo os interesses privados em ações públicas que apenas beneficiarão a empresa, mesmo que de forma oculta e 100% legal.

Ainda que esse seja um exemplo típico de como certas bancadas se afirmam na Câmara, há, ainda, a forma criminosa pela qual iniciativa privada e Estado associam-se, na depravação corrupta que temos assistido desde sempre no Brasil. É assim que o detentor da renda detém o poder – e não há um único dispositivo legal que impeça isso. Em se tratando de Brasil, o que prevalece nunca é a teoria, mas sempre a prática.

2. Os funcionários públicos e políticos

O portador da pena é o escritor do próprio destino, e quem escreve as leis é obedecido. Aqui, embora não vivamos mais numa monarquia ou num absolutismo, onde a figura do rei representa o Estado, aqueles que fazem a lei ou a executam estão, na prática, acima dela. Quantas vezes, nos últimos anos, não vimos presidentes tomar importantes decisões para os rumos da nação por decreto, muitas vezes de forma inconstitucional; políticos fazerem manobras de forma a aceitar projetos de lei ou negar denúncias em Brasília; ou juízes ordenarem de forma surreal, na forma de sentenças, o cumprimento de determinações descabidas?

A elite do funcionalismo público – desembargadores; juízes, procuradores e policiais federais; ministros; auditores da Receita etc. –, que orbita principalmente na aplicabilidade da lei, do poder judiciário, e os políticos dos poderes executivo e legislativo – presidente da república, governadores dos estados, senadores e deputados federais; prefeitos e vereadores, em menor escala – estão na segunda classe. Eles, por estarem dentro do Estado e garantirem o funcionamento da máquina, estão acima de todo o resto, embora tenham de seguir a lei, ao menos alegadamente. Não que ser funcionário público (incluindo os políticos) seja errado em si, mas a forma pela qual esse poder é exercido é uma chaga que Montesquieu não foi capaz de sanar em sua divisão dos Três Poderes: a particularidade de sua execução. A justiça brasileira, por exemplo, é representada por indivíduos, e esses indivíduos são passíveis de erros, abusos e vícios. Embora essa estrutura de poder exista em todo o mundo e seja falha per se, no Brasil, o funcionalismo público tem um caráter especial: seu nascimento, junto das Cortes que vieram com D. João VI para o Rio de Janeiro, foi maculado com a sede de poder e ingerência dos indivíduos daquela época, fazendo com que o aparato de estado tupiniquim fosse um dos mais ineficientes do mundo.

Mas não falamos aqui de eficiência do Estado, e da forma que as estruturas de poder se firmam neste território.

Em relação aos altos funcionários públicos, suas importantes funções públicas já fazem deles figuras importantes e, portanto, acima do resto. Imagine a responsabilidade nas mãos de um juiz federal ou de um oficial de inteligência da ABIN, por exemplo – isso já faz deles pessoas com um poder muito maior do que o das pessoas comuns. Ligue para a polícia em caso da sua casa estar sendo invadida. Não diga qual é a sua profissão. Veja quanto tempo a polícia demora para chegar. Depois, ligue de novo e diga que é juiz. Será que o tempo de espera seria o mesmo?

Em relação aos políticos, em especial os do legislativo, o mero fato de eles escreverem e editarem as leis já diz muito sobre seu poder, além dos benefícios inúmeros decorrentes de possuir qualquer cargo em qualquer casa. Cartão corporativo, plano de saúde, salário astronômico que pode perdurar a vida toda em caso de reeleição, jornada de trabalho de apenas três dias e casa para morar são apenas algumas das regalias que possuem nossos honoráveis representantes. Não é possível que uma pessoa portadora de todos esses privilégios não esteja acima da senhora que precisa operar a coluna no SUS ou de uma criança que nasceu com qualquer doença congênita e precise de acompanhamento ambulatorial e não possa pagar por isso, enquanto qualquer legislador ou executivo seja automaticamente levado para hospitais de referência ao mero sinal de um mal-estar. Eles podem e você não pode. Entendeu?

Embora esteja imediatamente abaixo dos funcionários públicos, a partir deste nível, muda-se de categoria: os cidadãos daqui para baixo não têm poder nenhum além do social e do que seu dinheiro pode comprar. Vamos a eles.

3. A classe média

A classe média brasileira – e eu excluo aqui a classificação insatisfatória do Critério Brasil, que torna até o pedinte do semáforo classe média – é boa parte do povo, mas não a maioria. É o cidadão que possui algum nível cultural, que tem residência fixa, seja quitada ou não, que trabalha e puxa o carro deste país – médicos, engenheiros, advogados, administradores de empresas, pesquisadores, economistas, jornalistas, professores, profissionais técnicos em geral, autônomos, entre outros. São as pessoas que acordam cedo, vão trabalhar, sustentam família e são assaltadas pelo governo na forma de tributos todos os dias. O poder delas resume-se a sua influência pessoal, à riqueza que possuem e à capacidade mental ou física de se destacar em alguma área. É a classe que sabe que não existe almoço grátis.

A forma que esses indivíduos têm de subir nos níveis sociais, entretanto – já que os estamentos não são imóveis na democracia liberal – é enriquecendo, o que é bem difícil, especialmente neste país; ou passando em algum concurso público e automaticamente sendo promovido para a classe acima. É por isso que o sonho do brasileiro comum é ser aprovado num concurso e ficar o resto da vida sem produzir nada, apenas sendo mais uma engrenagem na máquina estatal, em vez de empreender e produzir. É até compreensível, dado que nossas leis, com um ranço fortemente getulista, tornam nosso aparelho governamental intervencionista demais. Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado.

4. Os pobres

A classe mais interessante, e a majoritária, onde está cerca de 53% dos brasileiros (IBGE), são as pessoas com renda familiar de até 1,5 salário mínimo. Essa classe concentra todo o resto, aos olhos das elites pessoas em fragilidade social, moradores de rua, de favelas, desempregados que não possuem nível médio, enfim, indivíduos que estão ao sabor das circunstâncias, no meio rural e nas cidades, o homem que entrega folhetos o dia inteiro embaixo do sol ou que vende chocolate de farol em farol; os criminosos e encarcerados; e pessoas com alto nível de dependência do estado no geral e que acabam, por desinformação e manipulação político-midiática, perpetuando, por meio do voto, os mesmos indivíduos com promessas messiânicas nas esferas municipal, estadual e federal.

Os pobres não tem direito nem de escolher os rumos da própria vida, estando sujeitos aos mandos e desmandos do governo e ao humor do mercado financeiro e de trabalho; quanto menos, exercer poder sobre outros grupos. Engana-se quem pensa que apenas porque os mais pobres elegem os piores políticos (se é que é possível que haja um político menos pior do que outro), a culpa pelo hecatombe ocorrendo na situação público-política no Brasil é exclusivamente deles. A culpa, na realidade, é da ganância, da mentira e da sede de poder de indivíduos, da estrutura de poder brasileira e da nossa cultura de não preocupar-se com nada, do deixa disso, do esquece essa merda aí.

Embora os ricos exerçam mais poder do que os políticos, como isso ocorre de forma oculta, além da lei, cabe apenas aos próprios políticos decidir vender-se em troca de dinheiro e de mais poder.

A solução, então, está no maior investimento em saúde, educação, no empoderamento dos desfavorecidos e em políticas públicas que permitam a diminuição nas disparidades de renda, igualando poderes entre as diversas camadas da população.

O parágrafo acima serviria de conclusão para a redação do ENEM, mas as coisas não funcionam assim. Para um ideólogo, sim; mas para um cético, que é cauteloso em suas análises de mundo, não. É estupidez imaginar que a classe política promulgará leis que diminuam seu próprio poder e riqueza e, mesmo que isso ocorra, representará dependência ainda maior do Estado por parte das pessoas, sendo uma ideia de todo ruim.

Então, a única coisa que resta, dentro da legalidade, é o poder do cidadão de refrescar a política com candidatos que não estejam vendidos, que não possuam passado obscuro, e cobrar desses políticos produtividade e ações contundentes com as promessas de campanha. Quem sabe, assim, diminua-se o abismo entre os detentores do poder e o povo, e demais reformas possam vir em seguida – como a da economia. Talvez esteja na hora dos indivíduos componentes do Estado brasileiro acordarem – seja por bem ou por mal, como temos visto com a quantidade tímida de prisões de políticos – e entenderem que a única forma deste país entrar no eixo é diminuindo a burocracia incapacitante, a quantidade punitiva de impostos e abrindo gradualmente a economia do país, permitindo uma concorrência saudável no mercado, e menos dependência dos indivíduos no Estado.

Augusto Gaidukas

Estudante de medicina na PUC-Campinas. Possui formação em finanças pela mesma universidade.