O gérmen autoritário da Lei de Godwin

por Paulo Roberto Silva (11/11/2017)

Como a analogia com o nazismo se tornou uma forma eficaz de interdição de debates.

É inevitável. Basta uma discussão entrar em um impasse ou desafiar as premissas de um dos debatedores, e ele saca o argumentum ad Hitlerum: “ah, mas os nazistas faziam [preencher com o que lhe convier, de perseguir raças não arianas a bater fotos com cachorros]”. Pronto, a partir deste momento a outra parte do debate precisa explicar porque os [católicos, evangélicos, liberais, nacionalistas, supremacistas brancos, comunistas, sionistas, muçulmanos, pessoas com mau gosto para bigodes ou clientes da Hugo Boss] não são exatamente nazistas. É derrota certa.

A referência ao nazismo é matadora – não tanto quanto o próprio nazismo, mas ainda assim de uma letalidade relevante. Se há um grande consenso contemporâneo é que o nazismo representa a forma política do mal absoluto. Nem mesmo os maiores genocidas do campo comunista, como o cambojano Pol Pot, conseguem tamanha unanimidade. Todas as correntes políticas modernas, mesmo a ultra-direita radical, colocam o nazismo como o Grão Inimigo por excelência.

E no entanto nenhuma corrente ideológica consegue se safar de ser associada ao nazismo. Supremacistas brancos? Nazistas, claro. Comunistas? Ora, o partido de Hitler era o Nacional-Socialista – socialista, entendeu? E explica aí o acordo Ribbentropp-Molotov. Católicos? Ah, Pio XII era brother dos nazistas, não é? Muçulmanos? O mufti de Jerusalém era aliado de Hitler. Liberais? Vários líderes liberais preferiam Hitler a Stálin. E assim sucessivamente, cada um tem o seu pé no nazismo.

Ao lado dessa associação, geralmente espúria, vem o alerta moral. Afinal, deixaram Hitler falar à vontade, e deu no que deu. Podemos deixar novos nazistas florescerem impunemente? Jamais. Em uma espécie de Minority Report farsesca, temos que nos antecipar aos novos nazistas e silenciá-los no nascedouro. Se o nazismo é algo tão mau, é de mister importância que não apareça novamente sobre a terra.

Espera um pouco. Seriam os contemporâneos de Hitler idiotas o suficiente para não entenderem que ele era o Mal Absoluto? E por qual razão estaríamos nós melhor preparados para enfrentar um Hitler que aqueles de seu tempo, os quais realmente tiveram que enfrentar e derrotar Hitler? Para isso, vamos voltar no tempo e entender o momento histórico do nazismo, buscando descobrir:

1. Afinal, por que tantas ideologias podem ser associadas ao nazismo?

2. Estariam seus contemporâneos preparados para enfrentar o nazismo antes que subisse ao poder?

3. Qual a melhor forma de evitar um novo nazismo?

O mundo às vésperas do nazismo

Geralmente os comentários sobre o nazismo ignoram completamente o contexto histórico em que ele surgiu, cresceu e assumiu o poder. Estamos falando do período após a Primeira Guerra Mundial, onde especialmente na Alemanha se reuniram condições específicas que permitiram a existência do nazismo.

Quando falamos da Alemanha no período, o que temos é um país de tradição autoritária, derrotado em uma guerra, sacudido por uma revolução que instaurou a democracia e a República no país. Foi o governo da República, liderado pela esquerda social-democrata, que assinou o Tratado de Versailles. Em um país com orgulho de seus homens fortes prussianos, como Otto Bismark, a rendição ficou na conta do governo social-democrata.

Os cronistas da época destacam duas coisas: hiperinflação e ausência de compromisso dos grupos políticos com a democracia. O Partido Comunista Alemão planejou diversas tentativas de tomada violenta do poder no período – 1921, 1923 e 1927. Os nacionalistas contavam com grupos paramilitares chamados Freicorps, formados por jovens oficiais da Primeira Guerra. Os nazistas, neste cenário, eram apenas mais um grupo político com força militar própria.

A crise econômica alimentava o cenário político. Sua causa também era política: por conta do Tratado de Versailles, apenas um país estava disposto a oferecer ajuda financeira à Alemanha: a União Soviética. Seus objetivos, contudo, eram dúbios. Por um lado a reconstrução soviética após a Guerra Civil demandava apoio técnico alemão. Por outro, Lênin e o Komiterm não escondiam seu desejo de implantar um regime comunista satélite em Berlim (neste ponto, Stálin era mais reticente). Ou seja, a Alemanha estava recebendo apoio econômico de um país interessado em sua destruição.

Gustav Stresemann assumiu o governo em 1923 como representante do Partido Popular Alemão, de viés nacionalista. Como primeiro ministro e depois ministro do Exterior, conseguiu amenizar os termos do Tratado de Versailles e superar o cenário de hiperinflação. Mas foi um voo curto: os novos termos dependiam de crédito norte-americano, e com a Depressão essa fonte secou, voltando o país à crise.

A Depressão provocou um consenso imediato na Alemanha de que o livre-mercado era parte do problema. Não eram apenas os comunistas: desde Bismark a indústria alemã se desenvolveu sob intenso dirigismo estatal. O sucesso da política autoritária do Império levou a um quase consenso antiliberal no país às vésperas da Primeira Guerra Mundial. É esse consenso que retorna com força após o colapso da estratégia de Stresemann.

É neste ambiente de crise e consenso autoritário que nasce a política de massas na Alemanha. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha os primeiros partidos políticos de massas têm viés liberal – Republicanos nos EUA, whigs na Grã-Bretanha. Na França é um partido de inspiração maçônica – Radicais Socialistas. Na Itália são os católicos da Democracia Cristã. Já na Alemanha os partidos social-democrata e Democratas Cristãos perdem espaço para o Partido Comunista e o Nazista.

Para um alemão médio em 1930, não havia lá grandes diferenças de discurso entre os partidos. Na média, todos defendiam algum grau de dirigismo estatal na economia, antissemitismo, necessidade de trazer de volta a glória do passado imperial e nenhum valor à democracia. O líder do partido apenas parecia mais encantador que os demais, já bastante desgastados e envelhecidos. Para um observador internacional, também parecia haver pouca diferença.

Talvez o grande diferencial do nazismo seja a sua sinceridade. Eles prometeram invadir os países vizinhos, submeter as raças inferiores ao poderio alemão e acabar com os judeus. Qualquer partido alemão em 1932 teria dito o mesmo. O problema é que, diferentemente dos outros, os nazistas cumpriram as promessas.

Respondendo às perguntas

Feito esse retrospecto, podemos responder às perguntas que fizemos acima. Para começar, vejo duas razões pelas quais é possível associar o nazismo a praticamente quaisquer ideologias. A primeira delas é que o nazismo não era uma ideologia original, mas um misto populista de discursos. A genialidade de Hitler foi combinar o que funcionava em cada discurso e tornar isso coisa sua.

O alemão é antissemita? Vamos acusar os judeus. Há coisas mal resolvidas entre cristãos alemães e Roma? Vamos restaurar o cristianismo original germânico. Há medo do comunismo? Sejamos os maiores opositores ao comunismo. O povo está insatisfeito com a República? Implantemos um regime de força. O livre mercado trouxe a crise? Façamos o estado intervir.

E aí entra a segunda razão. O nazismo foi essencialmente uma corrente política moderna. Como tal, foi moldada por um partido de massas, com estrutura profissional. O caráter populista de seu discurso é apenas mais um elemento de uma lógica política baseada na mobilização popular. As massas não se movem por ideias abstratas e fluidas, mas por uma narrativa clara de heroísmo e superação. Por isso, toda política de massas traz algo de messiânico e motivacional, de culto à personalidade.

As variações deste discurso dependerão da cultura de cada país. Roosevelt foi buscar em Napoleon Hill o discurso motivacional para um país de self-made man. Stálin incorporou a figura do czar. Churchill apelou à tradição aristocrática britânica e seu horror ao militarismo prussiano. Mao Tsé-Tung tornou-se uma espécie de Imperador Han. Getúlio Vargas fez de si mesmo um Macunaíma paternalista. Mussolini trabalhou as referências do Império Romano. E De Gaulle fez de si mesmo um novo Napoleão. Cada um trabalhou o imaginário das massas de seu próprio país. Mas a base lógica era muito parecida.

Ou seja, Hitler foi de certa forma um homem de seu tempo. Por isso, os homens de seu tempo não poderiam se prevenir contra ele. Da mesma forma, nós estamos travando os debates do nosso tempo, que também são travados sob bases populistas. Ou seja, é uma grande perda de tempo procurar os elementos nazistas nos discursos de A ou B: todos serão um pouco nazistas porque todos terão elementos de populismo e política de massas.

“Ah, mas tal grupo faz culto à personalidade” – todo político de massas promove algum culto à sua personalidade desde Abraham Lincoln. “Tal grupo promove o nacionalismo” – não conheço um político eleito tendo como plataforma afundar o país (vários afundaram, mas diziam que fariam outra coisa). E assim sucessivamente. Sabe aquele seu político de estimação? Ele também é um pouco nazista.

Então como evitar o nazismo? Quando olhamos para a história da Alemanha, vemos que antes do nazismo se viabilizar eleitoralmente, as lideranças políticas do país já haviam abandonado seu compromisso com a democracia – se é que tiveram algum. As práticas políticas violentas e autoritárias estavam disseminadas, partidos contavam com organizações paramilitares, e várias tentativas de golpe de estado foram promovidas.

Aí está o meu ponto. A melhor vacina contra regimes autoritários em geral é a denúncia da prática autoritária, onde quer que ela esteja. Não podemos achar natural que uma palestra sobre o tema que for dada por quem quer que seja possa ser inviabilizada violentamente. A palestrante pode ser Judith Butler ou Yoani Sánchez. O evento pode ser uma exposição de arte LGBT ou uma missa campal. Pode ser um debate sobre a Revolução Russa ou uma exibição de Jardim das Aflições. A obstrução violenta do debate não é algo aceitável em hipótese alguma.

Este é apenas um exemplo de desenvolvimento de um ambiente autoritário favorável aos nazismos de ontem e hoje. A interdição dos debates é uma demonstração de intolerância que parte daqueles que mais deveriam defender o pluralismo, os intelectuais. Por isso o alerta. Usar a Lei de Godwin para promover a interdição de debates é uma forma especial de se criar um ambiente propício para símiles do nazismo.

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P.S.: um exemplo de debate ruim é o que acontece nas caixas de comentários da Amálgama. Ou o pessoal aplaude ou sai denunciando coisas que não estão no texto em absoluto. Este texto é para ser lido e desafiado. Considerem os argumentos aqui expostos e questione-os. Mas não procurem teorias da conspiração onde não há.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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