Se até os santos possuíam o mal dentro de si, que será dito de nós, pessoas comuns?
Os livros de autoajuda tentam convencer-nos de que todos os nossos problemas estão em nós mesmos. Como se o mundo fosse um circo irreparável, dentro do qual é inútil sensibilizar-se frente às adversidades cotidianas. Esses livros usam grandes filósofos, como Platão, Nietzsche e até o pessimista Schopenhauer para dar lições de vida e ensinar que as contrariedades estão nos olhos de quem vê.
O que os autores dos livros de autoajuda podem não saber, no entanto, é que todas as suas obras baseiam-se fundamentalmente numa corrente filosófica antiga, o Estoicismo. Criada em Atenas por Zenão de Cítio no século III a.C., e derivada do Cinismo (que tem pouco a ver com o significado atribuído a essa palavra hoje em dia), a escola estoica pregava que a dor e o sofrimento eram provenientes de julgamentos errôneos ou exacerbados do que ocorre com o indivíduo – na época, entendido como um determinismo cósmico, dentro de uma lógica onde existia o Destino. Adaptado aos dias atuais, o estoicismo, como filosofia de vida, seria como uma esfera na qual o indivíduo entra e protege-se dos “problemas” externos, que só seriam problemas caso o indivíduo os enxergasse dessa forma. Então, a felicidade não seria uma plenitude externa – dinheiro, amor, sexo, comida, viagens –, mas interna, na forma de um entendimento sábio de que a realidade é desastrosa e não há motivos para afligir-se com isso. A felicidade estaria, então, numa vida virtuosa e equilibrada, como mais de três mil anos de filosofia oriental vem tentando convencer-nos, embora tentemos escapar disso a todo tempo.
A vida, tão logo isso esteja clarificado no indivíduo, seria um ambiente fatalista, no qual nossas escolhas e volições (prohairesis) determinariam o curso das coisas, no sentido mais abrangente do termo. Não falta literatura a respeito disso. Um belo exemplo é o filme Relatos Selvagens, de Damián Szifron, embora essa obra essa mais para caótica do que estoica, mesmo que a Teoria do Caos reitere o estoicismo. Outros bons exemplos da literatura são um Bentinho enlouquecido por ciúmes, e que causa indiretamente a morte de seu alegado filho; ou Laio, que, com medo de sofrer patricídio após o Oráculo revelar seu destino, manda seu filho Édipo para a morte, apenas concretizando a profecia.
Nossos desejos, fazendo um análise profunda, poderiam ser a grande origem dos nossos problemas. E os monstros que em nós vivem ganhariam forma e vida. Os monstros da arrogância, da ganância, da violência, da ingratidão, da infidelidade, da antipatia, do ódio, da inveja, cada um de uma cor e cheiro diferentes, seriam os verdadeiros agentes dos atos horrendos que todos nós praticamos. Um assassino é assassino o tempo todo? Toda sua existência pode ser reduzida ao crime cometido? E um caridoso, também?
Antes de sua conversão, Agostinho de Hipona – o Santo Agostinho –, ainda em Cartago, onde estudava retórica, certa vez, com um grupo de amigos, numa atitude irresponsável, balançou com eles uma macieira de forma que os frutos caíssem, pelo simples ato de fazê-lo. Quantas pessoas famintas poderiam ter sido alimentadas com aquelas maçãs frescas, mas que continuaram com fome porque, em vez de continuarem presas à árvore para serem colhidas no tempo certo, caíram no chão e apodreceram? Agostinho não demonstra em suas Confissões, mas obviamente arrependera-se mais tarde de tal episódio, a ponto de relatá-lo por escrito depois de tornar-se católico.
O incidente cometido por Agostinho é fato ilustrativo sobre como podemos ser maus sem darmo-nos conta. O argumento putativo de bem e mal, de nós contra eles, o maniqueísmo – que, coincidentemente, é condenado no mesmo livro do santo – professado em qualquer meio, seja na mídia, nas escolas e universidades, em casa, é o maior embuste existencial que alguém poderia pensar.
A hagiografia nos oferece sempre boas narrativas de desvios de conduta, conversão e redenção. Outra boa história é a de Giovanni di Pietro di Bernardone, mais conhecido como São Francisco de Assis. Nascido numa família burguesa de origens francesas, após ser eleito “rei da juventude” – algo próximo aos It Boys de hoje em dia –, foi tocado por uma dita visão divina, a qual o tocou para ajudar os necessitados. Conseguintemente, Francisco abandou a esbórnia de sua juventude e passou a seguir uma vida confessional, tornando-se o maior ícone do cristianismo desde Jesus.
Se até os santos possuíam o mal – ou, ao menos, imoralidades – dentro de si, que será dito de nós, pessoas comuns? Quem nunca teve um pensamento ruim contra um inimigo, desposou a lascívia, ou foi às vias de fato em qualquer conduta moralmente incorreta, que atire a primeira pedra. O fato é que, independentemente de nossas identidades, todos nós temos a maldade em nossos corações – e a bondade também. Apenas psicopatas são incapazes de sentir empatia, compaixão ou alguma forma de emoção positiva em relação ao mundo externo.
Não defendo aqui um relativismo amoralista, onde não haja certo ou errado, mas que é impossível ser constante a todo tempo, e que boa parte das qualidades a que nos são atribuídas fazem parte de momentos, como quase tudo na maior parte da vida. O mais importante é, então, saber controlar esses monstros que sempre estarão conosco – a não ser que você, leitor, já tenha atingido a transcendência –, e buscar sempre a retidão e o bom caminho, à forma dos velhos estoicos. Não é preciso ser asceta como os monges franciscanos, no entanto: basta fazer o certo pelo certo.
Augusto Gaidukas
Estudante de medicina na PUC-Campinas. Possui formação em finanças pela mesma universidade.