O pintor que melhor flertava com o imaginário visual da pornografia era Gustave Courbet.
Uma anti-Mona Lisa
Sob a rigorosa moralidade pública da sociedade vitoriana, abrigavam-se dois interessantes fenômenos: o fascínio pelo nu nas artes plásticas e a consolidação da pornografia como forma de entretenimento de massa. Fazia-se necessário, então, estabelecer os parâmetros do que seria uma abordagem estética e socialmente aceitável da sexualidade e do corpo humanos. De um lado, tínhamos uma representação sublimatória da figura feminina, envolta em referências culturais de prestígio; do outro, uma imagem desmitificada e hiper-realista da mulher, com ênfase nos aspectos sexuais. Para o público do Salon de Paris de 1865, parecia que o quadro Olympia, de Édouard Manet, ocupava um lugar indefinido entre esses dois polos.
Basta uma comparação com nus famosos da arte acadêmica francesa do século XIX para se ter uma ideia das causas do estranhamento do público diante de Olympia. Veja-se, por exemplo, o quadro L’Odalisque à l’esclave de Jean-Auguste-Dominique Ingres, pintado em 1839 e considerado um elo de ligação entre a Vênus de Urbino, de Ticiano, e a tela de Manet.
Vemos a atmosfera de sensualidade e exotismo criada em torno do motivo oriental, uma das referências que, na época, faziam parte das fantasias eróticas chanceladas pela tradição artística. Em segundo, o corpo da odalisca, languidamente espalhado sobre a tapeçaria, distribui-se — quase invertebrado — em formas sinuosas de grande volúpia, delimitando uma superfície entre o róseo e o perolado, ao mesmo tempo carnal em seus volumes e etérea em sua textura. Trata-se de um corpo feito para o deleite dos olhos e que parece não obedecer rigorosamente a nenhuma anatomia que não a do desejo. Contudo, apesar de sugestivamente sexual, tal corpo manifesta algo de incorpóreo, de quimérico. Sua aura irradia-se por todo o ambiente, subordinando os demais elementos da composição a seu poderoso magnetismo visual.
Outro nu que pode ser evocado em comparação com o de Olympia é o de La naissance de Vénus, de Alexandre Cabanel, obra reverenciada no Salon de 1863 (o mesmo ano em que o quadro de Manet era pintado) e comprada pelo imperador francês, Napoleão III. Nela, vemos um corpo caprichosamente torneado e deliciosamente volumoso, porém marmóreo em sua brancura glacial. Assemelhar-se-ia a uma peça de porcelana, se a porcelana pudesse ser tão flexível. O motivo mitológico ajuda a desmaterializar o corpo divino, que ameaça esvanecer sobre o fundo celeste e meramente decorativo contra o qual está recortado. Completando o clima de irrealidade da pintura, percebe-se, como de costume, o ventre liso que se estende até a linha do púbis, onde não existe o sexo. Estamos diante de um corpo saturado de aura.
Em Olympia, não encontramos nada da atmosfera iridescente de La naissance de Vénus ou da tepidez de L’Odalisque à l’esclave. Pelo contrário: o cenário é escuro e abafado, e o fundo comprime as figuras em primeiro plano. Além do mais, Olímpia está longe de ter as formas graciosas e fantásticas da odalisca de Ingres ou da Vênus de Cabanel. Sua coloração amarelada é espessa e opaca; sob ela, o volume desaparece, e a pele, por vezes, sugere um borrão. A despeito disso, seu corpo aparenta ser muito mais sólido e palpável do que verificamos nos outros dois quadros, e sua massa possui peso e densidade. O tema ordinário da prostituição, despido de qualquer tendência idealizante ou distanciamento cultural, ajuda a produzir a impressão de concretude.
A postura de Olímpia, mesmo diante de quem se supõe ser seu cliente (papel ao qual estamos convertidos), demonstra certa tensão, como se percebe na curva que leva do pescoço ao ombro. O braço direito, por sua vez, está levemente retraído; não há a ampla abertura que vemos nas figuras femininas de Ingres e Cabanel, que favorece a exposição dos seios. Olímpia, embora esteja ali para nos servir sexualmente, não se encontra na mesma atitude lânguida de entrega verificada naquelas duas figuras. A mão esquerda, espalmada sobre o sexo, sugere a tangibilidade daquilo que esconde e que, por isso, deve ser mantido fora do olhar do público. Já na Vênus de Urbino, a mão está displicentemente posta sobre a genitália, como que por acaso, enquanto no quadro de Ingres um véu translúcido mal oculta o que não há para ocultar e que, na tela de Cabanel, mostra-se em toda a evidência de sua ausência.
Outro elemento são os cabelos: índice de feminilidade são abundantes e recebem bastante destaque na divindade de Cabanel e na odalisca de Ingres, talvez para simbolizar, por deslocamento, a genitália que não há. No quadro de Ticiano, os cabelos, mais discretos, emolduram suavemente o rosto de Vênus. Em Olympia, por outro lado, eles se encontram presos, dando um contorno mais brusco à cabeça da figura feminina, enquanto um chumaço deles se derrama sobre o ombro esquerdo, num borrão cor de tabaco, fundindo-se visualmente ao fundo. Em suma, Olímpia está muito longe de corresponder aos seres ao mesmo tempo luxuriosos e dessexuados que frequentavam os nus da arte acadêmica. Sua sexualidade é um componente indiscutível do quadro, embora a voltagem erótica, se há alguma, é muito tênue.
Constata-se que Olímpia é uma figura completamente destituída de aura, trivial até, não chegando a ser especialmente bonita, muito menos voluptuosa. Para além da imagem que antevemos da prostituta, não é difícil discernir, por trás das referências iconográficas, um registro não idealizado, quase fotográfico, da modelo Victorine Meurent, a favorita de Manet. Um dos aspectos mais incômodos na tela é a expressão facial de Olímpia, sobretudo o olhar. Sua feição não tem a lassidão vulnerável dos quadros de Ingres e Cabanel, nem o meio-sorriso cúmplice e o olhar vagamente sugestivo da Vênus de Ticiano. Trata-se de um rosto tomado pela indiferença, um olhar fosco de tédio, que não esboça interesse sexual; uma face de quem já transformou o jogo erótico em rotina, em protocolo profissional.
Apelando mais uma vez à história da arte, o olhar de Olímpia é o oposto simétrico do sorriso da Mona Lisa, do famoso quadro de Leonardo da Vinci. Na obra de Da Vinci, o sorriso da figura feminina e a feição enigmática sustentado por ele são a materialização da própria ideia de aura no momento em que a arte ocidental se deslocava do caráter religioso da pintura medieval para o culto profano da beleza no Renascimento. Não é por acaso que La Gioconda (1503-1506) é a obra que maior impacto exerceu sobre o imaginário ocidental com seu elevado valor de culto, pois sintetiza as propriedades estéticas que, desde o início da Idade Moderna, esperava-se do objeto artístico.
Olympia, por sua vez, com sua figura feminina sem mistério algum, está no limiar entre a arte acadêmica e a arte moderna, como já apontaram diversos especialistas. A obra de Manet encerra um ciclo, o qual encontra, na imagem onipresente da Mona Lisa em nossa cultura, sua referência mais popular. Talvez seja pressentindo isso que Charles Baudelaire, escrevendo para Manet a respeito da polêmica em torno de Olympia, tenha afirmado que o pintor era “apenas o primeiro na decrepitude de sua arte”. A arte, como o Ocidente a compreendia desde o século XV, começava a morrer naquele instante.
Mas se o quadro Olympia, com sua representação desauratizada da figura feminina, não podia ser colocado comodamente ao lado dos nus artísticos da época, será que podemos considerá-lo em alguma medida pornográfico? A meu ver, o pintor que melhor flertava com o imaginário visual da pornografia era Gustave Courbet, considerado o principal nome da escola realista nas artes plásticas. A pintura espessa, de acabamento às vezes deliberadamente grosseiro, pastosa; a temática cotidiana e a gramática compositiva prosaica, apresentadas em grande escala, o que até então era exclusividade dos temas históricos; as figuras sem nenhuma sublimidade — tais características do estilo courbetiano eram um desafio ao gosto instituído. Como nenhum outro artista antes dele, Courbet se esforçou em romper a aura dos objetos figurados em suas obras.
Courbet travou uma luta contra o establishment artístico de sua época. Em 1855, após ter sua obra mais ambiciosa — L’Atelier du peintre, monumental pintura de mais de 21m2 — recusada para a Exposition Universelle de 1855, o artista organizou, em protesto, uma mostra individual, o Pavillon du Réalisme, retirando do evento oficial suas obras que haviam sido selecionadas. Em 1863, sua tela de teor anticlerical, Le retour de la conférence, foi recusada no Salon de Paris e exposta no Salon des Refusés. Constantemente, Courbet utilizava-se da temática erótica como forma de obter efeito de choque. É o caso de Le sommeil (1866), de inspiração baudelairiana (“Femmes damnés: Delphine et Hippolyte”).
Embora a tela tenha recebido posteriormente um título alternativo de caráter alegórico — Paresse et Luxure (“Preguiça e Luxúria”) —, sua característica mais evidente é a maneira direta e sem rebuço com que o tema do lesbianismo é tratado, destituído de componentes visuais que remetam ao repertório de convenções da arte erótica do período. Os corpos entrelaçados das duas mulheres parecem muito mais sólidos do que os encontrados no academicismo do século XIX. O quadro foi pintado sob encomenda para o diplomata otomano Khalil-Bey, que possuía uma coleção particular de obras eróticas. Não se teve dúvidas do caráter francamente obsceno da pintura, tanto que, em 1872, quando exposta para venda, a tela de Courbet foi alvo de um inquérito policial, resultando na proibição de sua exibição, que vigorou até 1988!
Juntamente com Le sommeil, Courbet pintou para o diplomata otomano o célebre L’Origene du monde, que mostra uma genitália feminina em close, sem qualquer tipo de pretexto ou contextualização. Com certeza, foi o mais próximo que a arte acadêmica do século XIX chegara até então da pornografia. O título do quadro, que remete à metafísica, estabelece ironicamente um contraste com a imagem representada, isenta de toda aura.
Olympia, no entanto, embora também apresente uma figura feminina desauratizada, não possui a sexualidade ostensiva das duas telas de Courbet. Em tal obra, o corpo da mulher não está voltado à excitação da libido do espectador. Dessa maneira, a nudez no quadro de Manet escapava às categorias tacitamente estabelecidas no imaginário visual vitoriano: nem objeto de contemplação estética (nu artístico), nem instrumento de satisfação erótica (nu pornográfico). O que temos aqui, aparentemente, é uma nudez representada em sua mais absoluta banalidade, como fato corriqueiro. Apesar de seu caráter puritano (ou talvez precisamente por conta dele), a sociedade vitoriana era profundamente voyeurística, e a tela de Manet parecia frustrar esse voyeurismo, rompendo, assim, com as expectativas de recepção do público. Afinal, Olympia era arte ou pornografia? Era arte, mas seriam necessários alguns anos para que os valores estéticos se transformassem e a obra encontrasse um lugar na tradição artística ocidental.
Mas a tela exposta no Salon de 1865 não foi o primeiro escândalo causado pela representação da nudez na carreira de Édouard Manet. Le déjeneur sur l’herbe, obra recusada no Salon de 1863 e exposta no Salon des Refusés, também causou polêmica.
Inspirada em Concert champêtre (1509), de Ticiano, e com referências a Jugement de Pâris, obra perdida de Rafael de Sânzio, porém conhecida graças à gravura feita por Marcantonio Raimondi, a obra apresenta uma mulher nua ao lado de dois homens em trajes contemporâneos (a modelo, mais uma vez, é Victorine Meurent); ao fundo, outra figura feminina, em roupas de baixo, lava-se no que parece ser um lago (uma das leituras propostas de tal gesto é que ela seria uma prostituta lavando suas partes íntimas após o coito). No quadro, Manet não apenas ignora o distanciamento necessário à criação da aura, como coloca o gênero do nu em explícita tensão com o motivo cotidiano e com a experiência do homem moderno. Essa nudez deslocada no tempo e no espaço, numa composição estranha e aparentemente despropositada, confundia as expectativas de recepção do público. Temos novamente um nu realista e alheio a qualquer princípio de idealização; mais uma vez, Victorine nos fita, mas com um sorriso displicente e sem nenhum constrangimento, no qual alguns espectadores já perceberam um ar de zombaria.
Em Le déjaneur sur l’herbe e Olympia — ao romper a aura da representação da figura feminina e com a doutrina do distanciamento —, Manet subverte as convenções do nu artístico, sem incorrer, entretanto, no hiper-realismo pornográfico, enfaticamente sexual. Eu diria que, mais do que a figuração do nu, tema convencionalmente construído, o que temos na pintura de tal artista é pura e simplesmente a representação da nudez, sem as referências do academicismo, mas também sem a sintaxe visual e a performance da imagem pornográfica.
[CONTINUA EM MAIS DUAS PARTES]
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CLARK, T. J. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Manet e seus seguidores. Tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
COLI, Jorge. “Os poderes dos fragmentos”. In: O corpo da liberdade: reflexões sobre a pintura no século XIX. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LUCIE-SMITH, Edward. Sexuality in western art. London: Thames and Hudson Ltd, 1991.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Tradução Cleonice Mourão, Consuelo Santiago e Eunice Galéry. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.
Emmanuel Santiago
Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).
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