No registro pornográfico, a sexualidade se faz presente como espetacularidade pura.
O império das sensações
Olympia, o controverso quadro de Manet, coincide historicamente com ascensão da pornografia não apenas como, nas palavras de Jorge Leite Júnior, “representação sexual visando em especial a excitação erótica de seu público e estando intimamente relacionada com a produção padronizada para um mercado estabelecido”[1] (o que poderíamos chamar de indústria pornográfica), mas também como conceito e categoria regulamentária. Não que atos obscenos não fossem representados até então — pelo contrário, podemos encontrá-los já na pintura rupestre, sendo que algumas civilizações antigas se esmeraram em registrá-los. Contudo, desde o início da Idade Moderna até o século XIX, o domínio do obsceno misturava-se a uma variedade de discursos que ameaçavam de algum modo a ordem estabelecida, como a crítica política, o pensamento anticlerical e o materialismo filosófico. A constituição da pornografia como campo autônomo do imaginário social é uma criação da Idade Contemporânea[2].
O primeiro registro em francês da palavra pornographe data de 1769, num tratado de Restif de la Brettone, referindo-se especificamente a textos sobre prostituição. No sentido que lhe atribuímos hoje, como representação literária ou gráfica de atos obscenos, o termo se consolida na França entre 1830 e 1840. Em inglês, a estreia se dá, no dicionário Oxford, em 1857. O contexto do surgimento do conceito está ligado à crescente alfabetização da população e ao desenvolvimento de meios de difusão em massa de ilustrações e da palavra escrita, democratizando o acesso às obras licenciosas. Com isso, surgiu um potencial mercado consumidor para produtos de tal natureza, fazendo com que a representação do obsceno se afastasse das ideias políticas e filosóficas e se concentrasse exclusivamente em excitar o leitor, ou, como se dizia na época, em lhe proporcionar “sensações”; capitalizava-se a obscenidade. Eis que o termo “pornografia” passa a ser utilizado como categoria reguladora pelos mecanismos sociais de repressão, não mais preocupados com a disseminação de ideologias subversivas, mas com a preservação da moralidade pública[3].
O principal impulso ao estabelecimento da indústria pornográfica se deu na década de 1830 com a invenção da fotografia, que logo seria utilizada para registrar a nudez feminina. Uma das primeiras fotos claramente pornográficas conhecidas, tirada por Auguste Belloc, é de aproximadamente 1850 e retrata duas mulheres diante de um espelho, ambas de costas, como se tornaria de costume. Os primeiros nus frontais apareceriam somente a partir de 1860. Na década de 1870, sabe-se que já havia uma intensa produção de fotos pornográficas, incluindo imagens de sexo explícito e de vários tipos de fetiche, o que está relacionado ao avanço técnico da fotografia, que, com a substituição do daguerreótipo por processos mais modernos de captação de imagens, exigia um tempo menor de exposição à luz. Uma das formas mais populares de divulgação de material pornográfico eram os cartões-postais[4].
Na passagem do século XIX para o XX, era possível encontrar na Europa um número considerável de revistas dedicadas ao nu feminino e à insinuação de atos sexuais (softcore), como a inglesa Photo Bits. O surgimento do cinema contribuiria ainda mais para a consolidação da indústria pornográfica, destacando-se o pioneirismo dos franceses Eugène Pirou e Albert Kirchner, que produziam filmes mais sugestivos do que propriamente obscenos. Nestes primeiros tempos, predominam mulheres em danças provocantes e o striptease. Aquele que é considerado o primeiro filme de fato pornográfico, com cenas de sexo explícito, é À l’ecu d’or ou la bonne auberge de 1908[5].
A princípio, as fotografias de mulheres nuas destinavam-se a artistas plásticos, consistindo numa alternativa prática à contratação de modelos. Tais fotografias, porém, logo caíram no gosto do público em geral. Percebe-se, nesses primeiros registros, o esforço dos fotógrafos em reproduzir os temas e as poses convencionais da tradição acadêmica como forma de garantir dignidade estética a seu trabalho, mas não levaria muito tempo para que o nu fotográfico se emancipasse do jugo das belas-artes e se tornasse uma forma de expressão independente, constituindo um universo imagético próprio[6].
Para a burguesia da era vitoriana, fascinada com o nu nas artes plásticas e, ao mesmo tempo, escandalizada com a irrupção de imagens pornográficas, tornava-se necessário estabelecer os limites entre uma representação aceitável da sexualidade humana (o erotismo) e aquela que atentaria contra o decoro artístico e as regras da moralidade pública (a pornografia). Dentro desse debate, haveria que se distinguir, ainda, entre o nude (nu) e o naked (despido, “pelado”)[7], ou, em outros termos, entre o nu artístico e o nu pornográfico. Creio que seja possível clarificar um pouco essas categorias utilizando o conceito de aura, de Walter Benjamin.
O pensador alemão, referindo-se a objetos artísticos, define aura como “uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”[8]. A aura de uma obra de arte é algo que nela aponta para além de si mesma; é a projeção de qualidades que existem fora dela, mas que se misturam à sua existência concreta aos olhos do espectador. Uma obra carrega atrás de si uma história material (relacionada à sua estrutura física) e social, que é a história de sua recepção e também de suas relações de propriedade; tal história constitui-se como uma tradição que se incorpora à obra, concedendo-lhe um valor de autenticidade, isto é, tornando-a um objeto singular, de caráter excepcional, cujas qualidades são intransferíveis[9].
A aura seria uma reminiscência das origens religiosas da arte, quando esta experimentava uma “existência parasitária” em relação ao ritual. Partindo de tais pressupostos, Benjamin distingue dois tipos de valor que orientam a recepção de uma obra: o valor de culto e o valor de exposição. O primeiro refere-se a uma reverência religiosa diante do objeto artístico, impondo uma contemplação respeitosa; o segundo relaciona-se ao alcance social da obra, à sua acessibilidade e à amplitude de suas possibilidades de recepção. A história da arte poderia ser lida como um confronto entre ambos, sendo que, quanto mais recuamos em direção às raízes da arte, maior a predominância do valor de culto, ao passo que apenas na modernidade o valor de exposição começa a se emancipar, por conta do desenvolvimento de meios técnicos como a fotografia e o cinema[10].
No entanto, se a princípio Benjamin utiliza o conceito de aura para referir-se especificamente à obra de arte como suporte material da forma estética, ele também abre a possibilidade de se falar de uma auratização de assuntos. É o que verificamos em “Sobre alguns temas em Baudelaire”, quando, ao comentar alguns versos de Goethe, o ensaísta menciona uma “descrição clássica do amor, saturado com a experiência da aura”[11]. Isso nos permite postular que, não apenas estátuas e pinturas podem ser depositários de aura, como também a representação da figura feminina. O que se verificaria, na arte europeia desde o Renascimento, é uma imagem auratizada da mulher, favorecida pela doutrina do distanciamento. A mulher representada na tradição artística ocidental, mesmo quando inserida num motivo cotidiano, é sempre um ente sublime, subtraído da realidade ordinária e da experiência contemporânea; uma figura em torno da qual se criou um culto profano à beleza (alto valor de culto).
O que determinou a emancipação do nu pornográfico em relação ao nu artístico das primeiras fotografias eróticas foi o abandono da tentativa de reproduzir, no novo suporte, a aura das obras de arte. Enquanto os artistas plásticos do período buscavam preservar o valor de culto dos nus representados, a despeito do realce que o valor de exposição da figura feminina ia tomando em suas obras, os fotógrafos de pornografia apresentavam a nudez da mulher de maneira ostensiva e com ênfase em seus aspectos sexuais. Pode-se dizer que o erótico e o pornográfico se diferem pela manutenção da aura, ou dito de outra maneira: o que distingue a pornografia do erotismo é a representação de uma sexualidade não sublimada pela experiência da aura. No registro pornográfico, a sexualidade se faz presente como espetacularidade pura, reduzida integralmente a seu valor de exposição e sem qualquer traço de valor de culto.
Porém, como Benjamin já observa, se, por um lado, o desenvolvimento do cinema, vinculado às necessidades econômicas da indústria cinematográfica, extinguia a aura do suporte material do filme, por outro, criava um “culto do estrelato” que reforçava a “magia da personalidade”[12], auratizando rostos e corpos projetados sobre a tela, que passavam a compor um panteão de entidades fantasmagóricas que hoje chamamos de celebridades.
Hugh Hefner, o criador da Playboy, parece ter sido o primeiro a perceber as oportunidades que tal situação descortinava para a indústria do entretenimento adulto. O primeiro número de sua famosa revista masculina, em 1953, trazia fotos de uma então jovem estrela ascendente do cinema, ninguém menos do que Marilyn Monroe, feitas para um calendário quatro anos antes, quando a atriz ainda era desconhecida. A edição vendeu mais de 50 mil cópias, dando à revista um bom posicionamento no mercado editorial da época. Em pouco tempo, a Playboy se consolidaria como um exemplo de publicação erótica aceitável e considerada de bom gosto, unindo fotos de mulheres nuas a matérias de relevância jornalística e produtos culturais de prestígio. Porém, o grande pulo do gato de Hefner foi unir o nu fotográfico, destituído de aura e vinculado à pornografia, ao corpo auratizado da mulher celebrizada pela cultura de massas.
Nas fotos pornográficas, como elas se estabeleceram desde o século XIX, tínhamos o corpo despersonalizado da mulher anônima, geralmente uma prostituta, catalizador impessoal das fantasias do espectador. A nudez da mulher famosa, por outro lado, possuiria qualquer coisa de excepcional, que extrapolaria o horizonte de expectativa do homem comum. Assim, reintroduzia-se a aura no universo do nu fotográfico, reconvertendo-o ao âmbito do nu artístico, a despeito do fato de que, num passado recente, as mesmas fotos seriam consideradas francamente pornográficas. Para sustentar a aura em torno do corpo da celebridade, ou daquelas que aspiram a tal condição, via de regra se constrói um cenário kitsch — paradisíaco ou pretensamente sofisticado —, que faz as vezes dos adereços que, nas origens do nu fotográfico, remetiam às convenções prestigiosas da arte acadêmica. Isso tudo, incluindo um recato em geral maior, é o que diferiria a Playboy e congêneres das “revistas de mulher pelada”, pertencentes ao submundo editorial da pornografia. Com a Playboy, consolidou-se uma nova gramática da nudez no imaginário visual contemporâneo, que não tardaria a desembarcar na publicidade.
[CONTINUA EM MAIS 3 PARTES]
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NOTAS
[1] LEITE-JR., Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia “bizarra” como entretenimento. São Paulo: Annablume, 2006, p. 63
[2] HUNT, Lynn. “Obscenidade e as origens da Modernidade”. In: HUNT (org.). A invenção da pornografia. Tradução Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999, pp. 9-10.
[3] Idem, ibidem, pp. 12-4.
[4] LEITE-JR., op. cit., pp. 67-70.
[5] PRIORE, Mary del. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta do Brasil, 2011, pp. 131-2.
[6] PULTZ, John; MONDENARD, Anne de. Le corps photographé. Paris: Flammarion, 2009, pp. 41-3.
[7] CLARK apud LUCIE-SMITH, Edward. Sexuality in western art. London: Thames and Hudson Ltd, 1991, p. 133.
[8] BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Obras escolhidas — Magia e técnica, arte e política. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 170.
[9] Idem, ibidem, pp. 167-8.
[10] Idem, ibidem, pp. 172-3.
[11] Idem. Obras escolhidas III — Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 141.
[12] Idem, 1994, p. 180.
Emmanuel Santiago
Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).
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