Graeme Wood tece todo um panorama da escatologia que subjaz aos motivos do Estado Islâmico.
Há muitos aspectos notáveis da obra do canadense-americano Graeme Wood, professor de ciência política na Universidade de Yale, em especial a coragem que perpassa todo o projeto, levando o autor a rincões e antros de terroristas; e, diríamos, a resiliência do jornalista durante suas entrevistas com figuras execráveis do meio jihadista, cujas prédicas e tentativas de justificação de práticas como a amputação de criminosos ou a escravidão sexual eram realizadas em confeitarias e restaurantes de países democráticos e economicamente fortes, os quais, conquanto virulentamente criticados, constituíam-se a fonte mesma dos benefícios sociais que sustentavam esses filoterroristas.
A prosa fluida, jornalística, do livro jamais culmina em superficialidade; antes, Wood pontua e contextualiza todas suas reflexões e entrevistas com citações eruditas da teologia, história, filosofia e pensamento islâmicos. São dezenas de citações dos Hadiths (ou Hádices, os comentários do profeta Mohammed reunidos por seus companheiros), de versos corânicos, de artigos jihadistas contemporâneos e das obras canônicas de filósofos muçulmanos medievais.
O livro contém seis capítulos, alguns dos quais não raro resvalam na monotonia quando se detêm nas platitudes proselitistas de jihadistas como Musa Cerantonio, ao passo que outros apresentam uma riqueza de informações e desvelam todo o contexto religioso-cultural que por vezes permanece opaco ou desconhecido ao leitor ocidental, principalmente o brasileiro. Em especial no último capítulo, “Apocalipse”, Graeme Wood tece todo um panorama da escatologia (“a doutrina do fim dos tempos”) que subjaz aos motivos do Daesh [Estado Islâmico], o qual, pautando-se nessas crenças, alça suas escaramuças à categoria de conflitos cósmicos, numa exaltação megalomaníaca de sua causa.
Desse modo, como introdução ao estudo das raízes e motivações daquele que é hoje o grupo terrorista mais brutal e espalhafatoso de todo o Oriente Médio, Wood cumpre todas as exigências, ainda mais porque recorre a todo momento ao vocabulário do árabe clássico (a língua do Corão) e moderno, aludindo a termos centrais ao pensamento islâmico e profundamente relevantes na concepção que o ISIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) e outros grupos terroristas têm de si mesmos.
Entretanto, há certos momentos constrangedores na prosa de Wood, nos quais, talvez desgarrando-se do caminho que desde o início propusera a si mesmo, ensaia algumas efusões romanescas que soam antes como kitsch. Por exemplo: “Tirei uma semente de tomates dos dentes e engoli, pensando na mitologia grega e nas seis sementes de romã que Hades deu a Perséfone: para cada uma que ela comia, um mês no inferno por ano. Cada bocado obrigou-me a mais uma hora de conversa, que, por coincidência, versava frequentemente sobre o inferno” (p. 46).
Evidentemente, numa análise geral, esta e incontáveis outras passagens embaraçosas diluir-se-iam na amplitude do projeto de Wood; contudo, mais do que simples e ocasional mau gosto estilístico, essas situações revelam eventuais estados de confusão ou mesmo falsas analogias aparentemente movidas por uma necessidade de comparação (ou redução) entre temas diferentes.
Os objetos desses cotejos um tanto forçados são em geral o cristianismo (em especial as tradições protestante e católica) e o judaísmo, ou mesmo as políticas ocidentais, embora – e este talvez seja o ponto mais bem arrematado da obra – o autor esteja consciente de que o entendimento real sobre a visão jihadista fundamenta-se primeiramente na religião, e somente depois em movimentações geopolíticas. A título de ilustração dessas percepções confusas, citemos o momento quando Wood, tratando sobre a ambiguidade do Corão em relação ao exercício da racionalidade, busca, em nota de rodapé, pontos de contato com a tradição cristã:
Sentimentos semelhantes sobre o perigo da inteligência podem ser encontrados em obras de outros grandes simplificadores da religião. Considere o alerta de João Calvino de que a mente é “uma perpétua forja de ídolos” (“Não é lícito conferir uma forma visível a Deus”, em A Instituição da religião cristã [1536]; “O coração é falso como ninguém” (Jeremias 17:9, um versículo muito apreciado pelos evangélicos); a polêmica do cardeal Newman sobre o “julgamento privado” (“Faith and Private Judgment”, em Discourses Addressed to Mixed Congregations [1849]); e o programa de doze passos dos Alcóolicos Anônimos advertindo contra os “pensamentos errados” (p. 360).
Não se trata somente de analogias forçadas, mas de um exemplo talvez inconsciente daquilo que o próprio Wood critica em grande parte daqueles que se debruçam sobre o fenômeno do terrorismo islamista, a saber, o menosprezo para com o elemento religioso, que mais do que matriz de justificações jihadistas, é também o polo de atração para aqueles que, imersos por vezes num secularismo sufocante, anseiam – evidentemente de modo equivocado – por alguma ancoragem moral e espiritual. Dizemos isto porque, no trecho acima, há precisamente a confusão de categorias teológicas distintas, ou, se quisermos, a imposição do pensamento ocidental à fé de origem wahabbista do Estado Islâmico. Em primeiro lugar, a citação é quase espúria, pois João Calvino refere-se não à mente, mas ao coração do homem como oficina eterna de ídolos, e o mesmo erro se repete na referência seguinte ao livro de Jeremias.[1]
A consulta mais superficial a um manual de antropologia do Antigo Testamento demonstra que, na concepção bíblica, o coração, diferentemente de uma perspectiva iluminista que contrapõe os afetos e a razão, é sobretudo o centro da personalidade humana: “o coração [leb] está em oposição à aparência externa. É nele que se dão as decisões vitais, embora esteja oculto aos homens”; “o coração é a sede de determinadas disposições de ânimo como a alegria e a aflição”; “a disposição do coração domina todas as manifestações da vida”; e por fim: “A dificuldade linguística que resulta disto para o nosso pensamento diferenciador segue da impossibilidade do israelita de distinguir objetivamente a teoria da prática. Assim o coração, ao mesmo tempo, é órgão da intelecção e da volição”[2].
Não se trata de uma irrelevante logomaquia no âmbito teológico. Pelo contrário, essa indistinção entre conceitos resulta precisamente na confusão dos pensadores ocidentais quando tratam do fenômeno religioso-político do Islã militante. E é surpreendente que, tendo escrito um capítulo que demonstra uma compreensão profunda sobre a escatologia e apocalíptica islâmicas, inclusive relacionando-as aos eventos propagados pelo próprio Estado Islâmico como cumprimento de profecias centenárias, Wood ainda assim tropece em equívocos que censura em outros analistas.
No entanto, conforme a obra demonstra com vigor, é preciso que toda investigação e compreensão sobre os motivos e operação desse grupo terrorista esteja livre, logo de início, das concepções em voga que necessariamente obscurecem e impedem a discussão pública. De maneira resumida, é certo que, de um lado, somos acossados pela generalização de indivíduos tão ignorantes quanto pressurosos que atribuem a culpa ao mundo muçulmano[3] como um todo, negando ou desprezando as imensas diferenças entre cada uma de suas seitas; e, por outro, somos afligidos pela redução total do problema, por parte de progressistas e de liberais, somente ao âmbito da geopolítica. Wood, nesse sentido, embora crítico de ambas as posturas, aparentemente não é capaz de um pensamento que se distancie da perspectiva iluminista da religião como superstição institucionalizada ou fator essencialmente belicoso.
Em primeiro lugar, é evidente que a intervenção americana no Iraque causou o vácuo de poder e autoridade do qual o Estado Islâmico se aproveitou tão logo percebeu a oportunidade. E este não é o único evento significativo da política internacional que contribuiu para a formação de grupos terroristas no Oriente Médio, pois como a jornalista Melanie Phillips comenta em seu livro Londonistan:
Em contraposição a esse pano de fundo de contínua radicalização, uma série de desenvolvimentos tumultuosos ao longo das décadas de 1980 e 1990 forneceu cada vez mais aos muçulmanos na Grã-Bretanha um novo senso, imensamente politizado e profundamente hostil, de sua própria identidade religiosa. O primeiro foi a guerra soviética no Afeganistão, durante a década de 1980, na qual os Estados Unidos e a Grã-Bretanha armaram e treinaram os mujahideen [combatentes da jihad] islâmicos para lutar e eventualmente expulsar os invasores soviéticos. Os americanos e britânicos praticamente não perceberam que, nesse processo, eles estavam ajudando a chocar o ovo da serpente do qual surgiria os assassinos que se voltariam tão ostensivamente contra eles. Pois eles armaram e treinaram as pessoas que haviam então descoberto sua vocação: a guerra santa. “Não foi esta guerra [santa]”, disseram os combatentes a si mesmos, “que travamos no Afeganistão, onde as forças do Islã expulsaram os soviéticos ímpios?” A crença de que os guerreiros islâmicos não somente venceram essa guerra, mas, consequentemente, fizeram com que toda uma superpotência implodisse tornou-se um mito fundante do islamismo moderno e consolidou o conceito de jihad armada enquanto um pilar contemporâneo da fé.
E como resultado dessa contínua radicalização em curso no mundo muçulmano, o Ocidente cristão – que armou e treinou os mujahideen – tornou-se ele próprio o próximo alvo para a jihad. Como alguns afegãos seculares da liderança tribal exilada do país alertaram os americanos durante a década de 1980: “Pelo amor de Deus, vocês estão financiando seus próprios assassinos!”.
Phillips também cita a Revolução Iraniana, em 1979, e a implementação das leis islâmicas pelo Aiatolá Khoimeni como a cristalização da ideologia islamista que influenciou não propriamente o Estado Islâmico, mas os radicais que buscaram, primeiramente naquela Revolução e posteriormente neste grupo terrorista, a purificação de sua identidade muçulmana dos vícios e erros dos países ocidentais onde nasceram. Aliás, o Daesh considera os xiitas (como os governantes iranianos) como apóstatas, objetos de takfir [excomunhão] e portanto dignos de morte. A Dabiq, a revista “oficial” do Estado Islâmico, considera o grupo também terrorista Hezbollah (igualmente xiita) como pagãos, indivíduos ainda perdidos na Jahiliyyah, o “Tempo da Ignorância”. Segundo Graeme Wood:
A deidade pré-islâmica Lat – um dos ídolos de Meca despedaçados pelo Profeta em pessoa – uma vez mais encontrará devotos. (A Dabiq chama o partido xiita libanês Hezbollah [Partido de Deus] de “Hizb al-Lat” [Partido de Lat] (p. 316).
Além do Hezbollah, o Daesh também condena até mesmo grupos sunitas como a Fraternidade Islâmica, o Hamas, a Al-Qaeda e os líderes do Talibã. Porém, como adverte-nos Graeme Wood, não se trata de um simples confronto de políticas, ou de uma busca desenfreada do poder por si próprio; antes, como exploraremos num próximo ensaio, todas essas rivalidades provêm e são sustentadas por escolas de jurisprudências (com suas respectivas hermenêuticas) distintas entre si, cada qual com sua concepção da própria lei islâmica. Nas palavras do autor:
Entretanto, quem acha que a religião está sendo explorada com objetivos políticos entendeu ao contrário. O Boko Haram [filiado do Estado Islâmico na África ocidental] encontrou desilusão e desgoverno, e então acelerou esses dois problemas para promover um objetivo religioso. (p. 350).
Obviamente a análise de Wood não se propõe analisar a totalidade das causas do generalizado “estreitamento da mente muçulmana”, visível não somente no Estado Islâmico. Esse estiolamento cultural é ainda mais nítido quando se sabe que o mundo muçulmano testemunhou um vigor inaudito do século IX ao XII, com poetas, filósofos e teólogos de primeira grandeza. Embora o Daesh se oponha à escola teológica dos asharitas, Robert R. Reilly demonstra – e nisto é mais feliz do que Wood – a origem dessa hermenêutica e jurisprudência que se pauta numa leitura literalista e grosseira do Corão. Nas palavras de Reilly:
É a teologia asharita, tal como desenvolvida do século IX ao XII, que torna isso [a ação divina e a causalidade] um problema no atual Islã, visto que sua negação da causalidade se tornou, generalizadamente falando, a ortodoxia sunita e uma parte da cultura árabe.
Despiciendo dizer que “o Estado Islâmico enxerga… podridão na Arábia saudita e nas instituições muçulmanas de ensino superior como a universidade de Al-Azhar, no Cairo” (p. 311), e também que os homens da casa real de Sa’ud não são candidatos ao posto de califa, já que não pertencem à linhagem dos coraixitas. Porém, retomando o ponto da teologia asharita, o “dano” intelectual que se reflete no pensamento subjacente ao radicalismo islâmico é uma espécie de crença na descontinuidade da criação, isto é, Deus destrói e reconstrói o mundo a cada instante, de modo que sua vontade ou, para usar um termo escolástico, sua potestas absolutas, solapa a própria estrutura do real. Nos dizeres de Majid Fakhry, citado por Massimo Campanini:
[o interesse dos asharitas] pela metafísica contingente dos átomos e dos acidentes devia-se simplesmente ao desejo de reivindicar a potência absoluta de Deus e de atribuir à sua intervenção direta não somente o devir das coisas, mas também sua permanência no ser de um instante para outro”.
Mais relacionado ao nosso ponto: essa potência desassocia-se dos demais atributos de Deus, de maneira que sua própria volição cria e recria o bem e o mal (visão contrária à escola islâmica dos mutazilitas e à tradição cristã). Diz-nos Campanini:
Agindo desse modo, Deus permanece de qualquer modo “justo”, uma vez que a justiça de Deus não se define nem se mede em relação à justiça humana. Justiça e injustiça não têm sentido se associadas a Deus […] Portanto, na interpretação “ortodoxa” de Al-Ghazali [ashirita], é Deus quem decide aquilo que é bom e aquilo que é ruim. Não existem o bem e o mal em si, mas são bem e mal aquilo que Deus declarou como tais […] Por isso, a ética muçulmana dos teólogos “ortodoxos”, como os ash’aritas, é fundamentalmente “sugestiva” e fundada no princípio voluntarista da onipotência de Deus.
Portanto, de maneira sucinta, é precisamente essa ética “sugestiva” que promove a flexibilidade das interpretações que o Daesh dá aos textos corânicos e aos Hadiths, justificando práticas condenadas até mesmo pelos ‘urf (costumes) e pela ijma‘ (o consenso dos doutos). O que, todavia, tecnicamente não impede que os jihadistas desse grupo sejam considerados muçulmanos, como trataremos num outro momento.
[CONTINUA EM MAIS UMA PARTE]
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NOTAS
[1] Poderíamos ainda destacar a referência – inconsciente irônica – do Cardeal Newman como uma espécie de obscurantista avesso ao raciocínio e à erudição.
[2] Hans Walter Wolff, Antropologia do Antigo Testamento. Tradução Antônio Steffen. São Paulo: Loyola, 1983. p. 65; 67; 67; 76.
[3] Melanie Phillips chama a atenção para a distinção entre muçulmano e islamita, a qual, a despeito de uma eventual vagueza, é imprescindível para a discussão do tema: “Islamismo é o termo dado à forma extrema do Islã politizado que tornou-se dominante em grande parte do mundo muçulmano e é a fonte ideológica do terrorismo islâmico global. Ele provém de organizações radicais fundadas no início do século passado, que acreditam que o Islã se encontra num estado de guerra tanto com o Ocidente quanto com todos muçulmanos ao redor do mundo que não são suficientemente piedosos” (Londonistan, p. 37).
Fabrício de Moraes
Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).
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