Swafford jamais deixa que o frescor das ideias musicais de seu biografado caiam no maneirismo da análise crua da autópsia.
Ao lado de Uma história cultural da Rússia de Orlando Figes, é o Beethoven de Jan Swafford a maior aquisição de minha estante entre os lançamentos de 2017. Ambos livros únicos para qualquer um interessado em história da cultura, realizam movimentos opostos: o primeiro, do geral, nos permite lançarmo-nos a ensaios particulares; o segundo, do particular – o mais intimamente particular -, suscita inquietações estimulantes para o quadro geral de toda uma época.
Mas enquanto Uma história cultural… é a tradução do tour de force enciclopédico Natasha’s Dance, que remonta o ano de 2002, Beethoven é atualíssimo: sua publicação original em inglês é do segundo semestre de 2014, e o impacto de sua recepção no ambiente de língua inglesa segue em aberto. Neste sentido, um ponto inequívoco da editora.
Organizado em mais de mil páginas, o livro de Swafford reúne duas obsessões musicológicas em uma publicação. Ao estudo documental e biográfico, Swafford acrescenta uma série de explorações sobre muitas entre as mais importantes obras do gênio de Bonn. Colocando-se, desse modo, ao lado de publicações importantes como as de Maynard Solomon (2001) e Lewis Lockwood (2005), ele talvez as ultrapasse pela amplitude e atualização de toda a pesquisa.
Com uma extraordinária capacidade analítica, o autor estabelece relações sofisticadas entre obra e vida que talvez só possam ser comparáveis aquelas de Irving Kolodin e seu quase esquecido ensaio The Interior Beethoven (1975). Pois, de fato, muito do que aparece como novo e estimulante na leitura de “The Interior Beethoven” deve-se, muitas vezes, àquilo que encontramos – no caso, com muito mais rigor metodológico – em Swafford: seu Beethoven é cheio de insights formidáveis, além de não pequena ousadia para a leitura dos textos musicais e epistolares de Beethoven.
Swafford jamais deixa que o frescor das ideias musicais de seu biografado caiam no maneirismo da análise crua da autópsia, mas tampouco, à diferença de Kolodin, permite que suas inquietações solapem a análise de questões factuais ou excedem os limite dedutivos de suas inferências.
Sem ser proibitivamente técnico, o livro é muito fluente – e, acredito, acessível mesmo para não estudiosos de música. Questiúnculas de revisão técnico-musical sobram nesta tradução para o português, mas no todo Beethoven: angústia e triunfo é um documento magistral pela amplitude e profundidade que, ao lado do Beethoven de Lockwood, servirá para o leitor brasileiro conhecer a vida e obra de um dos mais extraordinários artistas de todos os tempos.
Leandro Oliveira
Doutorando em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie. Anfitrião do projeto “Falando de Música” da Osesp.
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