A democracia está morrendo? Uma análise fria do cenário atual indica que não.
“As instituições buscarão preservar os problemas para os quais oferecem soluções.”
Clay Shirky
O despertar das paixões eleitorais nos últimos meses ocasionou o curioso surgimento do emprego – no mínimo exagerado, se não histérico – de expressões desesperadas sobre os rumos políticos do Brasil. Opiniões já manifestadas em outras realidades, por outras pessoas, ecoaram também pelos trópicos, onde muito se falou em obscuridades como “tempos sombrios”, “onda conservadora” e “ascensão do populismo”, enquanto nos círculos mais eruditos se discutia “como as democracias morrem”. O que uma análise despida de emoção pode revelar, contudo, é que a Democracia, ao contrário do que o senso institucional sugere, vem se fortalecendo porque capaz de adaptação. Se isso é bom ou ruim, o tempo é que dirá.
A prudência recomenda distância de grandes expectativas e falsas esperanças com a promessa democrática. O governo da vontade da maioria não é incondicionalmente celebrado por todos que pensam honestamente sobre politica desde, pelo menos, os gloriosos tempos de Atenas. De qualquer forma, democracia fora de risco, quem realmente precisa despertar para uma necessidade darwiniana de sobrevivência, adaptando-se para evitar a extinção, são as instituições tal como concebidas até o advento das novas formas de comunicação que emergem com a popularização da Internet.
Se as relações sociais são cada vez mais pautadas pelas ferramentas tecnológicas e pelas múltiplas e caóticas interações entre usuários nos ambientes digitais, é natural que muito do que caracteriza essas relações no espaço virtual passe a valer também no mundo off-line. Descentralização, autorregulação, transnacionalismo, agilidade, colaboração e desintermediação impactam, irresistivelmente, o ambiente desconectado. As organizações sociais, sem exceção, serão todas transformadas por esta realidade. Imprensa e classe política deveriam prestar atenção às estruturas de seus castelos, pois as paredes estão ruindo.
Obsolescência
Os resultados das eleições mais recentes em todo globo, e em especial da última eleição brasileira, revelam que as novas relações moldadas pela democratização da comunicação impulsionada pela Internet ameaçam de extinção duas das mais tradicionais instituições sociais da modernidade: a “Mídia Tradicional”, assim entendida como os grandes veículos de imprensa, e o sistema político-partidário. Tanto a “Velha Imprensa” quanto os partidos políticos sofrem da obsolescência que decorre das inúmeras possibilidades de colaboração e de compartilhamento de informações que tornam os intermediários do processo de informar (a “mídia”) e de governar (os partidos) – totalmente descartáveis.
Os grandes veículos de comunicação e os partidos políticos talvez ainda não tenham percebido, mas estão sendo “uberizados”. O emprego deste horrível neologismo serve ao propósito de facilitar a compreensão de quem adora razões teóricas (e interesses escusos) para justificar os resultados reais e inesperados que são incapazes de enxergar. Não há como frear ou reverter esse processo.
Tornou-se popular no meio corporativo o argumento em favor de ideias “disruptivas” que destaca o fato de que a maior empresa de hospedagem do mundo não tem hotéis, que a maior empresa de transporte de pessoas não tem um único táxi, e que a maior empresa do varejo não possui lojas físicas. Adaptando essa mesma lógica aos resultados das urnas e à completa incapacidade dos jornalistas de compreender e comunicar o mundo, podemos constatar que os maiores influenciadores sociais já não precisam dos tradicionais meios de comunicação e o maior fenômeno político eleitoral brasileiro nos últimos tempos não apenas não precisava de estrutura partidária como tampouco necessitava de fundo eleitoral (verdade seja dita: Jair Bolsonaro se filiou ao PSL apenas porque precisava de uma legenda de aluguel para jogar conforme as regras).
No caso da velha imprensa, é nítido o desconforto dos grandes veículos, pressionados tanto pelos novos meios de consumo de informação e entretenimento quanto pela concorrência brutal e caótica de novos meios de comunicação, dos blogs aos aplicativos de comunicação instantânea, como Twitter, Telegram, Whatsapp e Facebook. Tamanha pressão pode inclusive esclarecer uma das situações mais confusas dessas eleições. A reportagem “bomba” da Folha de São Paulo sobre o suposto impulsionamento de mensagens “anti-PT” por empresários simpáticos ao presidenciável do PSL. A matéria, até o momento carente de sustentação válida, revela menos uma articulação ilícita para influenciar a eleição que o desesperado medo da mídia tradicional com o poder da comunicação descentralizada, livre, grátis e instantânea representada pelos serviços de mensagem. A matéria tinha dupla função: tentar atingir o candidato que amedrontava a velha ordem e no embalo mobilizar os caga-regras de sempre a tentar impor limites à liberdade de expressão na Internet, essa grande ameaça aos impérios do jornalismo.
A iniciativa da Folha não surtiu qualquer efeito porque todo mundo que usa Whastapp entende mais de como funciona o compartilhamento de notícias, falsas ou não, que a pretensão dos jornalistas do periódico imaginam. Não dava pra cair nessa. O fato é que a informação transita de um lado a outro, sem controle, e produzida por todos nós. O meio se tornou dispensável. A velha mídia está obsoleta. Eis o motivo do desespero.
Colmeia e enxames
O papel de informar já não é mais exclusivamente exercido por profissionais e veículos da mídia (expressão que deriva do latim “media”, ou “meio”). A comunicação atual dispensa ou reduziu a importância do intermediário. Hoje todos informam, instantaneamente, tudo sobre todos. Esse fenômeno é retratado por Byung-Chul Han em seu mais recente livro, No Enxame: Perspectivas do Digital (2017). O filósofo coreano radicado na Alemanha, conhecido pela crítica ao fim das distâncias que viabilizariam o desejo e a alteridade em nossa “sociedade da transparência”, identifica na chamada era da informação a perda de relevância dos intermediários nas relações sociais. Em No Enxame, Han disseca o fenômeno da “Desmediatização”. Partindo da análise dos fenômenos das Shitstorms (tempestades de merda), que despertam furor e comoção nas redes, chegando aos assassinatos de reputações e ao fim da privacidade, o autor coreano sugere que a democratização dos meios de informação tornou os veículos da imprensa cada vez menos relevantes.
Na atual conjuntura, a comunicação digital se caracteriza pelo fato de ser “produzida, transmitida e recebida sem intermediários”, razão pela qual hoje “não somos apenas receptores e consumidores da informação”, mas responsáveis também pela produção e comunicação do que acontece em tempo real. Nesse cenário é que opiniões e relatos de algumas dezenas de “ilustres desconhecidos” obtém alcance inúmeras vezes superior àqueles emitidos pelas grandes corporações da imprensa, em jornal, rádio e televisão. É inegável que esses novos formadores de opinião, alheios ao controle e edição da velha mídia, exerceram impacto decisivo na estruturação da onda que dizimou a velha estrutura política brasileira e que deixou a imprensa atordoada enquanto tentava encontrar algum tipo de explicação que esclarecesse o incompreensível.
A manipulação da informação para influenciar o processo democrático, até então um ativo sob controle de poucos grupos de comunicação do eixo Rio-São Paulo, foi democratizada e passou a ser exercida também por todo tipo de cidadão, do grupo de caminhoneiros revoltosos às “tias do Whatsapp”, passando por profissionais entediados e cidadãos ressentidos. A democracia está morrendo? Uma análise fria do cenário atual indica que não. Nada mais democrático do que todos participando não apenas pela decisão na urna, mas na tentativa de influenciar o voto do próximo!
Byung-Chul Han, porém, não vê o que comemorar. A democratização da produção e do compartilhamento de conteúdo, ativa e instantaneamente, gerou uma perigosa proximidade dos fatos que acarretaria, além de reações automatizadas que enfraqueceriam o debate político, o fim da temperança que apenas uma distância saudável das paixões possibilitaria. Daí porque, após breve alusão às “massas” identificada por Gustav Lebon como sustentação do poder no século XX, o pensador coreano alude ao novo sustentáculo do poder social no século XXI: os “enxames digitais”.
A Internet possuiu uma lógica de estruturação voltada à otimização da experiência de navegação que, infelizmente, concentra pessoas com credos e desejos semelhantes em ambientes quase impenetráveis. Nesses ambientes, todas as suas opiniões pré-concebidas acabam sendo validadas por pessoas que pensam de forma muito semelhante. Decorre desse problema o fato de que, até hoje, muita gente ignora a existência de farta documentação probatória que levou à condenação de um ex-presidente para pedir a libertação de Lula. O mesmo problema levou muita gente decente a acusar o processo que levou ao Impeachment de Dilma Roussef de golpe contra a democracia. E são em ambientes de validação recíproca que se vê comunismo em tudo o que não seja defesa da ordem e do progresso, seja lá o que ordem e progresso signifiquem.
A sociologia do espaço cibernético se refere a esse fenômeno como “câmaras de eco”, salas virtuais em que tudo o que pode se opor ao conforto dos membros está sujeito a mecanismos de filtragem, artificiais ou humanos. As informações que circulam nestas câmaras são freadas por obstáculos e há pouca receptividade a qualquer tipo de dado, estatística ou opinião que afronte a crença preponderante do ambiente. Byung-Chul Han prefere empregar a expressão “Colmeia”, sugerido que tão logo as verdades sagradas destes ambientes sejam ameaçadas, seus membros se lançam fervorosamente ao ataque contra o agente ofensivo, numa ação puramente emocional, nada refletida e quase sempre exageradamente violenta. Um ataque coletivo com característica de enxame.
Embora reconheça o poder avassalador desses ataques para destruir reputações e intoxicar relações sociais, Han associa o declínio do verdadeiro poder de engajamento e transformação social pela via da política à ascensão das ações irracionais e desmedidas dos enxames, os quais, em sua análise, não teriam efetiva capacidade de promover mudanças. Um estudo da recente realidade política brasileira poderia fazê-lo mudar de ideia.
Coordenando a desorganização
Discordando da alegada inaptidão dos enxames digitais para promover mudanças concretas, o professor e escritor Clay Shirky, em seu livro Lá Vem Todo Mundo: O Poder de Organizar sem Organizações (2009), oferece uma explicação mais detalhada de como funcionam e qual o impacto que as ferramentas de colaboração disponibilizadas pela inovação tecnológica exercem sobre o modo de se fazer política. Para Shirky, toda mudança na forma de se comunicar importa em mudança na sociedade. As ferramentas de comunicação das quais dispomos “são tão centrais para a vida humana quanto uma colmeia é para a vida das abelhas”. Tal como a colmeia molda e é moldada pelo conjunto de abelhas, as formas de comunicação humana moldam e são moldadas pela sociedade. E as novas comunicações fizeram com que a participação livre e voluntária de um grupo grande, heterogêneo e disperso de pessoas passasse de impossível a simples.
Nas palavras do autor, “estamos vivendo em meio a um extraordinário aumento de nossa capacidade de compartilhar, de cooperar uns com os outros e de empreender ações coletivas, tudo isso fora da estrutura de instituições e organizações tradicionais”. E prossegue: “a maioria das barreiras à ação grupal desmoronou, e sem elas estamos livres para explorar novas maneiras de nos reunir e fazer coisas”.
Até aí, o professor americano está alinhado à análise de Byung-Chul Han. Contudo, enquanto o filósofo coreano lamenta a esterilidade dessa ação aos moldes de enxame, para Clay Shirky as ações coletivas podem realmente gerar alguma transformação efetiva se todo esse potencial de trabalho colaborativo, descentralizado e livre for acionado pelos incentivos certos. Se os grupos colaborativos nas redes forem estimulados com “uma boa razão para fazer alguma coisa, eles a farão mais.”
Até alguns anos atrás, os esforços para consecução de objetivos coletivos eram obstruídos ou dificultados pela complexidade do gerenciamento das atividades do grupo de indivíduos. Coordenação, organização e comunicação são tarefas cuja dificuldade aumenta na proporção do aumento do grupo envolvido. Contudo, as novas ferramentas de interação e colaboração possibilitam a coordenação e organização de esforços sem a necessidade da complexa estruturação das corporações, organizações sociais e governos. Shirky registra que “agora temos ferramentas de comunicação – e, cada vez mais, padrões sociais que fazem uso delas – que correspondem melhor a nossos desejos e talentos inatos para o esforço em grupo (…). Nossas ferramentas de comunicação não se tornaram apenas mais baratas; tornaram-se também melhores.”
Longe de negar os problemas relacionados à popularização do poder de comunicar (compartilhar, colaborar e transmitir), Shirky adverte que o processo é irreversível e que levará um tempo até que as coisas voltem a se normalizar. Várias instituições tendem à irrelevância e outras devem emergir pelas ferramentas que são disponibilizadas. A vantagem é de quem entender o funcionamento do mecanismo de comunicação social e conseguir engajá-lo pelos incentivos corretos.
Quem soube fazer a leitura dessa nova realidade e surfar a onda da nova democracia colaborativa foi Jair Bolsonaro e seguidores.
Colaboração democrática
Parte considerável do sucesso eleitoral de Bolsonaro e seus apoiadores reside na capacidade de influenciar esse poder de mobilização e colaboração da Internet. O presidente eleito e seus assessores souberam agir como apicultores, cientes do que faziam no tratamento das colmeias digitais. Fomentando o espírito de proteção coletiva e a necessidade de engajamento, puderam coordenar a ação dos enxames. Esta influência somente ocorreu porque tiveram a capacidade de se identificar com necessidades reais de grupos e mobilizar voluntaria e espontaneamente os membros destes ambientes com propostas bem definidas e alinhadas a preocupações urgentes.
Enquanto a parte derrotada das câmaras de eco falava em subjetividades como “representatividade”, “diversidade”, “pluralismo” e “resistência antifascista”, as colmeias do campo de influência do lado vencedor tratavam de questões pragmáticas: redução de maioridade penal e revogação do estatuto do desarmamento para recuperar a segurança pública; escola sem partido e sem educação sexual para que o ensino se volte à profissionalização; valorização e preservação da família. Quem não se sente envolvido na defesa da segurança, da educação e da família?
Estas causas que ecoavam nas colmeias do campo de influência do candidato vencedor tinham a grande facilidade de gerar ações ao estilo enxame que não perdiam energia com a ferroada. Ao contrário, os enxames colaborativos do lado vencedor conseguiam preservar vigor, se renovavam com críticas das velhas instituições e não cessavam de ampliar o âmbito de influências de suas colmeias. Enquanto uma ideia abstrata como “Ele não” não durava mais que uma semana, a mobilização em torno de segurança, da guerra às drogas, da família e de Deus se renovava a cada notícia sobre criminalidade, à cada medida que retirava dos pais a autonomia da criação das crianças, a cada ato de desrespeito à crença religiosa, a cada registro de intolerância política pelo lado que se autoproclamava virtuoso.
Bolsonaro foi sendo identificado pelas comunidades digitais como a única opção dentro do jogo político que representava o que estas colmeias e enxames aspiravam na preservação de seus próprios interesses. A partir daí, não havia nada que a velha política e a imprensa pudessem fazer contra a “onda”. A nova atuação democrática colaborativa atropelou a degenerada ordem democrática representativa. Aos antigos representantes – especialistas, intelectuais, veículos da mídia tradicional e líderes partidários – resta aceitar a necessidade de se adaptar. É a lei da natureza.
Norival Silva Júnior
Advogado especialista em Direito Digital.
[email protected]