O Mais Médicos é mal planejado, não garante aperfeiçoamento do médico, não dá infraestrutura mínima e quer fazer da água vinho.
Artigo dedicado à memória do Dr. Roberto Kikawa
1. A vida vale pouco no Brasil
O Brasil é o país campeão de assassinatos no mundo, e a taxa de resolução de homicídios é de cerca de 6%. No mesmo ano (2017), essa taxa foi de 61,6% nos Estados Unidos, um país tão grande quanto e com problemas urbanos e sociais parecidos com os nossos.
A impunidade e a violência nas quais o país convulsiona não matam apenas gente fragilizada e pobre. Quem vive na periferia no Brasil – e aí tá incluído todo mundo que não morar no Alphaville ou às margens da Barra da Tijuca – está sujeito à tiro, facada e sequestro.
Não existe lugar seguro no ambiente urbano do Brasil. Fora dos muros dos condomínios e das casas – isso quando os espaços privados não são eles próprios invadidos –, nós estamos em situação permanente de guerra. Por os pés na rua neste pardieiro que virou o Brasil é assumir um risco de vida, num país em que se mata mais do que na Síria, que está enfrentando um conflito sanguinário e voraz.
A prova cabal de que ninguém está a salvo aqui foi o recente assassínio do médico gastroenterologista Roberto Kikawa. Criador das Carretas da Saúde, sendo responsável por 53% dos exames de imagem realizados no SUS, dando oxigênio a esse sistema de saúde que segue em ventilação mecânica, um empreendedor da saúde, que usou sua Inteligência administrativa não para ficar rico nesse país de tanta miséria, mas para diminuir o sofrimento da população através de assistência médica, foi morto por dois bandidos de uma comunidade coberta pelo próprio programa que ele criou.
A despeito de tudo que ele fizera, sua vida valia o carro que ele dirigia e não conseguiu entregar. É isso o quanto vale a vida aqui: ela vale os 50 reais da sua carteira, o seu celular, o seu tênis. O ser humano é descartável no Brasil.
Não abordarei as deficiências da segurança pública neste texto. Não é meu foco. Mas algo tem que ser ressaltado: essa é uma das causas da saúde brasileira estar na UTI. No Brasil, a vida vale tão pouco, mas tão pouco, que é algo cultural não se preocupar com ela – tanto que uma das primeiras coisas que vão para o espaço aqui quando falta dinheiro é o plano de saúde; e a escola particular, dada a importância que o brasileiro igualmente dá ao ensino e a qualificação.
Com os nossos governantes não poderia ser diferente. Eles estão tão despreocupados com a gente que habita os 8,5 milhões de km² do território, mas tão despreocupados, que quem não morrer assassinado, que morra de tuberculose ou de apendicite na fila de um hospital público qualquer.
O desprezo à vida é tão grande, mas tão grande, que eles, em vez de irem a um hospital público – que é direito deles como cidadãos – vão a hospitais de elite no SP e RJ. Isso não é apenas hipocrisia. Isso é a comprovação patente de que eles sabem que o sistema de saúde está às moscas e que eles simplesmente não ligam para isso.
Recentemente, alguém de dentro conheceu como funciona o sistema. O próprio Jair Bolsonaro, ao levar a facada, foi levado para a Santa Casa de Juiz de Fora, que é um hospital filantrópico que atende SUS. Ainda que não seja um hospital estatal, sendo, portanto, melhor do que os hospitais totalmente públicos, ele ainda atende SUS, e o pesadelo lá dentro é o mesmo.
O cirurgião vascular que estancou a hemorragia interna de Bolsonaro – coisa que comumente o cirurgião geral tem que fazer pela ausência de um mais apto, mas que nem sempre se concretiza justamente porque ele não tem essa formação – recebeu R$ 367,06 para um procedimento difícil e fora de seu horário de trabalho. O oportuno comentário do Dr. Raphael Câmara sobre o caso explicita bem um paradoxo desses, e está reproduzido nas notas. Mas, o mais importante: assim como Roberto Kikawa, a vida do próprio Bolsonaro vale R$ 367,06. Diferentemente do primeiro, que morreu pela falta de segurança pública, o presidente eleito teria morrido pelas deficiências e absurdos do SUS, não fosse a destreza e seriedade dos médicos da Santa Casa de Juiz de Fora e, obviamente, a missão humanitária prestada pelas Santas Casas do país.
Como disse o Dr. Daniel Lopes, meu editor nesta Amálgama: “O Brasil é um ambiente hostil à vida. Todos os principais legisladores e autoridades da Nova República deveriam sentar numa corte em Haia e responder por crimes contra a humanidade”.
2. O que sobrou do Céu
Quando eu estava no primeiro ano da faculdade de medicina, na minha primeira aula de saúde coletiva, o professor, pediatra e sanitarista, perguntou à sala o que nós achávamos do SUS. Eu disse que achava que ele tinha que ser privatizado.
Muito além do que a TV mostra e do que eu como leigo imaginava, o SUS é um dos pilares da Nova República. Se, com ele, ainda tem gente morrendo de endocardite por amigdalite não tratada, sem ele, eu não quero nem imaginar. Aliás, eu vou além: uma das únicas coisas que não permitem que o país vire uma Índia, explodindo em superpopulação e doenças infectoparasitárias, é o pobre e maltratado Sistema Único de Saúde.
O SUS é o maior sistema público de saúde do mundo. Ele cobre os 205 milhões de habitantes do Brasil, inclusive quem vem fazer turismo de saúde ao país, sendo o segundo o inglês, que cobre 55 milhões de pessoas. O sistema brasileiro é universal (atende a todos), equal (oferece a cada um o que precisa: captopril para o hipertenso e cirurgia do trauma para acidentado) e integral (todos os níveis de saúde estão disponíveis, desde uma consulta com um clínico até um transplante).
O SUS funciona baseado no modelo universalista, de saúde para todos, diferente da Alemanha, por exemplo, onde há uma seguridade social que o usuário paga para usufruir de saúde, ou o de seguros privados, que é o modelo vigente nos EUA, onde a saúde funciona a base de seguro.
No SUS, a gestão é dividida entre União, estados e municípios. Ela é deficitária, mas coloca o sistema para funcionar. O modelo de atenção divide-se nos três níveis: primário, que é tratar a pessoa antes dela ficar doente (Unidade Básica de Saúde); secundário, que é o tratamento da doença (ambulatório e consulta com especialista); e terciário, que é o tratamento da exacerbação da doença (UTI, centro cirúrgico, internação, dentro do hospital). E o seu financiamento é 100% estatal, não havendo capital privado na jogada, afora dos hospitais filantrópicos que, ainda que recebam dinheiro do SUS, acabam pagando do próprio bolso para dar assistência, como o Hospital da PUC-Campinas, que tem 12 leitos pagos pelo SUS, mas atende 40.
O problema é sempre o dinheiro. O problema não é a gestão (ainda que não seja perfeita, uma vez que o ideal é que apenas municípios cuidassem da gestão, uma vez que é nesse nível que estão as pessoas que conhecem o território); o problema não é a assistência (o modelo é satisfatório); o problema é o subfinanciamento do SUS.
Para se ter uma ideia, o Brasil gasta anualmente 50 bilhões de dólares por ano com saúde. O Canadá gasta mais, 64,3 bilhões, mas é compreensível, por ser um país desenvolvido. A diferença é que o gasto per capita no Canadá, que tem 35 milhões de habitantes, é de 1500 dólares; o do Brasil, é 109. Para igualar-se ao Canadá, o país teria que investir quinze vezes mais do que investe atualmente, ou seja, de 8,3% para 124,5% do próprio PIB. O sistema está falido.
É absolutamente irreal, num país exportador de commodities que é o Brasil, que um sistema desse tipo funcione. Não é nem utópico, é impossível que o financiamento do SUS permaneça dessa forma. Mesmo que os governantes estivessem compromissados com a saúde, não haveria dinheiro na praça para oferecer um serviço de qualidade. Mesmo que a gente pegasse a Argentina como exemplo, onde o investimento é de 362 dólares per capita (3,5 vezes o brasileiro), destinar 1/3 do PIB para saúde é insustentável financeiramente e levaria o sistema econômico ao colapso e o financiamento em saúde junto.
O sistema está sendo repensado desde o início do século, e muito se é proposto. É proposto que se reconstrua a rede hospitalar brasileira, pois, de fato, os hospitais são a última fronteira da saúde, onde a assistência tem que funcionar por uma questão de vida ou morte; é proposto que se abandone o nível primário, referenciando os recursos para o secundário e terciário; contrariamente, é proposto também que se abandone o nível terciário, que é o mais caro; e é proposto, como eu propus na aula, tornar o sistema 100% privado.
É inegável que recurso privado tem que ter. O sistema não pode mais funcionar apenas na base do dinheiro público, ou as coisas continuarão do jeito que estão, ainda mais com a indolência dos governantes em relação a saúde. Também é inviável, na realidade brasileira, que o cidadão pague por sua própria saúde. Isso seria uma tragédia anunciada num país com disparidades de renda colossais como o nosso.
Não obstante, o modelo de terceirizações de saúde se mostrou vantajoso, mas é só quem não conhece que o compra. Peguemos o exemplo do CAPS, que é o Centro de Assistência Psicossocial, o qual surgiu para suprir a ausência dos manicômios que foram fechados com a reforma psiquiátrica.
Os CAPS oferecem toda uma gama de serviços na assistência psicossocial, desde ressocialização de toxicômanos até tratamento de transtornos psiquiátricos graves como a esquizofrenia. Assim como no resto do SUS, a maior parte é estatal, e funciona com recursos do mesmo.
Alguns, no entanto, foram terceirizados, e empresas privadas passaram a gerir e colocar seus funcionários para trabalhar. Como no Brasil o poste mija no cachorro, o resultado testemunhado por quem está em contato com isso e não apenas lê tabelas foi o inverso do esperado: a quantidade de profissionais diminuiu, o maior número de atendimentos se baseia na diminuição do tempo de consultas e o excedente é embolsado pela terceirizada. É desalentador.
Há também a ideia de aportar os recursos do SUS apenas para quem não pode pagar, fazendo com que quem tiver acima de determinada renda pague quando usar o sistema. Se considerarmos que metade da população brasileira pode pagar por sua própria saúde, já dobraria a renda per capita que o sistema investe, aliviando em muito a situação. Seria uma ideia genial, pelo porém de que, como dito logo menos, uma porção razoável das pessoas têm condição de pagar por sua própria saúde. Isso faria com que apenas os mais pobres usassem a assistência pública em saúde, sucateando ainda mais o que já está sucateado. Ou alguém aqui acha que um rico pagaria para usar o SUS capengão em vez da saúde suplementar? Não viaja, irmão.
O governo federal deveria fazer o óbvio em vez de tentar reinventar a roda. O PIB brasileiro tinha que ser duas, três vezes o que é hoje para um país do nosso tamanho e formação, sendo modesto. O Brasil tem que deixar de ser um país exportador de ferro e soja para exportar bem de valor agregado. Precisa desenvolver a infraestrutura nacional, gerar emprego, tornar o mercado competitivo, atrair capital externo e aumentar a quantidade de dinheiro na praça, para que nossos 8,3% do PIB, em vez de 50 bilhões, sejam 100.
Algo a se fazer, também, é diminuir ou mesmo zerar os impostos e taxas sobre serviços e produtos médicos. Isso faria com que mais e mais pessoas pudessem pagar por saúde suplementar, desonerando o sistema público e aumentando a taxa de reais investidos por usuário. Mas, diminuir a arrecadação do Estado numa cleptocracia como o Brasil, aí é pedir demais.
3. Faltam médicos no Brasil?
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, numa cartada de inteligência e diplomacia, revisou as regras para o Mais Médicos no que se refere ao contrato com Cuba. Ele exigiu, como um democrata que conversa com uma ditadura, que o dinheiro destinado ao contrato de trabalho ficasse com os médicos cubanos, e que estes pudessem trazer suas famílias. Cuba, mostrando que se preocupa mais com o contrato do que com a sua “missão humanitária” de prestar assistência médica a países em necessidade, simplesmente cancelou o programa e chamou os médicos de volta.
Agora, existem cerca de 10 mil vagas do programa Mais Médicos a serem preenchidas por médicos brasileiros. E essas vagas não deverão ser preenchidas, mesmo com a bolsa de R$ 10 mil oferecida pelo governo federal. Explico.
Ainda que o Brasil esteja conhecendo uma explosão de cursos de medicina nos últimos 5 anos, inundando o mercado com médicos de qualidade duvidosa, o Mais Médicos, sob o qual essas vagas foram criadas, e sob o qual os cubanos foram trazidos, é um fracasso total. O programa é mal planejado, não garante aperfeiçoamento do médico, não dá infraestrutura mínima e quer fazer da água vinho. O governo federal, através da canetada, deu a faculdades de medicina obscuras a oportunidade de abrir vagas a torto e a direito, formando médicos fracos que reprovam no exame do CREMESP; e, quando envia formados para os rincões do país, não oferece a infraestrutura mínima para que um médico trabalhe, além da sofrível qualidade do cubano, que é inferior.
Um médico, mesmo que tenha competência, se não tiver possibilidade de pedir exames de laboratório ou de imagem, sem uma mesa de cirurgia decente para operar ou sem os próprios remédios que as doenças exigem, fica impotente frente a qualquer situação clínica que lhe seja colocada.
Nenhum médico quer ir para um lugar como o interior do Maranhão. Não porque é longe, não porque é interior, mas sim, porque não adianta. Não adianta mandar o médico para lá e ele ficar impotente. Você pode mandar o melhor cirurgião cardíaco do país para operar gente no norte e nordeste. Ele será tão útil quanto um leigo.
E depois, o governo, numa postura que eu pessoalmente não entendo até hoje, culpabiliza a classe médica pela ausência de vontade de ir para o interior do país. Na ausência de mínimas condições, é impossível fazer medicina. Até os Médicos Sem Fronteiras, na África, contam com infraestrutura mínima, e o programa Mais Médicos, não dá isso. Você pode oferecer R$ 40 mil por mês para um médico. Se as condições não forem mínimas, ele não vai – isso está no Capítulo II, artigo IV, do Código de Ética do CFM.
Todo o legado desse programa foi inundar o mercado do sul e do sudeste com médicos², diminuindo a qualidade da assistência lá ao formar profissionais inferiores tecnicamente, e mandar dinheiro para o governo de Cuba. As populações carentes do interior do país continuam morrendo de pneumonia, esquistossomose e giardíase. Quem criticou a medida de Bolsonaro, ou é ideologizado ou é leigo. Na prática, a situação foi outra.
Eu não nego que muita gente ficará num vácuo médico agora que os cubanos foram chamados de volta. Emergencialmente, o minguante governo Temer convocará brasileiros para cobrir essas vagas. É melhor ter médico do que não ter nada, mas só isso não basta. Medicina é muito mais do que doutor.
O Mais Médicos poderia ser absolutamente reinventado. O Governo Federal poderia, antes de tudo, criar centros provisórios para atendimento de populações carentes, assim como o governo Wenceslau Brás fez com a Missão Médica Brasileira na 1ª Guerra, ou como faz a Marinha com seus navios médicos ao longo do Rio Amazonas e comunidades ribeirinhas do Norte, levando não apenas médicos, mas estrutura hospitalar para esses lugares, com equipe multidisciplinar, de forma permanente, e não transitória, como ocorreu com o programa.
Poderia, também, investir economicamente nessas pequenas comunidades, priorizando o desenvolvimento das regiões pobres do país, o que automaticamente melhoraria a cobertura médica pública na região pela geração de renda e arrecadação. Só que isso é projeto de décadas, e no Brasil só se pensa de quatro em quatro anos.
A título de curiosidade, o Brasil possui 450 mil médicos para 200 milhões de habitantes. É uma proporção similar a de países como Japão, Reino Unido e EUA. Faltam médicos? Ou o que falta é gestão, incentivo e estrutura? Quem decide é você – ou melhor, o burocrata que gere as ações centrais em saúde, que no primeiro espirro vai para hospital de bacana em São Paulo.
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NOTAS
¹ Este episódio com o Bolsonaro ratifica duas coisas: nossos colegas Brasil afora estarão sempre salvando vidas e não adianta os políticos acharem que vivem numa bolha na saúde. Eles podem até fazer procedimentos eletivos nos hospitais de bacanas em São Paulo ou transferirem para lá após o atendimento emergencial. Mas o imprevisto acontece a qualquer hora em qualquer lugar, e eles serão salvos pelos colegas briosos dos locais mais afastados e sucateados por estes governos corruptos. Acabar com a medicina é os colocar eles mesmo em risco. Quem mais defende os médicos dos candidatos a presidente pôde provar que vale a pena valorizar a medicina.
² Diferentemente dos demais, para abrir um curso de medicina não basta colocar 60 cadeiras e chamar 10 professores para ensinar a meninada. O curso de medicina é a graduação mais complexa que existe, pois exige três esferas de docência: sala de aula, laboratório para as disciplinas básicas e práticas e centros assistenciais para os estágios do internato. Faculdades que não contam com laboratórios de bioquímica, microbiologia, anatomia, histologia ou patologia já deixam o graduando defasado nas bases morfofisiológicas da medicina; as que não tiverem centro assistencial próprio (como Hospital Escola ou ambulatório) farão com que a formação clínica do aluno se prejudique, uma vez que é inócuo firmar convênios com hospitais da região, porque os médicos de hospitais que não sejam vinculados a alguma instituição de ensino não são docentes: eles não tem preparação nem vontade de ensinar, até mesmo porque não estão sendo pagos para isso. As faculdades tradicionais geralmente contam com isso, as novas não. Como pode um aluno, mesmo que bem-intencionado, dedicado e inteligente aprender medicina nessas condições?
Augusto Gaidukas
Estudante de medicina na PUC-Campinas. Possui formação em finanças pela mesma universidade.
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