A definição de Paulo Francis para ideólogo é semelhante à de Olavo de Carvalho.
Em 1994 o jornalista Paulo Francis (1930-1997) publicou Trinta anos esta noite: 1964 – o que vi e o que vivi. Leitura obrigatória para se compreender um pouco daqueles acontecimentos de 54 anos atrás. Mais do que isso, vem a calhar para hoje, pois estamos revivendo alguns ares dos anos 1960. Os espectros ideológicos em questão são muito parecidos. Mas para não cairmos às esparrelas em pieguices é preciso calibrar o ontem e o hoje.
O papo do golpe é cafona, ontem e hoje. Até mesmo a esquerda de outrora era mais coerente e usava, tanto quanto a direita, a palavra “Revolução”. Assim o foi em 64, e agora, do mesmo modo, essa maré-montante de Bolsonarismo também pode ser observada como uma espécie de Revolução – conservadora, é claro. Aliás, o mais marcante nem é isso, mas o que veio disso, o fato de que há mais de trinta anos não se sabia o que era conservadorismo no Brasil. Nomes como Eduardo Prado, Gilberto Freyre, Oliveira Viana, João Camilo de Oliveira Torres, Gustavo Corção, Nelson Rodrigues, só apareciam em situações atravessadas, sem serem compreendidos direito. Agora que Bolsonaro montou no cavalo da história, e logrou fazer do minúsculo PSL um real partido conservador, os jornalistas e intelectuais estão em parafusos tentando compreender o que está acontecendo.
Eis mais um motivo para se voltar a Paulo Francis. O que na prática é marcar ponto com um dos próceres de tudo isso que acontece no Brasil desde 2013, e sobretudo desde 2015, refiro-me ao filósofo Olavo de Carvalho[1]. A esfinge indecifrada pelos críticos tem seus referenciais. Paulo Francis é certamente um deles. Não que Olavo tenha sido seu discípulo. Não é isso. Mas ler um ajuda a compreender o outro. Sem contar que no final da vida os dois estreitaram algum laço, pelo menos é o que mostra o filósofo na dedicatória de O Imbecil Coletivo I [2]. Um gostava do outro. Uma pena a morte prematura de Paulo Francis, algo que entra na conta indireta de um desses nababescos executivos da Petrobras, chamada de Petrosauro por Francis – o documentário “Caro Francis” explica essa história. Enfim, o fato é que ele entrou no rol dos grandes brasileiros que se foram antes da hora, que poderiam ter ficado um pouco mais conosco, deixado um pouco mais, como lamentavelmente foi o caso de: Luís Camillo de Oliveira Neto (1904-1953) (líder no Manifesto dos Mineiros, um dos fundadores da UDN), assim como do seu irmão, o historiador João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973), e ainda do brilhante sociólogo Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982), ou do também baiano Glauber Rocha (1939-1981), nosso tresloucado e original cineasta.
O que aprender com Paulo Francis, título deste artigo, poderia ser traduzido também como: – o que ler em Francis que também está em Olavo? Pois bem, vamos a pelo menos três marcas. A visão de mundo e do Brasil, o senso crítico sobre as ideologias e o destino fora (e dentro) do país.
“Mais Brasil, Menos Brasília”
Mesmo antes de sair do Brasil Olavo de Carvalho já identificava imensos absurdos tupiniquins, como o amor da classe letrada pelo banditismo – como no artigo “Bandidos & Letrados”. Outro caso é o de como somos sorridentes mesmo vivendo muito mal: brasileiro paga caro para morar, se endivida, se eterniza em aluguéis absurdos, e não tem o menor senso estético e harmônico nos bairros e cidades que reside. A arquitetura é um horror, falta beleza e senso de patrimônio histórico. É raro quando um brasileiro, de dentro para fora, identifica isso com tamanha clareza. Algo que num espelho fica mais fácil. Como acontece a partir da leitura do livro de Benjamin Moser, Autoimperialismo – três ensaios sobre o Brasil, que tornou isso translúcido.
Em suma, a ordem sensível dos prédios e das casas repercute no nosso modo de pensar e viver, em nossa visão de mundo e das coisas. O modo como Olavo de Carvalho rompeu, há muito tempo, com uma série de constrangimentos sobre esses assuntos, permitiu que na prática políticos voltassem a falar em tabus de outrora, tal como a necessária desfavelização. Mas se o Rio de Janeiro é o maior símbolo dessa degradação urbana, é importante remontarmos ao porquê disso. É fato que o Rio se torna um imenso favelão, sobretudo a partir da mudança da capital para Brasília (1960). A eterna capital espiritual do Brasil perde seu filão, fica sem sentido, sem vocação, perdida e desencontrada, até hoje. Porém não foi um crime estritamente contra o Rio, o Brasil pagou um preço.
O drama brasileiro da erige de Brasília, em contraste com a vida do Rio, é algo caro a autores liberais e conservadores, como na resistência à mudança da capital por parte de Carlos Lacerda e Gustavo Corção. Na crônica de Paulo Francis Brasília marca o enterro da posição do Brasil no mundo, o que para ele foi uma obra que só podia ter sido feita de um sentimento semi-suicida, misturado com saudades de um Brasil mais simples, roceiro, pelo voluntarismo de um tal de Juscelino Kubitschek, que achava que um país continental como este deveria ser percorrido por automóvel…
Toda a crônica jornalística que atravessou as discussões políticas entre as duas capitais nos faz chorar pelo modo como o Brasil de fato perdeu em civilização. É isso mesmo. Os depoimentos de Barbosa Lima Sobrinho, Villas-Bôas Corrêa, Murilo Melo Filho, Pedro do Coutto, Márcio Moreira Alves, Rogério Coelho e Paulo Branco são reveladores[3]. Para Paulo Francis o mais cruel foi a perda do que hoje chamamos de “desconfiômetro”. No Rio qualquer ministro, secretário, deputado, o que fosse, se constrangia, era visto, reconhecido, evitava falar besteira, era percebido e sentia o povo por onde andava. Como Brasília está no sertão de Goiás – e até hoje tem menos densidade demográfica do que uma das menores capitais do país, a outrora ilha de pescadores e burocratas açorianos que nas últimas décadas foi alçada a condição de ícone do novo turismo bacana brasileiro, Florianópolis -, quer dizer que Brasília não tem sociedade, com elite e povo convivendo mais ou menos de forma entrecruzada. O plano piloto é um verdadeiro aquário de políticos e funcionários públicos. Os estratos inferiores nem vivem por perto, estão nos cinturões mais distantes, nas cidades satélites que parecem ter tido como modelo a Baixada Fluminense. Ou seja, onde os políticos vivem e transitam, repito, não tem povo. Daí que a política da atual capital federal é viciante, deletéria. Se uma nação é seu povo e não estritamente seu território, logo, Brasília nunca fez sentido. Do contrário a Rússia teria sua capital na Sibéria, o Canadá no gelo, a Austrália no deserto.
O “mais Brasil, menos Brasília” é definitivamente um alento.
Ideólogos e radicais
Ao Estadão, em entrevista de 24 de novembro, Olavo de Carvalho explica por que não é ideólogo do governo Bolsonaro ou supostamente de coisa alguma. O argumento é simples, ideólogo é aquele que tem um projeto fechado, um plano definido onde quer chegar. Por outro lado, e aqui é minha explicação, se tratarmos Olavo como um pensador do conservadorismo brasileiro, logo o âmago do método conservador é a prudência, é o agir sobre as circunstâncias, quase que sob as demandas com relação aos problemas, e não com um plano fechado. Claro que no cosmos filosófico Olavo de Carvalho tem uma “obra” a ser apresentada e interpretada. Contudo, aqui estou me circunscrevendo ao caráter político.
Das três famílias ideológicas clássicas o conservadorismo é a mais “ensaboada”, cujas noções cêntricas e adjacentes são mais movediças, pois o tempo muda, as situações, as pessoas. O próprio Michael Freeden, em sua obra sobre as ideologias, começa falando do Liberalismo, depois parte para o Socialismo, e quando entra no Conservadorismo a coisa complica, fica difícil engessar tal “ideologia”, ela fica escapando da mão. Isso já demonstra algo que a esquerda tem dificuldade de entender: por que não é progressista, acham que o conservadorismo necessariamente teria que ser estático, quando na verdade é dinâmico[4].
A definição de Paulo Francis para ideólogo é semelhante à de Olavo de Carvalho. Em 1964, o colunista da Última Hora, era de esquerda e simpático a Brizola; em 1994, já correspondente da Globo em Nova Iorque, era o oposto do então governador do Rio até o ano anterior. No entanto, explicava que Brizola não era um ideólogo, que era sim um radical, mas não tinha uma teoria de Estado na cabeça, e no máximo era um populista com sonhos socialistas. Que estava mais para um Fidel Castro brasileiro, do que para um demiurgo. Já o oposto do político gaúcho, o carioca Carlos Lacerda, segundo Francis era o exemplo de um ideólogo, à direita. A tese é a de que Lacerda teria expressado de fato o espírito do que o Brasil precisaria viver a partir do choque de 64: uma ditadura transitória que limpasse a área de políticos antiquados e corruptos e, depois, convocasse eleições entre os sanitizados. Para Francis, Lacerda foi leninista, sendo um Lênin sem luta de classes e para uma nova democracia no Brasil. Embora tivesse sido expurgado do sistema, Lacerda teria sido o pai da criança. Que ficou órfã, e quiçá hoje tenha se visto grande e resolveu reapareceu…
“Ame-o ou deixe-o”
Num ar de Nova Era recauchutada o canal SBT relançou em propagandas a frase usada pelos militares no regime de décadas passadas: “ame-o ou deixe-o”, em alusão ao apelo nacionalista. Porém, não são poucos os brasileiros que fizeram mais por este país, vivendo fora, do que muitos cá dentro. A começar por Hipólito José da Costa (1774-1823), que de Londres editava o Correio Braziliense, em prol da defesa liberal da nossa Independência, ou ainda José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) que saiu garoto e voltou velho para o Brasil, tendo vivido trinta anos na Europa. A lista é longa, e chega a figuras como Paulo Francis e Olavo de Carvalho.
Paulo Francis explica como suportou tanto tempo por aqui, talvez menos o país, e mais o poluído ambiente do seu trabalho:
Eu publicava na Folha de São Paulo, contrariando tudo o mais na imprensa, que é, em geral, servil, ou falsifica os fatos. Às vezes acho que aguentei tanto tempo viver no Brasil porque estava em estado etílico na maior parte do tempo.
Com efeito, Francis era daquela geração que nas novelas do início dos anos 1990 a cena começava e terminava no bar da sala de estar, com a classe média em seus dilemas de sofá sendo curados por um copo de whisky com gelo. No livro de Paulo Francis também, o início e o fim era embebido por whisky, mas daí a escala era na ordem das garrafas. Todos bebiam e fumavam muito. Hoje, ninguém mais fuma– a não ser nos círculos de esquerda com cigarro de maconha -, e tampouco se bebe tanto whisky. Por outro lado, temos um outro consolo, que nem Paulo Francis e nem Olavo de Carvalho tiveram, a oportunidade de ficar no Brasil, de não ter que fugir, de não ter que escapar; de poder viver nesta aventura, nesta experiência, neste turbilhão.
Somos gratos a eles, e a essa onda bolsonarista que pela maior expressão democrática da história, deu uma bela lavada neste país.
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NOTAS
[1] Em suas postagens de Facebook, Eduardo de Alencar, colunista da Amálgama, já escreveu sobre os outros dois nomes que marcam esse mundo de transformações que o país vive desde 2013 e 2015 são: Sérgio Moro, líder da “revolução Lavajateira”, e Jair Messias Bolsonaro, triunfante vencedor do pleito eleitoral, contra todo o establishment político e de mídia. Assim como Olavo de Carvalho, agora são todos, juntos, “governo”.
[2] Olavo de Carvalho faz dedicatória e agradecimentos a Paulo Francis, incluindo o seguinte “adendo”: “PAULO FRANCIS não teve tempo de ler estes agradecimentos. Morreu, de ataque cardíaco, na manhã de 4 de fevereiro de 1997. Minha amizade com ele foi breve, mas profunda e verdadeira. Esse homem de transbordante alegria não morreu feliz. Seus últimos dias foram atormentados por perseguições e calúnias de uma baixeza incomparável, que bem dão a medida do caráter de seus autores e da causa a que servem, pois nada revela melhor a índole dos fins do que a natureza dos meios. Algumas delas são comentadas nas páginas finais deste livro.”. CARVALHO, Olavo de. O Imbecil Coletivo. Atualidades Incultura Brasileiras. 7a ed. Rio de Janeiro : Faculdade da Cidade Editora, 1997.
[3] FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). Crônica política do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : FGV, 1998.
[4] Quem tratou isso de modo perfeito e dentro da tradição do Pensamento Político Brasileiro foi João Camilo de Oliveira Torres, particularmente em “Os construtores do Império: ideais e lutas do Partido Conservador Brasileiro”, de 1968.
Luiz Ramiro
Professor de Segurança Pública (UFF/CEDERJ) e Coordenador-Geral na Fundação Biblioteca Nacional.
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